Pedro Felipe Neves de Muñoz foi aluno do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC
No dia 14 de dezembro, em Brasília, o jovem historiador Pedro Felipe Neves de Muñoz receberá menção honrosa no Prêmio Capes pela tese À luz do biológico: psiquiatria, neurologia e eugenia nas relações Brasil-Alemanha (1900-1942), defendida em 2015 no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). O autor teve como orientadora a professora e pesquisadora Cristiana Facchinetti, com coorientação de Stefan Rinke.
Nesta entrevista, Pedro Felipe Neves de Muñoz discorre sobre o que o levou ao tema da história da medicina mental, os autores estudados e a trajetória dos principais nomes da psiquiatria no início do século 20 no Brasil e na Alemanha. No percurso em busca de respostas, pesquisou os itinerários políticos e as agendas intelectuais dos médicos brasileiros e alemães.
Inspirado no historiador francês Jacques Revel (“a história é um jogo de escalas”), o pesquisador pretendia, ao desenvolver sua tese, preencher algumas lacunas da historiografia da medicina mental no Brasil. Para isso, debruçou-se sobre personagens como o baiano Juliano Moreira. “Não tínhamos maiores informações sobre como Juliano Moreira era visto e tratado por seus colegas estrangeiros. Tampouco tínhamos a real dimensão de sua rede internacional, como ela foi montada, em parceria com que médicos brasileiros, em contato com que médicos alemães e estrangeiros, com que recursos, que contingências históricas”, disse.
Ao fim da Primeira Guerra, cientistas franceses e belgas organizaram um boicote à ciência alemã. […] Nesse contexto, organizou-se uma política cultural exterior e uma política latino-americana que contribuíram para o aumento da presença alemã na região.
Pedro Felipe de Muñoz estudou nomes importantes da psiquiatria alemã, entre os quais Emil Kraepelin, bem como sua influência em seu campo de atuação, abordando as críticas que recebeu em seu país e também no Brasil. Ao falar sobre as pesquisas em torno da eugenia e a medicina mental internacional, relata que há um esforço relativamente recente de trabalho com a história transnacional ou global no Brasil. O historiador disse acreditar que nos próximos anos novos trabalhos contribuirão com o tema.
Professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Pedro Felipe leciona a disciplina História das Cidades. Dedica-se a pesquisas em história das ciências e história contemporânea sob a perspectiva transnacional, em especial, às relações científicas entre Brasil e Alemanha na primeira metade do século 20. Em sua tese de doutorado, o historiador mergulhou em temas de seu interesse: a história dos “saberes psi” (psicologia, psiquiatria e psicanálise) e da eugenia, sobretudo a história da higiene racial alemã durante a República de Weimar e o Terceiro Reich.
Graduado em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Pedro, que também fez mestrado na COC, realizou entre 2013 e 2015 doutorado sanduíche na Freie Universität Berlin. Confira a seguir a entrevista completa concedida por Pedro Felipe Neves de Muñoz ao portal da Casa de Oswaldo Cruz.
Pedro Muñoz. Foto: Arquivo Pessoal. |
A sua tese buscou respostas para algumas questões ainda não respondidas pela historiografia da psiquiatria brasileira na primeira metade do século 20. Para isso, recorreu a um sem número de documentos na Alemanha, principalmente. Diria que conseguiu aprofundar mais o entendimento em torno da circulação do conhecimento nessa área, especialmente na relação Brasil-Alemanha?
