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Fiocruz lembra Gaspar Vianna e discute o combate à leishmaniose hoje

22 set/2014

 Silvio Carvalho e Jaime Benchimol
Jaime Benchimol (à direita), ao lado de Silvio Carvalho: Tratamento vislumbrado por Gaspar Vi-
anna para a leishmoniose é comparado à descoberta da penicilina. Fotos: Glauber Gonçalves

A morte prematura, aos 29 anos, não impediu Gaspar Vianna de entrar para o rol dos principais nomes da ciência médica mundial na primeira metade do século 20, ao descobrir a cura de uma doença que infligia graves lesões na pele e nas mucosas das vítimas, levando muitas delas à morte: a leishmaniose tegumentar. O caminho aberto pelo cientista foi o mesmo trilhado, mais tarde, para curar uma outra forma da doença, a leishmaniose visceral, que ataca órgãos internos.

No centenário de sua morte, Gaspar Vianna foi tema de um seminário promovido em Teresina pela Fiocruz Piauí, a Casa de Oswaldo Cruz e a vice-presidência de Pesquisa, Ensino, Informação e Comunicação da instituição. Além de discutir o legado do médico do Instituto de Manguinhos, o evento promoveu um debate sobre perspectivas no combate à doença, que hoje ressurge como um grave problema de saúde pública no Brasil, espalhando-se por diversos Estados.

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A doença despertou o interesse de pesquisadores brasileiros a partir de 1908, quando uma epidemia atingiu operários que trabalhavam na construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que interligaria São Paulo a Mato Grosso. Na época, a doença ficou conhecida como úlcera de Bauru, explicou o historiador Jaime Benchimol em sua apresentação no evento. A partir de então, a leishmaniose cutânea, como posteriormente passou a ser chamada a enfermidade, foi reconhecida em diversas partes do Brasil e de países vizinhos.

Convidado por Oswaldo Cruz a integrar o Instituto de Manguinhos após concluir o curso de Medicina em 1909, Gaspar Vianna foi quem descreveu o agente patológico da doença, ao qual batizou de Leishmania brasiliensis, depois de uma discussão intensa no meio científico questionando se tratava-se de uma espécie diferente das já então conhecidas. “Gaspar Vianna descreve a espécie Leishmania brasiliensis, diferenciando-a das leishmanias do Velho Mundo”, resumiu Filipe Costa, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e da Fiocruz Piauí. As leishmanioses são transmitidas através da picada de mosquitos flebotomíneos, que inoculam o protozoário nos seres humanos e em outros animais.

Filipe Costa
Filipe Costa: Gaspar Vianna descreve a espécie Leishmania brasiliensis,
diferenciando-a das leishmanias do Velho Mundo.

Hoje, conforme apontou o professor Carlos Henrique Costa, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), sabe-se por meio de biogeografia e de um trabalho de sequenciamento, que a leishmania se originou no continente sul-americano. “Talvez o protótipo da leishmania seja a Leishmania brasiliensis, a mais antiga. Ela teria feito o caminho inverso ao do ser humano, que saiu da Eurásia e veio para as Américas. [A leishmania] saiu da América do Sul, migrou pelo continente americano, e subiu pelo estreito de Behring, que era congelado”, disse no evento.

Segundo Benchimol, Gaspar Vianna decidiu experimentar o tártaro emético para tratar a leishmaniose tegumentar motivado por estudos ingleses sobre o uso de compostos derivados de antimônio para o tratamento da tripanossomíase. O uso do antimônio ao longo da história causara controvérsia, no entanto.  No século 16, o suíço-alemão Paracelso introduziu a substância em oposição a fármacos usados nos tratamentos de sarna, sífilis e hanseníase, contou Silvio Fernando Guimarães de Carvalho, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).

Mais tarde, em função de seus frequentes e graves efeitos colaterais, houve uma forte oposição ao seu uso por parte das universidades oficiais. “A Faculdade de Medicina de Paris chegou a elaborar um termo excomungando o antimônio e chamando de infernais e envenenadores os médicos que usavam esse produto. A partir de então, [sua utilização] foi proibida na França”, disse Carvalho. De acordo com ele, o antimônio só foi reabilitado quando o rei Luís 14 foi acometido de uma forte cólica intestinal. Após esgotado todo o arsenal terapêutico da época, ele foi curado com o produto.

Sabendo da alta toxicidade do tártaro emético, Gaspar Vianna diluiu-o em soro fisiológico para, posteriormente, injetá-lo no paciente, o que tornou a droga tolerável, embora muito dolorosa, pontuou Benchimol. No episódio da primeira tentativa de tratamento com o tártaro emético, Gaspar Vianna contou com a sorte. “Ele escolheu um paciente da enfermaria da Santa Casa do Rio de Janeiro para fazer o teste. No dia seguinte, ao chegar para fazer a infusão do medicamento, o paciente tinha morrido. Gaspar Vianna faz a necropsia e não encontra nada que justifique a causa da morte. Talvez, se já tivesse aplicado [a droga], a história poderia ter sido diferente, porque ele iria atribuir o óbito ao antimônio”, afirmou Carvalho no seminário.

Benchimol explicou durante o seminário que, em um processo ainda mal documentado pelos historiadores, o terapêutico de Gaspar Vianna foi substituído por uma forma pentavalente menos tóxica de antimonial. “Introduzida em 1922 pelo médico indiano Upendranath Brahmachari para combater o mortífero calazar [como é conhecida a leishmaniose visceral], tornou-se a base para o tratamento das leishmanioses até hoje. Brahmachari levou sozinho os louros pela vitória, e foi inclusive indicado ao prêmio Nobel em 1929”, afirmou.

