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Ator central nas ciências sociais revisou seus estudos sobre a inexistência de preconceito racial no Brasil

21 set/2022

Em artigo publicado em periódico da Universidade de Cambridge, pesquisadores da Casa analisam obra do norte-americano Donald Pierson

   Arte:Silmara Mansur   

Arte exibe um aparelho oftalmológico com a duas lentes marcadas com a palavra racismo borrada

Por Karine Rodrigues

Vindo de um país marcado por intensos conflitos raciais, o sociólogo norte-americano Donald Pierson (1900-1995) aqui desembarcou, em 1935, movido por uma curiosidade intelectual sobre a relação entre negros e brancos. À época, cientistas sociais da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, onde Pierson cursava o doutorado, incluíram o Brasil em uma agenda de pesquisas global cujo objetivo era examinar, a partir de comparações sistemáticas, os processos de integração entre raças e culturas iniciados com a colonização europeia do mundo.

Após dois anos de uma minuciosa pesquisa de campo em Salvador, Pierson concluiu não existir preconceito racial no Brasil. A tese resultou no livro Negroes in Brazil: a study of race contact at Bahiapublicado nos Estados Unidos, em 1942 (Brancos e pretos na Bahia, edição brasileira, 1945). A obra recebeu elogios, mas também foi criticada por apresentar um cenário supostamente idílico sobre as relações raciais, passando ao largo do racismo, que, no mundo tradicional rural e escravocrata, podia estar recoberto por atitudes de benevolência.

A história do sociólogo no país teria ainda vários outros capítulos até o seu retorno para os Estados Unidos, em 1950: além de se transformar em um personagem central no intercâmbio acadêmico interamericano e na institucionalização das ciências sociais no Brasil, Pierson se reposicionou no debate local sobre raça.

Sociólogo Donald Pierson sentado ao volante de um carro rodeado de estudantes, em uma estrada, com a mata ao fundo
Pierson (ao volante) e equipe em viagem de pesquisa no interior de São Paulo. Foto: CPDOC/FESPSP

Em artigo publicado na Latin American Research Review, da Universidade de Cambridge, Marcos Chor Maio, sociólogo, pesquisador do Departamento de Pesquisa e professor do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/PPGHCS/Fiocruz), e Thiago da Costa Lopes, sociólogo, doutor em História das Ciências e da Saúde pela mesma instituição e pós-doutorando (Depes/COC/Fiocruz), avaliam que os estudos do cientista social norte-americano sobre as relações raciais são indissociáveis da discussão sobre o processo de modernização no país. Ressaltam ainda que a obra de Pierson só pode ser “plenamente compreendida” se for levado em conta o impacto do diálogo entre Brasil e Estados Unidos. 

A importância dos fluxos transnacionais na produção do conhecimento

Os autores destacam a importância dos estudos sobre fluxos transnacionais para o desenvolvimento de disciplinas como a sociologia e revelam como especialistas norte-americanos foram influenciados por intelectuais posicionados nas franjas das redes globais de produção do conhecimento sociológico, em uma época em que os Estados Unidos consolidavam sua hegemonia neste terreno.l

“Um exame da obra de Donald Pierson sobre a sociedade e a cultura brasileiras lança luz sobre correntes de pensamento e autores que participaram de grandes, mas pouco conhecidos debates teóricos sobre modernização. A natureza transnacional de sua obra, que implicou em complexas intersecções de tradições intelectuais estadunidenses e brasileiras, também nos oferece a oportunidade de revisitar os entendimentos tradicionais dos fluxos Norte-Sul que orientaram os processos de formação de conhecimento sociológico no passado”, escrevem no artigo.

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A pesquisa de campo em Salvador foi conduzida, em sua maior parte, a partir da perspectiva sociológica de seu orientador na Universidade de Chicago, Robert Park (1864-1944). Além de considerar o conflito inerente às relações entre as raças, entendia como algo esperado o processo de assimilação das minorias ao grupo racial dominante.  Pierson também seguia os esquemas conceituais sobre o processo de mudança na sociedade de outro nome de destaque da Escola Sociológica de Chicago: Robert Redfield (1897-1958).