As viagens internacionais de psiquiatras e neurologistas são citadas em diversos trabalhos da historiografia brasileira, mas não como parte de uma profunda investigação sobre as redes científicas transnacionais da medicina mental. Embora sejam trabalhos de grande qualidade, existem lacunas, sejam de ordem analítica, sejam datas e dados gerais. Isso ocorreu pela própria abordagem da historiografia, ou mesmo, pela grande perda e dispersão de fontes de época e, ainda, pela pouca existência de acervos pessoais. Nesse sentido, a documentação alemã contribuiu para o trabalho de análise dessas lacunas. Talvez, o caso do psiquiatra baiano Juliano Moreia seja o mais exemplar. Por ter sido um dos principais nomes da psiquiatria brasileira, na primeira metade do século 20, Moreia foi muito estudado pela historiografia. Porém, os estudos se restringiam a perspectiva da história nacional, fazendo com que suas viagens e seus contatos internacionais fossem apenas acionados para explicar as reformas empreendidas por ele, ao longo de sua direção no Hospício Nacional de Alienados, entre 1903 e 1930. Nesses trabalhos, foi muito analisada a reapropriação da psiquiatria kraepeliana, seja em uma perspectiva difusionista ou não. Sabia-se da fama internacional de Juliano Moreira. Porém, não tínhamos maiores informações sobre como Juliano Moreira era visto e tratado por seus colegas estrangeiros. Tampouco, tínhamos a real dimensão de sua rede internacional, isto é, como ela foi montada, em parceria com que médicos brasileiros, em contato com que médicos alemães e estrangeiros, com que recursos, que contingências históricas favoreceram a sua organização etc. Embora a tese aprofunde algumas questões do contexto nacional, o foco maior da tese foi estudar o intercâmbio e as relações científicas bilaterais entre Brasil e Alemanha. Era nesse ponto que eu e meus orientadores, Cristiana Facchinetti e Stefan Rinke, pretendíamos dar uma maior contribuição para a historiografia. O objetivo da tese foi mostrar como as ideias, saberes e modelos institucionais circulavam. No caso de Juliano Moreira, mostrei quando exatamente ocorreu sua primeira viagem; como e em que circunstâncias ocorreram as demais; o que elas representaram; discuti como sua primeira viagem a Europa modificou sua agenda de trabalho; comparei a agenda de pesquisa de Moreira com a de Kraepelin, bem com os modelos institucionais criados ou acionados pelos dois; acompanhei a formação de sua equipe de colaboradores ao longo de sua trajetória; mostrei que Afrânio Peixoto, Ulysses Vianna, Antonio Austregésilo e, por fim, Cunha Lopes atuaram em diferentes momentos e em distintas circunstâncias na parceria com Juliano Moreira durante o processo de aproximação da psiquiatria brasileira com a alemã, já que cada um desses personagens tinha seu próprio itinerário político e sua própria agenda intelectual de trabalho.
Por que cientistas da medicina mental desses dois países se aproximaram naquele período?
Em primeiro lugar, há uma motivação pessoal. Simultaneamente, observei as resistências de outros grupos, que tinham suas próprias agendas e itinerários políticos. Faço direta referência aos médicos Teixeira Brandão e Henrique Roxo, que estavam mais afinados com a rede científica franco-brasileira. Mas, para que os objetivos pessoais se traduzissem na formação, aproximação e dinamização de redes científicas, outros fatores tinham que ser investigados, conforme indicou Peter Haas em seu texto sobre as comunidades epistemológicas: fontes de financiamento governamentais e privadas; relações com o Estado; questões linguísticas; estabelecimento de contatos e trocas com outras comunidades epistemológicas etc. Para citar alguns exemplos, destaquei que Juliano Moreira fez parte da Sociedade Brasileira de Amigos da Cultura Alemã (1922) e que, através dela, ele conseguiu arrecadar 100.000 marcos para socorrer o Instituto Alemão de Pesquisas Psiquiátricas de Munique, fundado por Kraepelin, em 1917. Após a Primeira Guerra Mundial, a instituição de Kraepelin [Emil] passava por dificuldades financeiras, em meio à crise inflacionária de 1922 e 1923 da República de Weimar. Por essa razão, Kraepelin viajou aos Estados Unidos e conseguiu uma nova fonte de financiamento para o seu instituto, através da Fundação Rockefeller. A vinda de médicos alemães para o Brasil era custeada por sociedades médicas responsáveis por arrecadar os recursos necessários para pagar as viagens e estadias. Dessa forma, ao longo da narrativa, alguns acontecimentos e conjunturas históricas também foram relacionadas com as redes de Juliano Moreira e dos médicos alemães: os resultados da Primeira Guerra Mundial; as dificuldades econômicas dos médicos e das instituições alemães na República de Weimar; a formação da política cultural exterior alemã (Auswärtige Kulturpolitik); a chegada de Vargas e Hitler ao poder etc.
