Estudo sobre agência de desenvolvimento regional analisa ideias de planejamento que circularam no Brasil durante a Guerra Fria
Arte:Silmara Mansur |
Por Karine Rodrigues
A solução parecia boa. Importar um modelo bem-sucedido nos Estados Unidos para alavancar o desenvolvimento, em solo brasileiro, de uma das áreas mais ricas em biodiversidade e recursos naturais do planeta, habitada nos anos 1950, por um povo “ignorante e subalimentado”, que vivia como “um lixo humano em seu próprio país”, aos olhos do governo Getúlio Vargas. A empreitada, porém, fracassou, e um dos principais motivos está ligado à sua premissa: sobrepor a técnica às interferências políticas.
Essa ideia de que, pela técnica, vai se conseguir eliminar a influência política do processo de desenvolvimento é uma pretensão, quase uma utopia. Na prática, como acontecia antes e acontece hoje, a política também faz parte desses processos
É o que aponta um estudo conduzido pelo historiador Rômulo Andrade, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), publicado na revista Diálogos latinoamericanos, da Latin American Center (LACUA). Ele investigou a atuação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), agência de desenvolvimento regional pioneira na Amazônia, criada em 1953, a partir de uma nova perspectiva: a recepção e adaptação de ideias de planejamento e desenvolvimento que circularam no Brasil durante a Guerra Fria.
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A pesquisa mostrou que diversas experiências correlatas em vários países do mundo, antes e depois da Segunda Guerra Mundial, foram produto de apropriações e do uso de ideias associadas ao New Deal, programa econômico implementado pelo governo dos Estados Unidos após a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. A iniciativa norte-americana influenciou muitos países – Brasil, inclusive – que, à época, estavam buscavam possíveis caminhos rumo à modernização. O planejamento regional era então considerado ferramenta “quase invencível” na luta contra o subdesenvolvimento, introduzindo novos conceitos na rotina econômica.
Agência dos EUA que enfraqueceu laços paternalistas serviu de inspiração
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Rômulo Andrade. Foto: Arquivo pessoal. |
Por aqui, os formuladores de políticas começaram a incorporar esses conceitos após o fim da ditadura Vargas, em 1945. Nesse contexto, surgiu a agência de desenvolvimento regional, também motivada pelo episódio dos Soldados da Borracha, quando milhares de trabalhadores recrutados para extrair látex na região, para o esforço de guerra dos Aliados, entre 1942 e 1945, desapareceram ou foram mortos após o fim do conflito. “A tragédia se transformou em instrumento de pressão política por mudanças na Amazônia”, diz Andrade.
O novo órgão governamental seguiu os princípios norteadores da Tennessee Valley Authority (TVA), anunciada como a maior realização do New Deal. Criada em 1933, para recuperar o Vale do Tennessee, a primeira agência de desenvolvimento regional nos Estados Unidos se caracterizava, entre outros aspectos, pela autonomia administrativa, integração das comunidades locais e, especialmente, contratação de trabalhadores qualificados por meio da meritocracia, evitando, assim, a influência dos políticos na concepção e realização dos projetos.
Segundo Andrade, a agência norte-americana se transformou em um modelo global, adotado para modernizar as sociedades agrárias dos países em desenvolvimento. “A TVA esteve a cargo de profissionais técnicos de primeira linha […] a agência foi capaz de trabalhar com comunidades rurais locais e mudar a sociedade sem ter que se curvar a políticos locais que eram conhecidos por serem racistas e corruptos. Consequentemente, os laços paternalistas locais tornaram-se mais fracos, o que levou à eleição de novos políticos permitindo uma mudança social mais ampla”, escreve.
Empreendimento pioneiro e moderno para transformar a Amazônia
A “TVA brasileira” nasceu embalada pelo que havia de mais moderno em termos de planejamento e desenvolvimento regional, mundialmente falando. “A análise das fontes mostra que o processo de elaboração da agência foi super sofisticado, feito com as ferramentas mais atuais daquele período”, observa Andrade. Exemplo disso foi a realização do primeiro curso de planejamento regional já feito no Brasil, destinado a qualificar os futuros funcionários da SPVEA. Foi ministrado por professores da recém-criada Fundação Getúlio Vargas (FGV), em parceria com pesquisadores da TVA, que vieram dos Estados Unidos para Belém, no Pará.
Amazônia tem sido alvo constante de desmatamento. Foto: Ana Cotta (Creative Commons)
“Por meio desses cursos técnicos, especialistas brasileiros adaptaram os ideais de modernização que circulavam naqueles anos ao contexto local, com seus desafios, questões e resoluções específicas”, escreve o historiador, que, em seu estudo, analisou os cursos em questão, além de relatórios, livros e materiais de divulgação criados pela agência. Acreditava-se, então, que a partir do ensino das modernas técnicas de planejamento, seria possível executar os projetos de desenvolvimento da Amazônia sem influência política.
Sem recursos humanos adequados, interferências políticas ganharam terreno
A partir das fontes históricas, Andrade examinou tanto os discursos locais sobre desenvolvimento quanto a formação dos especialistas brasileiros. Concluiu que a agência de desenvolvimento regional “não ficou ilesa da influência política, que, por sua vez, era vista como a principal ameaça ao desenvolvimento da Amazônia pelos formuladores de políticas da época”.
Até hoje se vê a influência da má política [nas inciativas para a Amazônia]. Isso inviabiliza projetos, pois vai haver corrupção, gente incompetente
Segundo o historiador, o fato de o corpo de funcionários ser constituído, em sua maioria, por pessoas transferidas de outras agências ou repartições públicas contribuiu para essa interferência. A maior parte das nomeações resultavam não de expertise ou mérito, mas de indicações políticas. Apenas 8% eram originalmente da SPVEA e fizeram o curso de formação.
Ter a política como principal entrave para o desenvolvimento na Amazônia, na opinião de Andrade, foi algo que perdurou. “Você vê até hoje a influência da política, até qualificaria, da má política. Isso inviabiliza projetos, pois vai haver corrupção, gente incompetente. A interferência da má política é, sem dúvida, um problema até hoje para esses projetos”, avalia o pesquisador.
“A mudança não é tentar eliminar a política. É tentar mudar a política”
Para o historiador, outro erro da época que também segue atual é tratar as alas política e técnica de forma estanque. “A agência foi muito bem planejada. Mas houve denúncias, ela acabou funcionando como um lugar de corrupção. O meu argumento é que essa ideia de que, pela técnica, vai se conseguir eliminar a influência política do processo de desenvolvimento é uma pretensão, quase uma utopia. Na prática, como acontecia antes e acontece hoje, a política também faz parte desses processos”, diz ele, afirmando que a SPVEA, que funcionou até 1966, é exemplo de que esses assuntos coexistem.
Segundo o pesquisador da COC/Fiocruz, a política pode perpetuar a desigualdade, marca da formação histórica do país, ou contribuir para o desenvolvimento da Amazônia, mas, para isso, precisa de uma transformação. “A mudança não é tentar eliminar a política. É tentar mudar a política”, avalia o historiador.