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Elias Souza
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Quando a Igreja Católica brasileira se engajou nos programas de desenvolvimento do Nordeste e combateu o comunismo

11 maio/2023

Nos anos 1950, instituição atuou em busca por mudanças sociais no campo e defendeu reforma agrária, mostram estudos da Casa de Oswaldo Cruz

 

A movimentação na mineira Caxambu fugia do usual naquele início de setembro de 1950. Centenas de pessoas, entre agricultores, professores e religiosos, estavam reunidos na cidade para discutir questões relacionadas à vida no campo, em um evento chamado Semana Ruralista, coordenado pela Diocese de Campanha, além dos ministérios da Agricultura e da Educação e Saúde e da Universidade Rural de Minas Gerais. Após oito dias de discussões, realizadas em grupos que se ocuparam de temas como agricultura e saúde, divulgou-se um documento-síntese que citava causas do atraso na região – a falta de escolas técnicas e as péssimas condições de saúde, decorrentes de “alimentação deficiente” e da “inexistência” de serviços públicos como os de água e esgoto – e elencava soluções para os problemas relacionados à produção agrícola, educação e saúde.

Mais do que mediadores na relação entre Estado e sociedade, o clero e setores leigos da Igreja Católica viram a oportunidade de participar da melhoria das condições de saúde e de vida da população e da construção de uma alternativa aos polos liberal e socialista

Realizada em várias partes do país, a Semana Ruralista foi uma das estratégias por meio da qual a Igreja Católica brasileira envolveu-se em políticas de governo, em um movimento inédito. Naquela época, o Brasil era fundamentalmente católico. “Bispos e religiosos cada vez mais propensos a influenciar, pressionar e dialogar com o poder político e econômico fora do escrutínio público, e desafiados pela experiência democrática pós-1945, passaram a exigir a superação do subdesenvolvimento e se ofereceram para compartilhar diagnósticos, colaborar na formulação de políticas e apoiar sua implementação no Brasil rural”, escreve Gilberto Hochman, do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) e professor do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Hochman analisa o tema, pouco explorado na historiografia sobre saúde e desenvolvimento, em capítulo do livro Health and Development. Na época do estudo, cerca de 70% da população vivia na zona rural. Contar com intermediários em grande parte do vasto território nacional era então importante para qualquer política de saúde ou programa de desenvolvimento promovido pelo governo, explica o cientista político, acrescentando que a Igreja Católica desempenhou esse papel e se destacou como um dos mais críticos mediadores do período: “Mais do que mediadores na relação entre Estado e sociedade, o clero e setores leigos da Igreja Católica viram a oportunidade de participar da melhoria das condições de saúde e de vida da população e da construção de uma alternativa aos polos liberal e socialista”.

A CNBB e a união entre fé cristã e missão social

Embora a existência de ligações entre Igreja Católica e Estado não fosse novidade no Brasil, transformações no cenário pós-Segunda Guerra Mundial impactaram o tipo de aproximação que se deu entre ambos na década de 1950. Em uma época marcada pela Guerra Fria, pela expansão do comunismo e pelo crescimento de denominações protestantes e religiões de matriz africana, sobressaía-se, uma orientação mais focada na justiça social no Vaticano.

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Em meio ao surgimento de novas organizações da Igreja Católica brasileira e movimentos leigos, foi criada, em outubro de 1952, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), braço institucional da Igreja Católica. No cargo de secretário-geral, até 1964, estava o cearense Dom Hélder Câmara (1909–1999), líder do grupo de bispos do Nordeste, alinhados às transformações do catolicismo internacional, com foco na doutrina social da Igreja. Eles compartilhavam uma visão de desenvolvimento diversa da adotada pelo Estado e mais influenciada pelo “desenvolvimento católico”, derivado do humanismo católico francês – filosofia que depois se tornaria base da Teologia da Libertação. Crítica à ascensão de outras alternativas ao capitalismo, como o socialismo, e também contrária ao individualismo liberal, a Igreja Católica passa a propor uma espécie de terceira via, “algo mais comunitário, mais societário, mais solidário”, explica Hochman.

JK e a quebra do “círculo vicioso da doença e da pobreza”

Em 1955, Juscelino Kubitschek (1902-1976) surge no cenário da disputa presidencial, apresentando um programa eleitoral que incluía a saúde e a assistência médico-social, algo inédito na história do Brasil republicano. Além disso, trazia um elemento novo no discurso, observa o historiador: a necessidade de se quebrar o “círculo vicioso da doença e da pobreza”, com medidas que possibilitariam um caminho para a população rural, que não o êxodo para as áreas urbanas, comum desde o fim do século 19.


Bispo Dom Hélder Câmara sendo entrevistado por jornalistas em 1959. Foto: Arquivo Nacional.

A abordagem da campanha de Kubitschek, que destacava a superação do subdesenvolvimento, chamou atenção dos católicos, interessados em novos rumos para o Brasil rural, focando, especialmente, no desenvolvimento da região Nordeste, tida como a mais pobre do país. “Padres e bispos católicos perceberam a urgência de seu engajamento político no combate às secas, na melhoria da saúde e das condições de vida da população e na organização de sindicatos de trabalhadores católicos para disputar com os comunistas”, escreve o cientista político. Para a Igreja Católica, as áreas rurais e as favelas estariam mais vulneráveis à recepção da referida ideologia.