Em que medida o discurso biológico foi preponderante para o avanço da medicina mental como ciência e como o Brasil contribuiu para isso?
Michel Foucault, em O Nascimento da Clínica, mostra que a medicina do século 17 e 18 operava segundo um modelo classificatório, a partir do qual as doenças eram elencadas como espécies, tal como na história natural. As autópsias eram proibidas e não havia uma correlação entre a doença e o corpo doente, isto é, não se identificava a parte do corpo onde se localizava a doença. Foi Bichat [Marie François Xavier] que realizou essa correspondência para constituir uma anatomoclínica. O nascimento da clínica ocorreu, então, com o desenvolvimento da anatomopatologia, da medicina das epidemias e do uso do microscópio (bacteriologia), modificando os mecanismos de produção da “verdade” sobre a vida e a morte humana. A ciência passou, assim, a ocupar o lugar que outrora era exercido pela religião. Em “Microfísica do Poder”, Foucault defendeu que a medicina e a sociedade capitalista teriam investido no corpo, como parte de um dispositivo biopolítico. Ele argumentou que a medicina do século 18 realizou um movimento do coletivo para o individual: medicina de estado (Prússia), medicina urbana (França) e medicina da força de trabalho (Inglaterra). Mais tarde, com Louis Pasteur e Robert Koch houve uma mudança epistemológica na produção do saber médico: a revolução bacteriológica. Segundo Cunningham, ela deu uma contribuição decisiva para etiologia médica ao identificar agentes microscópios como patógenos e transmissores de doenças. Apontou também a existência de vetores e contribuiu para a produção de vacinas. Com isso, a medicina realizou um novo investimento no corpo e no biológico, utilizando-se de novas ferramentas (microscópio e laboratórios) e novas formas de olhar (Foucault). Embora isso não tenha sido um processo linear, muito menos marcado pela ausência de debates, polêmicas e resistências, pode-se dizer que a revolução bacteriológica representou um importante capítulo da história da medicina como ciência. No caso da medicina mental, observei que os médicos alemães, desde o século 19, estavam centrados nos mesmos objetivos: uso do microscópio, criação de laboratórios, desenvolvimento de estudos clínicos e anatomofisiológicos, muita especialização e experimentação etc. Atento a tudo isso, Kraepelin montou uma equipe de colaboradores e uma nova agenda de pesquisa para a medicina mental em Dorpat, em Heidelberg e, finalmente, em Munique. No entanto, o próprio Kraepelin anotou em sua “Autobiografia” que existiam muitas dificuldades para a psiquiatria alcançar êxitos similares aos da bacteriologia. Diferentemente dos neurologistas do século 19, que colocaram a clínica em segundo lugar, por entenderem a doença mental como incurável, Kraepelin fez uma defesa feroz da importância da clínica e da psicologia, isto é, do contato com os pacientes. Ao tentar solucionar as dificuldades para a produção do conhecimento científico na medicina mental, Kraepelin em colaboração com Franz Nissl e Alois Alzheimer, montou uma agenda de trabalho inovadora que circulou internacionalmente. No Brasil, coube a Juliano Moreira realizar a reapropriação das diretrizes de pesquisa lançadas por Kraepelin. Em uma conferência, no Rio de Janeiro, em 1931, o médico alemão Walter Spielmeyer destacou os avanços da medicina mental desde o desenvolvimento das técnicas de microscopia de Nissl, ainda no século 19. Porém, destacou também a existência de lacunas e persistentes dificuldades. Em 1933, Ernst Rüdin, ex-aluno e colaborador de Kraepelin em Munique, assumiu a direção do Instituto Alemão de Pesquisas Psiquiátricas e implementou uma agenda de trabalho radicalmente diferente da perspectiva lançada por Kraepelin e retomada por Walter Spielmeyer – que havia se tornado diretor do instituto quando Kraepelin faleceu, em 1926. Rüdin centralizou os esforços na psiquiatria genética e na higiene racial (eugenia alemão). O médico brasileiro Ignácio da Cunha Lopes, que acompanhou o trabalho de Rüdin, em 1930, destacou que a fase curativa da medicina havia declinado, sendo substituída pela fase profilática. Isto quer dizer que a clínica, a psicologia e mesmo a anatomopatologia de Nissl e Spielmeyer cediam lugar à psiquiatria genética e à eugenia, que representavam outro tipo de discurso biológico da medicina mental, bem como uma distinta agenda biopolítica. A diferença entre o Brasil e a Alemanha é que os colegas brasileiros, embora afinados no discurso biológico da higiene racional alemã (Cunha Lopes foi um deles), não conseguiram colocar em prática no país essa outra agenda biopolítica mais radical, que renegou a clínica em prol da esterilização ou mesmo da eutanásia. Além disso, mostrei que essa agenda biopolítica mais radical não era um consenso, nem na República de Weimar, nem no Brasil dos anos 1920 e 1930. Para entender como ela se tornou prioritária na Alemanha, tive que seguir a história das universidades e dos cientistas alemães no Terceiro Reich.
