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Lima Barreto, racismo e desigualdade social abrem o Ano Letivo da COC

19 mar/2018

A Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) deu início às atividades do Ano Letivo de 2018 com a palestra ‘Lima Barreto: Triste Visionário’, ministrada pela historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz. Baseada na biografia lançada por Lilia, pela Companhia das Letras no ano passado, a palestra mostrou os contornos complexos da vida de Lima, versando, principalmente, sobre a desigualdade social e o racismo.

Realizada na última sexta-feira (09/03), a atividade deu boas-vindas aos discentes dos programas de pós-graduação, mestrado e doutorado da Casa, que lotaram o Auditório do Museu da Vida. Participaram da mesa de abertura a presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade; o vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Manoel Barral, o diretor da COC, Paulo Elian; e a representante da Associação de Pós-Graduandos Fiocruz, Barbara Cunha.

Presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, destacou a importância da conferência para o debate institucional. “É necessário pensar esta reflexão acadêmica e as questões institucionais de forma articulada. Desta forma, a palestra encontra-se em consonância com os debates que a Fundação promove, inclusive no Congresso Interno, sobre temas relacionados a desigualdade e iniquidade sociais, em várias formas de discriminação”, destacou. “É importante darmos atenção a estas questões sobre discriminação – tanto racial e social quanto aos aspectos da discriminação de saúde mental, que é muito encoberta – pois quanto mais aflorados estiverem os debates, mais estruturado será o enfrentamento”, completou Barral.

De acordo com o diretor da COC, Paulo Elian, o trabalho recente de Lilian sobre Lima Barreto é uma contribuição para pensamos o Brasil atual. “Lembrando as reflexões de Lima Barreto, que possuía um olhar crítico, cético e irônico sobre como a elite política e a burguesia, como ele próprio se referia, tratavam este país, os questionamentos evocam a questões de dimensão política, social e econômica, tão atuais no Brasil dos dias de hoje”, ressaltou. “Esta obra sobre Lima Barreto está associada a um tema que temos discutido amplamente, não somente no contexto da Fiocruz, mas principalmente na sociedade, que é a questão da desigualdade e da exclusão social. Tudo o que ele destacou no século 20, continua sendo extremamente atual”, acrescentou Magali Romero Sá, a vice-diretora de Pesquisa e Educação da COC, que mediou os debates com Lilia.

Conquistas recentes no âmbito da APG-Fiocruz

Representante da Associação de Pós-Graduandos da Fiocruz (APG-Fiocruz), Barbara Cunha, deixou uma mensagem aos alunos e falou sobre as conquistas recentes no âmbito da APG. “No contexto atual do país, é imprescindível que haja união contra a retirada de diretos sociais e de investimentos na educação, saúde e ciência. Por isso, faz-se necessário estarmos organizados e ocupando os espaços, como o da Associação dos Pós-graduandos da Fiocruz. Somente coletivamente podemos avançar na construção de uma Fiocruz cada vez mais inclusiva e na defesa de um processo democrático”, disse. “Inauguramos, em novembro do ano passado, o Centro de Apoio aos Discentes, localizado na Sala 910 da Expansão, que pode ser contatada pelo email cad@fiocruz.br. O seu fortalecimento depende, em grande parte, de nós estudantes”, completou Barbara, acrescentado que a APG está conduzindo a Pesquisa sobre o Perfil dos pós-graduandos da Fiocruz.

Para finalizar, a discente convocou os estudantes para participar da eleição da próxima gestão da APG. “Participem e contribuam compondo chapas e promovendo debates. A comissão eleitoral será estabelecida em março, e o processo eleitoral será finalizado em abril”, informou.

Desigualdade e racismo: a vida do criador de Policarpo Quaresma

Professora titular no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), Global scholar na Universidade de Princeton dos Estados Unidos, e curadora adjunta do Museu de Artes de São Paulo (MASP), Lilia Schwarcz dedicou-se aos estudos da obra de Afonso Henriques de Lima Barreto durante dez anos, o resultado foi o livro Lima Barreto: Triste Visionário. A publicação apresenta o perfil bibliográfico do escritor, abordando aspectos que incluem a vida, a obra e a questão racial.