“Rezar é, também, desembainhar um facão e abrir caminhos”

Logo no primeiro ano do governo JK, em 1956, a Igreja Católica realizou o primeiro Encontro dos Bispos do Nordeste (IEBN), em Campina Grande (PB). Durante o evento, atuou com representantes do governo e especialistas de diversas áreas do conhecimento para detectar entraves e definir ações para as políticas públicas em prol do desenvolvimento. Acreditava que seria capaz de reduzir as desigualdades regionais, evitando o êxodo para as áreas urbanas. Uma das parcerias, com o Ministério da Agricultura, visava, entre outros objetivos, apoiar as Semanas Ruralistas. Surgidas no país na década de 1930 elas se caracterizavam como um evento onde se promoviam técnicas e tecnologias, com o intuito de melhorar, por exemplo, produção de alimentos, além de cursos populares nas áreas de  saúde  e de educação. Nos encontros, agricultores, religiosos, governantes e especialistas de diversas áreas trocavam ideias e conhecimento, por meio de palestras, aulas técnicas, exposições de produtos, exibição de filmes e distribuição de impressos.

A partir da década de 1950, as Semanas Ruralistas passaram a representar um espaço de maior cooperação entre a Igreja Católica, órgãos públicos  e entidades privadas, em uma ação conjunta pelo desenvolvimento, explica o historiador Ramon Feliphe Souza, autor de artigo e tese sobre o tema, defendida no PPGHCS, com orientação de Hochman. Centenas de Semanas Ruralistas foram promovidas entre 1946 a 1955, diz ele. No período de apenas um ano, entre 1954 e 1955, 32 delas foram realizadas em diferentes partes do país.

Imagem de um recorte de jornal com uma matéria sobre o homem do campo e as semanas ruralistas
Semana Ruralista é destaque no Diário do Paraná de 30 de junho de 1959. Imagem: Biblioteca Nacional.

Segundo o historiador, por meio das Semanas Ruralistas, a CNBB, embasada em uma visão alternativa de desenvolvimento integral, contribuiu para a elaboração de diagnósticos e alertas ao poder público sobre a situação de vida nas áreas rurais, em especial, durante a administração de Juscelino Kubistchek (1956-1961). “Nesse governo, muitas sugestões dos bispos foram convertidas em leis, decretos e uma infinidade de compromissos voltados, principalmente, para o Nordeste do país, indicado no período como sua região mais subdesenvolvida”, escreve Souza, detalhando que os projetos incluíam construção de ferrovias, açudes, estradas, eletrificação, colonização, modernização agrícola, bem como campanhas sanitárias e distribuição de medicamentos.

Para exemplificar como sacerdotes destacavam a importância da cooperação entre os poderes temporal e espiritual, Souza cita a declaração de Dom José Delgado, arcebispo de São Luís, dada no encerramento da Semana Ruralista do Maranhão e publicada no jornal O Dia, de Curitiba, em 20 de fevereiro de 1958: “A missão do padre não está confinada apenas à sacristia, rezar é, também, desembainhar um facão e abrir caminhos no meio do matagal social comum, do social comunista”.

No pós-guerra, uma onda de “otimismo sanitário” se espraiara pelo mundo, disseminando a ideia de que novas tecnologias e tratamentos poderiam erradicar doenças e também solucionar problemas que emperravam a produção agrícola. Para conhecer com mais propriedade a situação em áreas subdesenvolvidas do país e, assim, ter melhores condições para intervir, a Igreja Católica procurou embasar suas propostas na ciência, inclusive as sociais, e no conhecimento técnico.

Reforma agrária com limites

Mas como fazer valer essa política de desenvolvimento integral em um país com grande concentração de terras e onde trabalhadores rurais estavam excluídos dos mecanismos de proteção social? A reforma agrária havia se tornado um tema incontornável no debate nacional.  Na Semana Ruralista realizada em Caxambu, uma carta pastoral publicada ao fim do evento, pelo bispo D. Inocêncio Engelke (1881-1960), trazia o título Conosco, sem nós ou contra nós, se fará a Reforma Rural. Considerada a primeira manifestação pública de um bispo católico favorável à reforma agrária, a carta reivindicava justiça social para os trabalhadores rurais.

Muitas sugestões dos bispos foram convertidas em leis, decretos e uma infinidade de compromissos voltados, principalmente, para o Nordeste do país, indicado no período como sua região mais subdesenvolvida

A Igreja Católica, por meio da CNBB, buscou um caminho intermediário, defendendo uma reforma agrária sem distribuição compulsória de terras. O foco seriam as terras públicas, livrando o grande proprietário de terra. Em 1959, além do receio de uma reforma agrária “pela lei ou pela força”, as reações contra Ligas Camponesas e os sindicatos de trabalhadores rurais eram violentas. No 2º Encontro de Bispos do Nordeste, em Natal (RN), os sacerdotes cobraram ações do governo.

“A posição dos prelados como mediadores dos conflitos agrários e como garantidores de um programa de desenvolvimento tornava-se cada vez mais difícil. Passou a ser percebida como semelhante a dos comunistas pelos latifundiários e pelos políticos conservadores”, escreve Hochman, frisando a existência de limites estruturais e políticos enfrentados pela Igreja Católica em seu papel como mediadora das políticas públicas de desenvolvimento.

Embora reconheça a importância do papel da Igreja Católica no período, Souza chama atenção para tensões na atuação de bispos e padres. “A ideia de um desenvolvimento mais integral foi abraçada pela Igreja Católica, mas não com unanimidade. Havia um segmento que preferiu apoiar o movimento que culminou com o golpe de [19]64”. Segundo ele, as atuais instituições do governo, especialmente as associadas aos objetivos do desenvolvimento, precisam considerar saberes religiosos diversos no desenho das políticas públicas: “A forma como a tecnologia é percebida pela religião contribui ou não para o seu grau de aceitação. No período do estudo, por exemplo, bispos recomendavam a vacina. Mas, recentemente, vimos movimentos religiosos incentivando o negacionismo científico”, observa.