Em sua tese, você lança mão do conceito de biopolítica numa ciência organizada em redes. Além disso, discute como a questão política influenciou decisões de governo, envolvendo inclusive aspectos econômicos. Até que ponto a pesquisa em torno da medicina mental teve influência dessa disputa?
No campo da diplomacia, observei como as questões estatais se relacionavam como o contexto médico e científico da época. A Primeira Guerra Mundial foi sem dúvidas em divisor de águas. Por essa razão, dividi a tese em duas partes. A primeira parte versa sobre o período anterior a essa guerra, já a segunda parte fala sobre o intercâmbio médico teuto-brasileiro após a guerra. Os anos 1920 são bastante interessantes, pois nesse período se coloca fortemente o tema do internacionalismo na agenda política, cultural e científica da modernidade ocidental (para nos restringirmos ao contexto geográfico da tese). Na medicina mental não foi diferente. Houve uma grande circulação internacional de médicos e uma forte cooperação intelectual. O que eu pude observar, através dos trabalhos de André Felipe Silva, Magali Sá [Romero], Stefan Wulf e Stefan Rinke (só para citar alguns exemplos) é que a Alemanha saiu bastante debilitada da guerra, seja do ponto de vista político e econômico, seja na seara científica internacional. Ao final da Primeira Guerra Mundial, os cientistas franceses e belgas organizaram um boicote à ciência alemã. Os cientistas alemães foram proibidos de participar dos congressos e eventos internacionais. A língua alemã, até então forte na ciência internacional, também foi excluída. Nesse contexto, como disse, organizou-se uma política cultural exterior (Kulturpolitik) e uma política latino-americana (Lateinamerikapolitik) que contribuíram para o aumento da presença alemã na América Latina, bem como para o acirramento da disputa por influência entre França e Alemanha na América do Sul. Embora os cientistas tivessem suas próprias iniciativas, eles se associaram a essas políticas para barganhar apoio econômico junto ao Estado (brasileiro e também o alemão). Isso facilitou, por exemplo, a circulação de médicos brasileiros na Europa e de médicos alemães na América do Sul. Entre os médicos alemães, vieram basicamente neurologistas, cujo esforço de atração por parte dos brasileiros pode ser encontrado nas fontes antes mesmo da Primeira Guerra Mundial.
Franceses e alemães protagonizaram um embate em torno do tema saúde mental. Porém, os alemães acabaram tendo prevalência nos estudos de pesquisadores brasileiros. Por que isso aconteceu?
Não creio que podemos falar em prevalência. Ao longo da tese, destaquei que essa prevalência pode, no máximo, ser encontrada em alguns médicos. Ou seja, uma preferência de um determinado médico, seja por razões teóricas, seja por paixões políticas. Alguns médicos brasileiros eram sem dúvidas francófilos e outros germanófilos. Embora Juliano Moreira estivesse afinado como o grupo dos germanófilos, pareceu-me que seu espírito internacionalista (tão defendido por Albert Einstein) o levou a exaltar os avanços científicos e culturais dos povos estrangeiros, independente da nacionalidade. Moreira circulou por toda a Europa, pelo norte da África e, na Ásia, esteve no Japão. Via muita qualidade na medicina nipônica, bem como foi defensor da importância da imigração japonesa no Brasil. Ele argumentava que os estrangeiros deveriam ser selecionados, através de critérios médicos e científicos, porém, jamais por critérios raciais. Ele, como médico negro, não tolerava o racismo biológico que muitas vezes embasava algumas teorias médicas de sua época.
