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Legado da redemocratização do país, gestão participativa na Fiocruz se fortalece no 9º Congresso Interno

08 dez/2021

Presonagem central da história dos congressos internos da Fiocruz, Arlindo Gómez reflete sobre o processo democrático na instituição em entrevista

Foto: Glauber Gonçalves

Arlindo Gómez

Por Jacqueline Boechat

O ano era 1988, o presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Sérgio Arouca. Embalados pela efervescência política e social, que reivindicava naquele momento a criação de uma nova sociedade brasileira baseada na democracia e no fortalecimento da participação cidadã, trabalhadores da instituição deram início a um movimento, que culminou na realização do seu primeiro Congresso Interno. Instância máxima de deliberação da Fiocruz, parte central de seu modelo de gestão democrática e participativa, o Congresso Interno ocorre a cada quatro anos, a partir da convocação do presidente eleito pelos servidores da Fiocruz.

Como poderíamos defender a democratização dos processos de tomada de decisões, a democratização do próprio processo político e das gestões e não adotar a mesma proposta na própria casa? Nessa conjuntura, em 1988, realizamos o nosso primeiro Congresso Interno

Passados 33 anos, o Congresso Interno chegou a sua nona edição em 2021 com o desafio de ser realizado em meio à pandemia de Covid-19, em um contexto de profunda desigualdade social. Essa questão obrigou a organização das atividades presenciais do congresso, que acontecem de 8 a 10 de dezembro, a adotar um rigoroso protocolo de segurança sanitária.

Os trabalhos em grupo e a realização das plenárias de votação do 9º Congresso Interno concluem um processo de meses de mobilização e discussões nas diversas instâncias institucionais, que deram origem ao documento Desenvolvimento sustentável com equidade, saúde e democracia: a Fiocruz e os desafios para o SUS e a saúde global, referência para a construção coletiva de um documento de teses e diretrizes estratégicas, de compromisso com a sociedade, que guiará as ações da Fiocruz no segundo mandato da presidente Nísia Trindade Lima.

"Cada congresso é único. O importante dos congressos é se eles são adequados na sua temática, no seu desenvolvimento, à realidade recorrente. Então, não há comparação", é o que afirma com muita propriedade o professor emérito da Fiocruz e superintendente do Canal Saúde, Arlindo Fábio Gómez, que participa ativamente da organização dos congressos da instituição desde a primeira edição. Em conversa com a Casa de Oswaldo Cruz, ele fala do processo histórico de constituição dos congressos internos, os desafios, as conquistas, e o que espera desta edição: “Se conseguirmos consenso nos elementos do título do 9º Congresso Interno, já sairemos vitoriosos”.

O Congresso Interno é um símbolo da gestão democrática e participativa da Fiocruz. Como se constituiu esse processo, historicamente?

A gente precisa se reportar para onde está a origem disso tudo, em 1985, com o processo de redemocratização do país, quando Sérgio Arouca assumiu a Fiocruz como presidente com a proposta de incorporá-la ao movimento de criação de uma nova sociedade brasileira, que é o que estava no cerne da proposta da redemocratização.

Esse caminho passou pelas participações na 8º Conferência Nacional de Saúde, em 1986, a primeira que incluiu outros atores além dos membros da administração da saúde; na Assembleia Nacional Constituinte, concluída em 1988 com a promulgação da Constituição Cidadã, que aprovou a reforma sanitária, fruto da 8ª Conferência, consolidando nas leis 8080 e 8142 a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e os mecanismos de participação e controle da sociedade sobre o Estado, como as próprias conferências de saúde, os conselhos de saúde municipais, estaduais e nacional, entre outros.

