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‘Não se acaba com as doenças sem a melhora das condições socioeconômicas e culturais’

23 jun/2021

No centenário da vacina BCG, contra a tuberculose, pesquisador fala sobre os desafios na área de imunizantes, tema de seminário na Casa

Foto: Acervo Fiocruz. Arte: Silmara Mansur.

Registro do gotículas expelidas por um homem durante um espirro

Por Karine Rodrigues

Centenária, a vacina BCG (Bacilo Calmette-Guérin) praticamente erradicou as formas mais graves da tuberculose na primeira fase da vida. Apesar da efetividade do imunizante e de a infecção ser tratável e curável, ela permanece um problema de saúde pública. Dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), apontam que, em 2019, a tuberculose foi a doença que mais matou no mundo, com 1,4 milhão de mortos. O que falta para erradicá-la, afinal?

No Rio, há áreas em que a tuberculose tem índice compatível com o de países desenvolvidos, mas são áreas no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul. É preciso dar melhores condições socioeconômicas e culturais para a população. Há muita gente morando no mesmo ambiente, pessoas desnutridas, mal informadas, que acabam fazendo a transmissão e não procurando serviços médicos

“Não se acaba com as doenças sem a melhora das condições socioeconômicas e culturais”, avalia o médico Luiz Roberto Castello-Branco, co-coordenador da área de Vacinas do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Tuberculose (INCT-TB) e diretor científico da Fundação Ataulpho de Paiva (FAP), único fabricante nacional da BCG.

Um dos conferencistas do seminário internacional Sociedade, política e ciência: o centenário da vacina BCG (1921-2021), realização da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Chile, nos dias 8 e 9 de julho, com transmissão on-line, Castello-Branco já encarou a face da desigualdade bem de perto, inúmeras vezes.

Na década de 1980, o pesquisador trabalhava no Ambulatório da Providência, na Zona do Mangue, no Rio de Janeiro, onde foram registrados os primeiros dados do Programa Nacional de DST/Aids, relativos a profissionais do sexo que atuavam na região. Na época, participou de um estudo que identificou um esquema criminoso, no qual moradores de rua vendiam o próprio sangue semanalmente e recebiam transfusões de outras pessoas para garantir uma retirada periódica, sem qualquer testagem, tornando uma situação já precária ainda mais alarmante.

Pesquisador da Fiocruz durante cerca de duas décadas, onde chefiou o Laboratório de Imunologia Clínica do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), ele segue desenvolvendo projetos em parceria com a instituição. Na Fiocruz, foi responsável pela certificação internacional da vacina BCG Moreau Rio de Janeiro na OMS e também pela inserção do imunizante como referência no portfólio da instituição. Realizou pesquisas que geraram patentes com o BCG e testes diagnósticos.

Sobre a vacina centenária, preparada com uma versão viva atenuada da Mycobacterium bovis, espécie próxima à bactéria causadora da doença nos seres humanos, Castello-Branco dá detalhes históricos, como a vinda do bacilo atenuado ao país e o desenvolvimento da Liga Brasileira contra a Tuberculose, nome original da Fundação Ataulpho de Paiva.

Além de destacar as peculiaridades da cepa Moreau Rio de Janeiro, desenvolvida no Brasil, Castello-Branco fala sobre os próximos passos das pesquisas na área: análises em curso apontam para a eficácia do produto na redução de complicações de infecções do trato respiratório. Uma vez comprovados os resultados já encontrados em estudo clínico, será necessário ainda produzir uma nova fórmula que tenha a durabilidade requerida pelas agências regulatórias internacionais. Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista.

Luiz Roberto Castello Branco posa em frente a uma pintura mostrando um homem
Luiz Roberto Castello-Branco. Foto: Reprodução.


Como começou a história da produção de BCG no país?