Emil Kraepelin é o principal nome da psiquiatria organicista. Qual foi a sua influência na psiquiatria brasileira no século 20?
Kraepelin foi uma personagem de grande importância internacional para a psiquiatria. Na tese, sigo o rastro da trajetória de Kraepelin para entender como ele se tornou tão importante dentro e fora da Alemanha. Porém, uma fala do professor Flávio Edler, em uma disciplina sobre a história da psiquiatria, acabou me marcando profundamente. A história tradicional da psiquiatria costuma destacar cânones, sem problematizar quem eram de fato esses personagens. Na verdade, não se trata de negar que alguns nomes tenham se destacado historicamente. Contudo, Edler chama a atenção de que a história da medicina e das ciências é mais um terreno de disputas na arena intelectual do que essa narrativa pacificada dos cânones, que exalta as qualidades e omite as dificuldades e deficiências de um dado personagem. Parece-me que é justamente aí que reside a crítica de Nietzsche e Walter Benjamin à história dos grandes nomes e dos vencedores. É por essa razão que a nova história política passou a investir nas trajetórias. E foi o que eu fiz. Embora Kraepelin tenha se tornado um dos psiquiatras de maior fama internacional, na Alemanha seu trabalho não era consensual. Havia o grupo dos antikraepelianos, do qual o psiquiatra Karl Bonhöffer, catedrático da Universidade de Berlim, fazia parte. Eles não concordavam com as conclusões do diagnóstico diferencial de Kraepelin e, portanto, com sua classificação psiquiátrica. E os médicos brasileiros tinham grande estima por Bonhöffer, cuja clínica psiquiátrica era muito frequentada por colegas do mundo todo. No Brasil, colocamos essa questão de modo similar. Juliano Moreira não era uma unanimidade. Ao retomar as ideias de Kraepelin, Juliano Moreira se deparou com as discordâncias de Teixeira Brandão, catedrático de psiquiatria e neurologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Moreira teve que brigar na arena intelectual (defender suas ideias e pontos de vista), mas teve também que negociar no plano político. O resultado dessas negociações foi a publicação da classificação nacional de doenças mentais de 1910. Embora, Kraepelin tenha sido uma grande referência, ele foi também um dos principais pontos de discordância. É dessa forma que propus entender Kraepelin e sua importância para a psiquiatria brasileira do século passado.
Poderia falar um pouco sobre as duas principais correntes desse período: a reducionista (francesa) e a organicista (alemã)?
Em primeiro lugar, deixei de lado esse guarda-chuva tão usado para falar da psiquiatria alemã. Refiro-me ao organicismo. Embora os estudos anatomopatológicos produzidos nos laboratórios alemães tivessem marcado uma época, penso não ser correto dizer que apenas os alemães eram organicistas. Antonio Austregésilo, após visitar os Estados Unidos em 1927, defendeu que os estudos semiológicos e anatomopatológicos estavam bastante avançados na América do Norte. Na França, perseguia-se, desde Pinel, o extrato orgânico e biológico da doença mental. Na tese, mostro, por exemplo, que Kahlbaum [Karl Ludwig] – importante referência para Kraepelin – dialogava com seus colegas franceses Falret [Jean-Pierre] e Bayle [Antoine-Laurent]. Estes dois acreditavam que a patologia mental poderia ser isolada, tal como ocorreria na anatomoclínica da medicina geral. Quando Henrique Roxo visitou Paris, ele destacou a importância dos laboratórios franceses e dos estudos anatomopatológicos. Por essa razão, decidi abrir mão desse guarda-chuva do organicismo e decidi analisar os diferentes discursos biológicos produzidos pela medicina mental, no período estudado. Isso se mostrou bastante importante para compreender também as relações entre os saberes investigados: psiquiatria, neurologia e eugenia.
Por que havia tanta rivalidade no meio científico, especialmente na medicina mental, quando o debate envolvia questões vinculadas a ciência, raça e eugenia?