Como o senhor diz, havia um sentimento forte de toda a sociedade em torno da construção de algo novo…

Era a efervescência de uma sociedade para a qual a questão da democracia era fundamental, em que a própria Constituição [ de 1988] simbolizava a importância da participação cidadã. Integramos um processo no qual participamos de uma conferência de saúde, cujos resultados foram levados para a Assembleia Nacional Constituinte e aprovados na Constituição Federal, e tivemos uma experiência marcante de discussão da nova Uerj [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], da qual tomaram parte professores, alunos e gestores. Todo esse processo foi acompanhado muito de perto por nós, pela Fundação, e teve reflexos diretos. Como poderíamos defender a democratização dos processos de tomada de decisões, a democratização do próprio processo político e das gestões e não adotar a mesma proposta na própria casa? Essa é a questão que se colocava. Nessa conjuntura, em 1988, realizamos o nosso primeiro Congresso Interno.

E como foi organizar esse primeiro congresso?

O primeiro congresso foi constituído com base na participação ampla por meio da representação nas unidades [técnico-científicas da Fiocruz], proporcional ao número de servidores de cada uma. Esse foi, como nós chamamos, o Congresso Instituinte, aquele que instituiu o modelo de participação democrática da comunidade da Fundação Oswaldo Cruz no estabelecimento do que viria a ser o conjunto de ações da instituição dos próximos tempos. Porém, mais do que um conjunto de ações, do que determinar o que seria feito, o importante era o direcionamento, para onde a instituição iria, estabelecer rumos.

E o interessante é que não foi um processo endógeno, a instituição olhando para o seu próprio umbigo. Estávamos atentos a um contexto internacional, um contexto global, uma análise do que acontecia no nosso mundo, com ciência, com tecnologia, com saúde, com desenvolvimento, democratização e tudo mais. Esse contexto foi levado para dentro do panorama brasileiro, que estava em pleno processo de aprovação de uma nova constituição, de uma nova ordem para o país, de uma nova orientação: para onde esse país vai, o que ele deseja, tendo a cidadania como questão central.

Como se deu isso em relação às demais instituições de pesquisa e ensino? Todas estavam no mesmo ritmo?

Claro que algumas instituições não tiveram condições internas ou a percepção para se incorporar nesse grande movimento, mas foram poucas. A questão da cidadania era o mote das ações. Desde o discurso de Arouca na 8ª Conferência, quando ele estabeleceu que “democracia é saúde”, e mais tarde, “saúde é democracia”, os conceito de saúde, democracia e cidadania estavam absolutamente imbricados. As universidades estavam atentas para isso, bem como os centros de pesquisa e também a Fiocruz.

Ao longo dos Congressos dos quais participou, quais foram os maiores desafios à realização?

As dificuldades são resistências que você encontra no antigo modelo e de pessoas, de servidores de qualquer nível, acostumados a um determinado padrão de tomada de decisões, que evidentemente não incluía a participação de qualquer coletivo. Também havia a dúvida se o modelo funcionaria, se caberia numa instituição científica: como é que ficaria a posição de quem já tinha galgado postos mais elevados e reconhecimento no campo da ciência, da tecnologia, do ensino, da produção? O que aconteceria com a introdução dessas mudanças em termos de poder? Uma proposta dessa ordem é uma alteração da distribuição interna de poder dentro da instituição, sem dúvida nenhuma.

Por outro lado, houve uma adesão muito grande, muito forte. Grupos de pesquisadores, tecnologistas e professores encontraram possibilidade de exercitar dentro da Fundação Oswaldo Cruz aquilo que era uma proposta para o país. Claro que as mudanças não se deram sem conflitos, obviamente, porque mudança de poder é uma conquista. Então isso se dá por meio de conflitos, mas que não querem dizer violência, mas, sim, oposição de ideias, o que é normal.

Além da realização de congressos internos, quais as conquistas da Fiocruz na busca pelo fortalecimento e aperfeiçoamento da gestão democrática?

