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“Golpe de 1937 inaugurou tradição golpista” no regime republicano, declarou historiadora da USP em aula inaugural na COC

05 abr/2017

 

Professora Maria Helena Capelato em palestra no Encontro às Quintas. Foto: Vinícius Pequeno

 

“ Por que motivos uma República anciã ainda apresenta saúde frágil – frente a situações de crise econômica e política – e inspira cuidado? ”, indagou a historiadora Maria Helena Rolim Capelato, titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). A professora lembrou que a experiência republicana foi interrompida diversas vezes, a primeira em 1937; depois, novamente, em 1964. “Acredito que revisitar esse momento nos ajuda a compreender fragilidades e limites da republica liberal, proclamada em 1889 a partir de um golpe, que teve à frente um marechal monarquista [Deodoro da Fonseca]. Convenhamos que não foi um bom começo. Mas, pelo menos, resultou na formação do regime republicano”, declarou ao ministrar a aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (PPGHCS-COC). Na palestra “1937 – Memória do Primeiro Golpe contra a República no Brasil”, abordou o Estado Novo e outros momentos importantes da trajetória republicada do país. Na avaliação da historiadora, os intelectuais “têm o dever de se manifestar e apoiar as causas legítimas” em momentos de crise institucional. Lembrou que a ditadura de Getúlio Vargas teve embasamento em teorias de intelectuais, como Francisco Campos, Azevedo Amaral e Oliveira Viana. “Não podemos esquecer que a ditadura brasileira se preocupa com a legitimidade para sustentação do regime”, explicou a professora da USP.

“O golpe de 1937 – ocorrido há 80 anos – deixou marcas profundas na história política do país e inaugurou uma tradição golpista, que, infelizmente, parece que persiste”, disse a atual presidente da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (Anpuh). “Precisamos lembrar para que não aconteça novamente; refletir sobre as condições que levaram à ditadura”, disse Maria Helena.

Ela classificou o período de 1930 a 1937 como de incertezas. A professora destacou a luta armada de 1932 [Revolução Constitucionalista], quando Getúlio Vargas derrotou o levante capitaneado por lideranças de São Paulo contrárias ao governo provisório, formado em 1930 e que colocou um ponto final à “denominada ‘pejorativamente’ República Velha”, afirmou. Com a derrota dos paulistas, o país ganhou nova constituição em 1934. “Era uma espécie de colcha de retalhos, que não atendeu às demandas dos grupos políticos que tinha perspectivas muito diversas”, ressaltou.

Em 1935, houve a insurreição comunista comandada por Luís Carlos Prestes, líder do movimento tenentista na década de 1920 contra as oligarquias da Primeira República. Foi “um pretexto para o golpe [do presidente Getúlio Vargas] de 1937”, afirmou Maria Helena, segundo a qual, os liberais apoiaram Vargas contra a Intentona Comunista. “Com apoio das Forças Armadas e a bênção da Igreja Católica, houve novo marco na história do Brasil, disse.

“Os ideólogos do Estado Novo, críticos do liberalismo, alegavam que o novo regime garantiria a superação definitiva do atraso, o fim do caos, da anarquia, da improvisação, da irracionalidade reinante no país e garantiam que, a partir dessa data, o progresso se concretizaria no país”, acentuou a historiadora. De acordo com a professora, o embate girava em torno de duas concepções de poder e foi se tornando mais forte; “a divergência dava-se em relação à natureza do estado e sua relação com a sociedade”, afirmou Maria Helena.

Momento de ruptura e redemocratização

O ano de 1942 marcou a ruptura do Brasil com os países do eixo (Alemanha, Itália e Japão), pelos quais Vargas tinha simpatia. A historiadora ressaltou que, devido à pressão dos Estados Unidos, o país juntou-se aos aliados em defesa da democracia naquele período da Segunda Guerra. “Getúlio era um pragmático, pouco ideológico”, explicou.

Com o fim da Segunda Guerra, ocorreu relativa abertura política. Já a partir de 1944 surgem movimentos exigindo a redemocratização do país. O governo impediu a divulgação pela imprensa de manifestações contra o regime. No ano seguinte, entretanto, era impossível abafá-las; Getúlio Vargas estava enfraquecido com a vitória dos aliados. Apesar disso, ainda contava com apoio político. Em março de 1945, em São Paulo, surgiu a primeira manifestação popular: “Movimento de Panela Vazia”, que sugeria a permanência do presidente no poder. Dois meses depois, no Rio de Janeiro, Luís Carlos Prestes, antigo adversário, não só defendeu a permanência do regime, mas também o lançamento de Vargas como candidato a presidente.