As rivalidades são inerentes da arena intelectual e científica. Não há como ser diferente, principalmente, nos contextos ditos democráticos. Nos regimes autoritários/totalitários, essas rivalidades também existem, porém, os posicionamentos precisam ser bem calculados em relação à ideologia oficial. Na tese, cito o caso de um colaborador de Ernst Rüdin, chamado Hans Luxenburger. Como católico, ele publicou suas discordâncias com a política científica nazista, em pontos que ofendiam os preceitos da Igreja. Não tardou muito tempo e a SS [Schutzstaffel – a tropa de elite criada por Adolf Hitler] conseguiu afastá-lo de seu posto em Munique. Ele, porém, recebeu uma pena suave. Foi transferido para trabalhar como médico da Luftwaffe (Força Aérea). Foi uma pena suave se compararmos com outros casos fatais. O caso de Luxenburger ilustra bem o debate envolvendo a relação entre ciência e eugenia. Falamos anteriormente que Rüdin, ao combinar ciência, raça e eugenia, afastou-se das diretrizes propostas por Kraepelin para a pesquisa psiquiátrica. No Brasil, essa combinação entre ciência, raça e eugenia dividiu os médicos do grupo de Juliano Moreira e os médicos do grupo de Henrique Roxo e Renato Kehl – só para dar um exemplo, ainda que esquemático.
Como a Era dos Extremos acabou contribuindo para o desenvolvimento da medicina mental no século passado?
Acho curiosa a sua pergunta, embora ela seja muito pertinente. Digo isso, porque na tese eu procurei entender o inverso, isto é, como e por que a medicina mental contribuiu para a Era dos Extremos. Porém, existem muitos trabalhos que responderão a sua pergunta. Todos eles foram produzidos ao longo do movimento da Reforma Psiquiátrica. Não há dúvidas que as grandes guerras, os genocídios, o holocausto e os autoritarismos contribuíram, e muito, para que a psiquiatria tenha sido amplamente contestada e modificada, na segunda metade do século 20. Os trabalhos de Franco Basaglia, Benedetto Saraceno, Paulo Amarante, Joel Birman e Jurandir Freire Costa discorrem bem sobre as mudanças pelas quais a psiquiatria passou no mundo e no Brasil. A reforma foi realizada e, aqui, foi organizada uma rede de atenção psicossocial, com ambulatórios e CAPs [Centros de Atenção Psicossocial]. Parece-me que, no entanto, vivemos novos desafios no século 21. Temos uma sociedade altamente medicalizada, baseada no espetáculo, no consumo e no imperativo da felicidade. O resultado disso é um alto consumo de remédios psiquiátricos como Rivotril e Ritalina, muitas vezes sem o devido acompanhamento médico. Os elevados índices de depressão, pânico, alcoolismo e drogadição chamam bastante a atenção dos especialistas. Aos historiadores, cabe investigar a relação entre o DSM IV e V [Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, no original em inglês (4ª e 5ª edições)] e os chamados médicos neokraepelianos. E, talvez, assim, apresentar as continuidades e descontinuidades entre a psiquiatria biológica do século 21 e a psiquiatria alemã da primeira metade do século 20. Talvez, neste ponto a minha tese de doutorado traga contribuições importantes, embora não seja esse o seu tema, inclusive, porque foge bastante do recorte temporal da pesquisa.
Sua tese constatou que há poucos estudos sobre eugenia e medicina mental internacional, inclusive no Brasil. Por que existem poucos trabalhos nessa área?
Primeiramente, porque há um esforço relativamente recente de trabalho com a história transnacional ou global, no Brasil. Creio que nos próximos anos teremos novos trabalhos que contribuirão bastante com a temática. Fora do país, já há um campo consolidado de estudos transnacionais que pouco explora, porém, as relações da Europa com a América Latina. Há uma dificuldade linguística aí. Além disso, embora haja muitos estudos de qualidade publicados em inglês, entendo que a produção [nesse idioma] não dá conta do universo de referências importantes disponíveis, sejam elas fontes ou bibliografias acadêmicas produzidas em espanhol, francês, alemão etc. Há que se investir no estudo de idiomas.