Durante suas reflexões sobre Lima Barreto, Schwarcz conta que relacionou o momento atual brasileiro, marcado pelo declínio de direitos sociais, civis e dos ganhos considerados consolidados, com cenários semelhantes aos descritos, muitas vezes, por Lima.  “Todo biografo pergunta suas questões ao biografado. Eu questionei sobre o nosso momento, sobre os direitos civis, os marcadores sociais, as diferenças, por exemplo. E, resgatar a história de Lima Barreto nos ajuda a refletir sobre o Brasil de hoje, pois ele apresenta uma interpretação plural deste país, um autor que tratou da discriminação, da exclusão social e da desigualdade, temas que continuam tão atuais em nossos dias”, comentou.

Negro, neto de escravizados pelos dois lados, filho de pai tipógrafo e mãe professora, Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881, data que anos mais tarde, em 1888, marcaria a abolição da escravatura pela princesa Isabel. De acordo com Lilia, como uma espécie de pressagio, a coincidência de datas marcou a literatura do escritor, afirmadamente negra. “Ele produzia uma literatura negra, não por ser negro, mas por seus personagens serem negros. Desta forma, ele utiliza todo o tipo de termo para se referir a eles: azeitona escura, azeitona clara, crioulo pardo, crioulo escuro, moreno. Todos passavam por esta aquarela de cores”, disse.

Carioca dos subúrbios, que dizia pertencer ao centro, Lima Barreto viu o preconceito e a discriminação ficarem latentes quando ingressou na Escola Politécnica, destinada aos filhos das elites brasileira. “A partir deste momento, ele passou a falar mais frequentemente sobre a discriminação que sofria. Na coluna que assinava no jornal de estudantes, encontrou espaço para fazer suas críticas e o manter o seu lugar de fala”, ressaltou. “Em suas crônicas, descrevia situações cotidianas e, a todo o momento, fazia o jogo de se incluir e se excluir, que expressa a sua subjetividade. Estava sempre em uma situação de urgência e desconforto, estava sempre num outro local, e não aquele a que ele gostaria de estar”, completou Lilia, acrescentando que as poucas imagens existentes de Lima Barreto representam um pouco a ideia de um protagonista sem uma imagem a qual ele se reconhecesse.

Lilia conta que a ideia de loucura – que entrou na vida de Lima com a doença de seu pai e permaneceu até quando ele próprio foi internado no manicômio, em 1914 – também esteve relacionada à humilhação e a invisibilidade. “Em sua primeira internação, foi identificado como funcionário público, sendo da cor branca, talvez, para associar a cor a sua profissão. Já da segunda vez, em 1918, ele entra como indigente, da cor parda. Em quatro anos, ele passou de branco para pardo”, comentou. “Ainda hoje, a cor é uma demonstração muito clara de hierarquia no Brasil, este país que nos divide em cinco cores: branco, preto, pardo, amarelo, indígena. Essas cores são, na verdade, cores sociais, quanto mais invisíveis, mais escuro ou mais pardo”, criticou.

Personagem ambivalente, ambíguo e contraditório, Lima Barreto também acumulou desafetos, entre eles, o escritor Machado de Assis e modelo institucional que defendia. “Penso que não é possível escolher o projeto de Lima ou o de Machado de Assis, pois são projetos distintos. Lima afirmava que em um país pobre era preciso fazer uma literatura pobre, uma literatura que lidasse com as especificidades de onde ele morava, as especificidades do povo”, explicou Schwarcz. A última vez que Lima Barreto foi visto, de acordo com relatos, foi durante o centenário da independência do Brasil, no Rio de Janeiro. “Ele não gostou, disse que a mania de patriotada e o estrangeirismo tinham invadido os brasileiros, e foi visto vagando pelas ruas do Centro da cidade”, disse Lilia.

Para finalizar, Lilia Schwarcz diz que Lima se confunde com a história do Brasil e também com a história de seus personagens: “ele é Clara dos Anjos, Policarpo Quaresma, Isaias Caminha, e também não é, nesta fronteira porosa entre ficção e não ficção”, explicou. “As histórias de Lima são de muitos brasileiros. São de famílias negras, afrodescendentes, que foram encontrando frestas e provando que a verdadeira libertação, a verdadeira abolição da escravatura, se fazia pela educação, e não pela letra morta da lei”, concluiu Schwarcz.

Lima Barreto morreu em 1922, por um colapso cardíaco, consequência da bebida.