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Lógica eugênica influencia racismo, xenofobia, misoginia, LGBTfobia e capacitismo, diz pesquisador

20 maio/2022

Por César Guerra Chevrand

Solução biológica para o suposto aprimoramento das populações nacionais e da espécie humana, a eugenia provocou um grande entusiasmo na comunidade científica mundial entre o fim do século 19 e a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, especialmente, "o raciocínio era o de que a melhoria de uma geração por meio da medicina resultaria no melhoramento biológico da geração seguinte”, explica o professor e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), Robert Wegner.

Responsável por um amplo projeto de pesquisa sobre história da genética e seus impactos, desenvolvido no âmbito da COC, em parceria com a rede Transnational Transdisciplinary Network on Society and Genetics e com o projeto From Small Beginnings…, Robert Wegner também oferecerá o curso Eugenia, Nacionalismo e Racismo, a partir do dia 24 de maio, no Instituto Conhecimento Liberta. Em dez aulas, o curso pretende apresentar noções básicas sobre a eugenia; investigar como os movimentos eugênicos se organizaram na primeira metade do século 20; discutir como a eugenia se configurou no Brasil; e estudar casos explícitos de políticas e concepções mais recentes que ressoam ideias e práticas eugênicas.

De acordo com Robert Wegner, apesar do declínio dos movimentos eugênicos organizados e institucionalizados após a Segunda Guerra Mundial, as ideias e práticas eugênicas permaneceram ativas no Brasil e no mundo, influenciando até hoje debates fundamentais da sociedade. “Na medida em que a lógica eugênica é a de distinguir e hierarquizar os seres humanos, encontramos a mesma lógica operando quando nos defrontamos com o racismo, a xenofobia, a misoginia, a LGBTfobia e o capacitismo”, afirma o pesquisador.

Confira a entrevista.

O que é a eugenia e o que foi o movimento eugênico?

A eugenia se constitui enquanto um movimento organizado entre fins do século 19 e a Segunda Guerra Mundial. Nesse período, há um entusiasmo generalizado na comunidade científica e entre os políticos sobre a possibilidade de melhorar as populações nacionais e a espécie humana por meio de medidas eugênicas. É como se todos os problemas sociais e econômicos pudessem ser solucionados pela biologia. Acontece que esse mecanismo eugênico introduzia uma divisão e uma hierarquização entre e dentro das populações do globo. Existiriam os grupos mais “adequados”, por um lado, e os menos “aptos”, por outro. Para melhorar o tipo médio de uma população, as políticas governamentais deveriam incentivar a procriação dos mais “aptos” e, concomitantemente, inibir a procriação dos considerados “inadequados”. A solução biológica tratava-se, portanto, de eliminar os que supostamente causavam problemas e ameaçavam a sociedade. 

Quais as relações entre eugenia e nacionalismo no Brasil?

O movimento eugênico no Brasil começou a se institucionalizar em 1918, quando findava a Primeira Guerra Mundial, exatamente num momento de euforia nacionalista no país. Se a guerra parecia ser um sintoma da decadência da civilização europeia, no Brasil e no Continente americano poderia brotar a renovação dos povos e da cultura. Na mesma época, como Nísia Trindade Lima e Gilberto Hochman já argumentaram, graças ao movimento sanitarista, o Brasil deixava de ser condenado pela “raça” para poder ser absolvido pela medicina. Ou seja, era um momento em que as teorias racistas do século XIX estavam caindo em descrédito e a medicina, ancorada na bacteriologia, poderia tornar a população saudável. A eugenia no nosso país brotou nesse terreno e, por isso mesmo, inicialmente considerou que o melhoramento biológico dos brasileiros se daria por meio do sanitarismo e da cura das doenças. O raciocínio era o de que a melhoria de uma geração por meio da medicina resultaria no melhoramento biológico da geração seguinte. Desse modo se daria o melhoramento da “raça” brasileira.

De que maneira a eugenia influenciou os debates sobre racismo no país?

Como disse, a eugenia brotou e cresceu no Brasil exatamente em um momento em que as teorias racistas estavam sendo questionadas. Mas esse é um processo paradoxal. Primeiro, porque não foi linear. A partir do final da década de 1920, muitos eugenistas, como Renato Kehl (1889-1974), se ancoraram em teorias claramente racistas para afirmar que a mistura entre brancos e pretos degenerava a população nacional. Em segundo lugar, a lógica eugênica cria novas modalidades de racismos. Ao afirmar que existia grupos melhores que outros e que essa qualidade superior era de origem biológica, os eugenistas eram pródigos em afirmar a inferioridade intrínseca das pessoas internadas em hospitais psiquiátricos, daquelas encarceradas em presídios, das crianças nas escolas com dificuldade de aprendizado e por aí vai. Ou seja, a eugenia reeditou antigas modalidades de racismo e criou novas formas de classificar e inferiorizar pessoas. 

O que causou o declínio da eugenia e do movimento eugênico?

Após a Segunda Guerra Mundial e a revelação do Horror dos campos de concentração nazistas, a eugenia passou a ser associada ao nazismo e a busca de uma raça superior a qualquer custo. Isso colocou a eugenia na berlinda e trouxe o fim dos movimentos eugênicos organizados e institucionalizados. Apenas isoladamente alguns cientistas, biólogos, médicos ou políticos mantiveram, explicitamente, uma defesa da eugenia. A partir daí, passou a haver dois erros de perspectiva. O primeiro é o de que a eugenia havia sido implementada apenas na Alemanha nazista. Hoje está claro que dezenas de países desenvolveram movimentos eugênicos em meados do século XX que levaram, por exemplo, à esterilização, internação e exclusão de grupos de pessoas consideradas não adequadas. O segundo equívoco é o de afirmar que as práticas e as ideias eugênicas cessaram com o fim dos movimentos organizados. 

Quais são as ressonâncias do pensamento eugênico no Brasil e no mundo?

No começo dos anos 2000, por exemplo, Alexandra Stern revelou que, nos Estados Unidos, as esterilizações com fins eugênicos perduraram em instituições psiquiátricas e de educação especial até os anos 1970. Sabe-se também que Margaret Sanger (1879-1966), uma importante militante eugenista norte-americana, liderou, após a Segunda Guerra, uma instituição que financiou programas de controle de natalidade de populações pobres em diversos países do mundo, inclusive o Brasil. Num raciocínio similar ao da eugenia, os pobres dos países não desenvolvidos industrialmente eram agora considerados os “inaptos”, os “indesejáveis”. Hoje têm-se investigado as ressonâncias da eugenia de forma abrangente. Na medida em que a lógica eugênica é a de distinguir e hierarquizar os seres humanos, encontramos a mesma lógica operando quando nos defrontamos com o racismo, a xenofobia, a misoginia, a LGBTfobia e o capacitismo.