Em 1925, um médico uruguaio, chamado Julio Elvio Moreau, trouxe uma amostra do bacilo atenuado de Calmette e Guérin, com a receita de fabricação da vacina. Ele trabalhara no [Instituto] Pasteur de Lille [França] e veio de navio, fazendo peripécias para manter o BCG vivo. Imagina, ele em um meio de cultura, dentro do navio, não podia chacoalhar muito o BCG, senão, ele afundava e morreria. Então, acredito que foram semanas de desespero para o Moreau. Ao chegar ao Rio, ele passou a vacina para o médico Arlindo Raymundo de Assis, que à época trabalhava na Faculdade de Medicina do que seria depois a Universidade Federal Fluminense e no Instituto Vital Brazil, onde fez as primeiras experiências com a cepa Moreau. Então, o presidente da Liga Brasileira contra Tuberculose, Ataulpho de Paiva, fez um acordo com o Assis para que ele produzisse a BCG já em escala na fundação. A primeira produção saiu em 30 de dezembro de 1930 e foi feita a primeira imunização já com a BCG de linha de produção.

Como a BCG produzida no Brasil se tornou referência no portifólio da OMS?

Quando eu voltei do doutorado em Londres, ganhei um prêmio da Wellcome Trust para desenvolver um estudo sobre o BCG brasileiro. Com a Fundação Ataulpho de Paiva e junto com o Laboratório de Imunologia Clínica da Fiocruz, desenvolvemos estudos em diversas áreas, que culminaram fazendo a atualização do BCG. Na época, como integrante do comitê de BCG da OMS, houve uma proposta de atualização do BCG. Com a epidemia de HIV/Aids, a tuberculose, que estava diminuída no mundo inteiro, começou a reaparecer, e o único modo de prevenção era o BCG. Então, a OMS viu que era necessário aprimorar o conhecimento sobre os BCGs. Fizemos estudos que caracterizaram o BCG Moreau Rio de Janeiro, fizemos o genoma, o proteoma, registramos o nome na OMS e fomos certificados pela organização. A vacina BCG Moreau Rio de Janeiro é referência da OMS.

A vacina é eficaz, mas ainda assim a tuberculose permanece um problema de saúde pública no mundo. Como se acaba com uma doença?

Não se acaba com as doenças sem a melhora das condições socioeconômicas e culturais. Você olha outros países, vê resultados extraordinários; olha para o Rio de Janeiro e vê áreas em que a tuberculose tem índice compatível com o de países desenvolvidos, mas são áreas no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, lugares assim. É preciso dar melhores condições socioeconômicas e culturais para essa população. Há muita gente morando no mesmo ambiente, pessoas desnutridas, mal informadas, que acabam fazendo a transmissão, não procurando serviços médicos quando têm sinais e sintomas compatíveis com a doença.

São os componentes sociais da doença. Você acompanhou isso muito de perto ao trabalhar no ambulatório da Zona do Mangue, no Rio de Janeiro?

Fomos o primeiro grupo no Brasil e um dos primeiros do mundo a acompanhar pessoas com HIV/Aids que se prostituíam. Na Zona do Mangue, existiam as mulheres e os travestis, como se chamava naquela época. Havia um grupo grande [de pessoas] que fazia esse acompanhamento. São os primeiros dados do Programa Nacional de DST/Aids. Isso em 1984-1985, quando o programa estava começando, numa salinha dos fundos de uma área escura do Ministério da Saúde. Era um negócio mínimo, que se transformou na potência de ser o melhor do mundo.

E o que vocês encontraram à época?

Eu coordenava um estudo com a Maria Inêz Linhares de Carvalho nesse ambulatório da Zona do Mangue, que era da Igreja Católica. Acompanhávamos centenas de pacientes, em colaboração com o professor Bernardo Galvão, que havia retornado da Suíça há pouco tempo e era encarregado do Programa Nacional de DST/Aids no Brasil.  Tinha a Peggy Pereira, mulher do Hélio Pereira, que era chefe de um laboratório de diagnóstico grande na Grã-Bretanha, e veio para o Brasil. Logo depois, o Hélio também veio. Era bem legal. Fizemos, por exemplo, um estudo que marcou época. Tudo isso com a Fiocruz.

Qual estudo?