Os trabalhos de intérpretes locais do Brasil, pontuam Chor e Lopes, foram igualmente decisivos na formação do olhar do sociólogo norte-americano. Ele considerava, por exemplo, que a miscigenação racial em curso iria lentamente “embranquecer” a população e, assim, contribuir para a integração racial da sociedade brasileira, seguindo entendimentos de Oliveira Vianna (1883-1951) e Gilberto Freyre (1900-1987). Movido pela mesma influência, principalmente pela obra de Freyre, considerou o Brasil rural e patriarcal peça importante para tornar o país moderno e inclusivo, assinalando de forma positiva as continuidades entre passado e presente no processo de mudança social.

Preconceito de raça interpretado como preconceito de classe

Chor observa que o trabalho empírico de Pierson não passa ao largo do preconceito racial existente no país, mas sua expressão acaba sendo interpretada como discriminação de classe. “Quando ele vai a campo, encontra uma série de situações, depoimentos, histórias de vida que vão mostrar como a questão racial pesa nas relações sociais. Ele mantém assim uma certa visão ambígua".


Pesquisador Marcos Chor Maio
Marcos Chor Maio. Foto: Jeferson Mendonça

Em 1939, Pierson se muda para São Paulo e passa a integrar o quadro de professores da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP).  Dois anos depois, cria o primeiro curso de pós-graduação em ciências sociais do país. Na década seguinte, já como colaborador do Instituto de Antropologia Social (ISA) da Smithsonian Institution, foca nas transformações sociais em curso nas comunidades do interior do país, como as do Vale do São Francisco. Estava interessado em analisar a influência modernizadora dos centros metropolitanos nos padrões tradicionais de cultura rural e organização social.

Pierson, então, revê suas análises sobre as relações entre tradição, modernidade e racismo e se aproxima da compreensão de sociólogos brasileiros do período, como Florestan Fernandes (1920-1995), Luiz de Aguiar Costa Pinto (1920-2002) e Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), que tinham “um compromisso implícito com a construção de uma sociedade mais igualitária, a conquista da democracia e superação do passado autoritário e desigual do país”, conforme Chor e Lopes. Ao adotar essa perspectiva, que também o levou a uma nova postura no debate racial brasileiro, Pierson estava reavaliando como o passado poderia impactar no processo de modernização do país.

Durante estudos sobre o mundo rural, Pierson muda perspectiva sociológica

Essa nova perspectiva ficou patente durante a participação do sociólogo no debate sobre a relação entre racismo e modernidade no Projeto de Relações Raciais da UNESCO – um conjunto de investigações no Brasil realizadas no início da década de 1950, no contexto do pós-Holocausto e da Guerra Fria – e a Conferência sobre Relações Raciais em Perspectiva Mundial, de 1954. “Pierson vê como o atraso era um obstáculo, impedindo que as possibilidades de desenvolvimento ocorressem”, diz Chor. A nova preocupação de Pierson com as desigualdades raciais no Brasil veio acompanhada de dúvidas sobre sua visão original em torno de um processo suave de integração dos negros à sociedade brasileira.


Pesquisador Thiago Lopes
Thiago da Costa Lopes. Foto: Arquivo pessoal

Em sua pesquisa no Vale do Rio São Francisco, o sociólogo muda seu pensamento em relação aos padrões culturais tradicionais, que passa a considerar como obstáculos ao ingresso do país no processo de modernização. Além disso, adota uma nova abordagem ao combinar o papel do sociólogo como cientista e como agente de mudança social, destacando, assim, a importância da aplicação do conhecimento sociológico na prática, avaliam Chor e Lopes, que também analisaram a relação entre ciência e política na trajetória de Pierson em artigo intitulado Between Sciences and Politics: Donald Pierson and the quest for a scientific sociology in Brazil, recentemente publicado na revista Sociologias.

“Pierson foi muito criticado, mas, aos poucos, está sendo resgatado. Procuramos mostrar que, mesmo com as ambiguidades, as incongruências, o trabalho do Pierson, seja nas relações raciais, seja sobre a mudança social da sociedade tradicional para a sociedade moderna, é muito rico, denso”, finaliza Chor.