Enquanto o movimento de redemocratização se expandia por diversas capitais brasileiras, em meados de 1945, um golpe estava sendo articulado pelo general Pedro Aurélio de Gois Monteiro, ex-ministro de Vargas, que tinha apoio da União Democrática Nacional (UDN), partido recém-criado. Em 29 de outubro, Vargas foi intimado a deixar o poder.

Volta de Getúlio Vargas ao cenário político

Em 1945 os movimentos populares não conseguiram evitar a queda de Getúlio Vargas, mas fortaleceram o líder político. Isso ficou evidente e contribuiu para a criação de dois partidos: o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrata (PSD). Vargas apoiou o candidato do PSD à presidência da república, marechal Eurico Gaspar Dutra, que venceu as eleições de dezembro de 1945 derrotando o candidato apoiado pela União Democrática Nacional (UDN), o brigadeiro Eduardo Gomes.

Quinze anos depois, em 1950, Getúlio Vargas retornou à cena política e venceu as eleições presidenciais. Ele tomou posse, mas seu governo foi marcado por fortes crises, que demonstravam a fragilidade do processo democrático. “Os liberais se opunham às perspectivas desenvolvimentistas, nacionalistas e estatizantes que marcaram seu novo governo. Eles defendiam a política econômica baseada no livre comércio, favorável à abertura econômica aos capitais estrangeiros no país”, disse Maria Helena. Também eram contrários às leis trabalhistas e às políticas para os setores populares com mecanismos de distribuição de renda.

Suicídio de Vargas

Diante da crise – a partir de campanha liderada pelo jornalista Carlos Lacerda – “udenista fanático”, frisou a pesquisadora – o presidente acabou se fragilizando. Em 22 de agosto, recebeu um documento assinado por brigadeiros da Aeronáutica exigindo sua renúncia. Sua resposta foi dura, destacou a historiadora: “Daqui não saio, daqui só saio morto; estou muito velho para ser desmoralizado e já não tenho razões para temer a morte”. Para a pesquisadora, a morte de Vargas também foi um golpe: “saio novamente”…, a partir de um golpe, disse ao lembrar trecho da Carta Testamento.

Nos períodos subsequentes, as crises continuaram demonstrando a vulnerabilidade do regime republicano. Nas eleições de 1955, houve tentativas de golpe e oposição ferrenha de setores da UDN contra o governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, do PSD, e João Goulart, herdeiro político de Vargas, do PTB.

Contrário ao candidato a vice João Goulart, Carlos Lacerda voltou a clamar por um regime de exceção. Não adiantou. Juscelino e Jango tiveram vitória expressiva na eleição, em 3 de outubro de 1955. Os adversários se revoltaram e tentaram impedir a posse dos eleitos. Em 1959, isso ocorreria outra vez, com articulação de militares ligados ao movimento que resultou no suicídio de Vargas em agosto de 1954.

“Como se pode notar, a partir da volta de Getúlio Vargas ao poder em 1951, as conspirações golpistas fervilharam”, acentuou Maria Helena. As campanhas para as eleições presidenciais de 1960 foram feitas em um quadro político extremamente conturbado pela luta entre liberais conservadores e reformistas.

“O candidato Jânio Quadros atuava fantasiado de homem do povo, prometia moralização da sociedade e combate à corrupção”, disse a professora. Ela acrescentou que, nessa mesma eleição, Jango foi eleito vice-presidente com ajuda do PSD. A posse de Quadros ocorreu em 31 de janeiro de 1961; sete meses depois ele ensaiou um autogolpe que não deu certo. O presidente renunciou acreditando que “voltaria ao poder nos braços do povo”, destacou. Neste momento, o país mergulhou em uma crise muito forte, porque Jango assumiria o poder. O golpe de 1964 estava sendo articulado.

“Jango Goulart – defensor de uma política reformista interpretada como comunismo – foi deposto por um golpe liderado por civis e militares, que abriu espaço para uma ditadura muito mais longa e repressora que a do Estado Novo”, afirmou Maria Helena Capelato. 

Momento atual

Para Maria Helena, a redemocratização do país, embora lenta, gradual e fruto de um golpe contra eleições diretas [mobilização pelas eleições conhecido como Diretas Já, em 1984], gerou expectativa democrática entre os brasileiros. No entanto, “a crise atual, marcada por uma polarização política, nos remete àquela de 1964” – em termos, pois, apresenta outras características, ressaltou a historiadora.

“A grande interrogação para todos nós – que nos preocupamos com problemas dessa natureza – é como contribuir para consolidar uma democracia, não apenas política, mas sobretudo social e racial”, indagou a historiadora da USP ao concluir a palestra.