Descobrimos que os pacientes mendigos vendiam sangue para bancos de sangue. Na época, houve uma repercussão enorme, que, inclusive, em 1988, até mudou a Constituição. Eles estavam doando sangue semanalmente, olha que barbaridade. Descobrimos que era uma plasmaferese. Eles iam em bancos de sangue clandestinos do Rio, doavam o sangue e recebiam uma papa de hemácias para doar sangue novamente na semana seguinte. Mas essa papa de hemácias não era deles. Então, quando fizemos testes de sangue, vimos indivíduos que não tinham relações sexuais e tinham HIV, outros que nunca tinham saído do Rio de Janeiro e tinham doença de Chagas. Sífilis era prevalente, pois eles estavam recebendo sangue de outras pessoas e doando toda semana. Os bancos de sangue eram de banqueiros do jogo do bicho. Na época, denunciamos e fomos ameaçados porque era um dinheiro muito violento. Então, esses bancos foram todos fechados em 1988. Uma grande vitória. Foi uma parceria bem interessante que conseguimos fazer porque o ambulatório era da Igreja Católica, e, na época, o arcebispo era Dom Eugênio Sales. Na pesquisa, estava conosco Herbert de Souza, o Betinho. Para você ver o que a ciência e os bons resultados conseguem. Algo que hoje, infelizmente, a gente não vê.

O próprio Programa Nacional de HIV/Aids vem sofrendo muito com essa falta de união de esforços.

Infelizmente, estamos vivendo um momento muito ruim. Hoje em dia, fico muito surpreso quando vejo que, daqueles colegas que fizeram o Programa Nacional de DST/Aids, que deveriam conduzir uma política em relação à Covid-19, praticamente nenhum está participando. Fico bastante chateado quando vejo a Fiocruz, com o seu papel sensacional na história da saúde desde Oswaldo Cruz, sofrendo agressões absurdas hoje em dia. É inacreditável [ver] o maior instituto da América Latina, em que muito me orgulho de ter trabalhado, sofrendo agressões de indivíduos que nunca participaram disso.

Essa produção de conhecimento relacionado à tuberculose resultou em patentes?

Sim. A Fiocruz e a Fundação Ataulpho de Pavia têm produtos do BCG. O nosso BCG é único. Até por causa do próprio Arlindo de Assis, aquele cientista que começou tudo aqui no Brasil. O nosso BCG é diferenciado dos outros, tem uma alteração genética que faz com que ele seja bastante imunogênico, ou seja, tem uma resposta de eficiência bastante alta e tem menos efeitos adversos. O BCG brasileiro é talvez o BCG mais estudado do mundo. Ele foi usado não apenas por via intradérmica, mas em 1930 e 2005, [também] por via oral.

Via oral também para prevenir a tuberculose?

Na verdade, a vacina oral tem características únicas. De 1973 até 2005, a Fundação Ataulpho de Paiva continuou o fabricar o BCG oral. Mas ele não era usado para prevenir a tuberculose. Usava-se para o tratamento de câncer e pelos pediatras para estimular o sistema imunológico, principalmente em doenças do trato respiratório. É algo que estamos estudando. É bem interessante porque ele consegue aumentar a imunidade em pacientes que têm algum problema no trato respiratório.

E por que deixou de ser produzido?

O BCG oral é líquido, tem validade de somente 30 dias. Qualquer agência reguladora internacional não aprova produtos assim. Ele permanece sendo usado, mas somente em estudos. Eu sou co-coordenador da área de Vacinas do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Tuberculose [INCT-TB], e estão ocorrendo diversos estudos dentro desse instituto e da Fiocruz, no Laboratório de Imunologia Clínica.

O que falta para chegar ao patamar de ser usada como estimulante do sistema imunológico?

Um estudo clínico com essa vacina líquida para comprovar os resultados. Eles foram feitos antes de 2005. As pessoas compravam e utilizavam, basicamente no Rio de Janeiro. Então, precisamos fazer um estudo clínico e desenvolver uma nova fórmula que duraria um prazo maior, aceito pelas agências reguladoras. Então, esses são os próximos passos, com ação em infecções respiratórias em geral.

Seria importante esse desenvolvimento, dada a magnitude das infecções respiratórias. Agora mesmo tem a Covid-19.

Estamos dentro de uma pandemia. E as pessoas pensam em duas coisas em relação a uma infecção viral: a primeira é sempre fazer uma vacina efetiva. A segunda, usar um medicamento antiviral. Nesse caso, teríamos uma terceira via, que seria uma estimulação do sistema imunológico para fazer com que essa infecção não aconteça ou, se acontecer, tenha menos efeitos do que a infecção em si. Então, isso é interessante porque não existe nenhum medicamento desse tipo no mercado.