Dentro da Fundação Oswaldo Cruz, quando se fala de Congresso Interno, fala-se também em outros mecanismos de democratização, digamos, complementares: um Conselho Deliberativo representativo e atuante; conselhos deliberativos nas unidades; eleições para presidente [da Fiocruz] com representação e voto igualitário de todos os servidores – que se reproduzem nas unidades [técnico-científicas] e nos departamentos –; câmaras técnicas como instâncias de apoio, fundamentação e estudo para subsidiar as decisões do Conselho Deliberativo; coletivo de gestores, que se unem para refletir sobre determinada situação ou sobre o momento que se está vivendo; assembleias livres, leves e soltas; a presença de um sindicato atuante, que não existia até então, mas que já começa em [19]85. Então, é todo esse conjunto que dá origem ao que nós temos hoje, que se caracteriza como processo democrático da Fiocruz.

O que mudou nos Congressos Internos da primeira edição para cá?

Cada congresso – e isso é importante entender – corresponde a um momento. Ele é único, não tem como compará-los. A questão central é você identificar a temática. Então, o primeiro foi um congresso instituinte, que propôs um novo estatuto, que, dentre outras cláusulas pétreas, instituiu uma fundamental: a unidade da instituição. Na época, havia uma série de propostas de reforma administrativa do setor público que iriam fragmentar a Fiocruz. Então, nesse congresso, a luta era pela manutenção da unidade institucional. Hoje, essa questão não é mais objeto de reflexão. No sexto e sétimo congressos, discutiu-se a criação de uma sociedade anônima para dar dinamismo à produção; esse era o tema do momento.

No 9º Congresso Interno, estamos em uma situação muito especial, não só pela pandemia, mas por tudo que está acontecendo no panorama global desse nosso planeta, no panorama nacional, no Ministério da Saúde, particularmente na área da ciência, tecnologia e inovação, da cultura, da comunicação, da informação, temas que merecem reflexão e sobre os quais a instituição tem que se posicionar. Daí que ele está focado em teses. Não é um congresso organizacional como foi o primeiro, mas calcado em cima de teses e diretrizes. Essas teses estão todas voltadas para contextos maiores.

Pela primeira vez, a preparação do congresso se deu com parte dos trabalhadores ainda em regime de trabalho remoto. Como foi esse processo?

Hoje, com todas as facilidades e os hábitos de todos os trabalhadores no uso da informática, não houve uma dificuldade maior. A estratégia que se obedeceu foi basicamente a mesma: produção de um documento prévio, que foi enviado a todas as unidades, a todos os trabalhadores da Fundação. As unidades fizeram várias plenárias, várias assembleias quando necessário, tiraram suas posições e acrescentaram questões que acharam pertinentes. Um grupo designado pelo CD recebeu as contribuições, que chegaram a mais de mil! Então, o fato de parte da Fundação estar em regime de trabalho remoto não impediu essa contribuição fértil, que é uma característica nossa.

O documento foi consolidado, aprovado pelo Conselho Deliberativo, e está na página da Fiocruz na Internet. Agora, os delegados e observadores virão para a conferência e participarão dos trabalhos nos dias 8, 9 e 10 de dezembro. Todas os participantes seguirão os procedimentos de segurança sanitária para reduzir o risco de transmissão do vírus da Covid-19. O protocolo de procedimentos foi elaborado por uma equipe de profissionais da Fiocruz especialmente para o evento. (Veja aqui todas as ações de segurança implementadas)

Quais são os resultados esperados na conclusão do 9º Congresso Interno?

Se nós conseguirmos estabelecer consensos, apenas no que está postulado como título do evento [Desenvolvimento sustentável com equidade, saúde e democracia: a Fiocruz e os desafios para o SUS e a saúde global], apenas em relação a essas categorias elencadas – o que é desenvolvimento sustentável com equidade, saúde e democracia; quais são os desafios do SUS em relação ao Brasil e a saúde global –, se conseguirmos isso, nós já sairemos vitoriosos desse 9º Congresso Interno. A tarefa vai exigir habilidade de todos para o diálogo, pois diferentemente de 1988, em que todos remavam para uma mesma direção, hoje, há forças antagônicas, há conflitos.