O cientista morreu em julho de 1914, em decorrência de um incidente ocorrido enquanto trabalhava. Ao realizar a necropsia de um caso de tuberculose pulmonar no Hospital da Santa Casa do Rio de Janeiro, um jato do líquido depositado em uma cavidade torácica do corpo atingiu seu rosto. Em apresentou sintomas da doença e faleceu dois meses depois. “Para Edgar Cerqueira Falcão, somente a descoberta da penicilina teve desdobramentos comparáveis à cura das leishmanioses. Pena que não existisse ainda o antibiótico na época em que Gaspar Vianna infectou-se acidentalmente”, concluiu Benchimol,

Antimoniato pentavalente e anfotericina no tratamento da leishmaniose visceral

Silvio Carvalho
Tratamento de paciente de leishmaniose visceral recém diagnosticado e
sem complicações é mais fácil, afirmou Silvio Carvalho.

Em sua apresentação, Sílvio Carvalho, da Unimontes, abordou as possibilidades de tratamento da leishmaniose visceral: o antimoniato pentavalente e a anfotericina. Segundo ele, o primeiro foi sintetizado em 1937 simultaneamente na Inglaterra e na França. “O Pentostan era distribuído aos países colonizados pelos ingleses, e o Glucantine aos países da América Latina. Passados 77 anos dessa síntese, continuamos ainda usando como primeira escolha no Brasil o antimônio pentavalente”, declarou.

Devido à carga de toxicidade desse medicamento, Carvalho explica que, antes do início do tratamento e pelo menos uma vez por semana depois de iniciada a aplicação da droga, deve-se monitorar as condições cardíacas e renais do paciente. Ele ressaltou que os antimoniais são contraindicados em pacientes com qualquer grau de insuficiência renal. No surgimento de arritmias cardíacas, deve-se suspender o tratamento, explicou.

“Quando você trata um paciente de leishmaniose visceral diagnosticado recentemente sem complicações é como navegar em águas tranquilas. Porém, se você demora para fazer o diagnóstico e esse paciente começa a apresentar sintomas de gravidade, como icterícia, desnutrição, ele cai numa cachoeira e dificilmente você consegue colocá-lo lá em cima novamente”, comparou.

Segundo ele, outra opção usada no combate à leishmaniose visceral é a anfotericina B. Não solúvel em água, esse antibiótico necessita de um dispersante, o desoxicolato de sódio, que é responsável por 40% da nefrotoxicidade (o efeito tóxico sobre os rins) desse produto. “Em 1963, usou-se pela primeira vez o produto em duas meninas de 7 anos na Bahia e depois em uma de 14 anos. Devido aos efeitos colaterais acentuados, desencorajou-se a continuidade do uso”, explicou Carvalho. Ele acrescentou que, mais recentemente, administrou-se o medicamento em doses mais baixas no Brasil, obtendo-se bons resultados. Entre os efeitos adversos imediatos estão febre, cefaleia, vômito, taquicardia, calafrio e hipertensão.

Carvalho falou ainda sobre o uso da anfotericina lipossomal. “Ela funcionaria mais ou menos como um míssil teleguiado. A anfotericina na forma lipossomal, uma vez difundida, é fagocitada e levada para onde as leishmanias estão refugiadas e se multiplicando. Lá a anfotericina é liberada para destruí-la”, explicou.

Quanto à recuperação, Carvalho observou não há nenhum exame laboratorial que possa assegurar se o paciente está ou não curado. “O critério de cura é essencialmente clínico. Nós temos melhora do apetite, melhora do estado renal, desaparecimento de febre e aumento do nível de hemoglobina e leucócitos. São as plaquetas as variáveis que primeiro denunciam a cura”, declarou.

Em 2013, o Ministério da Saúde ampliou a indicação de uso da anfotericina B lipossomal para o tratamento de pacientes diagnosticados com leishmaniose visceral devido à maior toxicidade do desoxicolato de anfotericina B, droga até então utilizada como segunda escolha para o tratamento de pacientes acometidos pela doença.

A saliva de flebotomíneos e a formulação de uma vacina contra a leishmaniose

Montagem: Carlos Henrique Costa, Clarissa Teixeira e Dorcas Lamounier
Carlos Henrique Costa, Clarissa Teixeira e Dorcas Lamounier discutiram perspectivas no enfren-
tamento da leishmaniose, diante da migração da doença para áreas urbanas e outros desafios.

O grande sonho dos profissionais que pesquisam a leishmaniose é o desenvolvimento de uma vacina contra a leishmaniose. O tema foi abordado no seminário por Régis Gomes e Clarissa Teixeira, da Fiocruz Bahia. “A grande maioria dos candidatos a vacina contra a leishmaniose está nos antígenos que estão no próprio parasita. E está certo. Mas nós defendemos que a saliva [do flebotomínio] seja um componente a mais na composição de uma vacina contra a leishmaniose”, afirmou Gomes.

Clarissa explicou que a transmissão da leishmaniose ocorre exclusivamente através da picada do vetor, que sempre inocula, junto com o parasita, a saliva. “Ele precisa dessa saliva para poder obter o alimento sanguíneo”, disse. “A imunização com a saliva total ou com componentes da saliva também protegem contra um desafio posterior. Diante disso, diversos trabalhos que têm sido feitos e caracterizam as salivas de diferentes espécies de flebotomíneos.”

Para o professor Carlos Henrique Costa, da UFPI, um dos caminhos para se chegar em uma vacina contra a leishmaniose está em organismos geneticamente modificados. “É o que se faz hoje com essa vacina da dengue que vimos agora. É um vírus da vacina de febre amarela geneticamente modificado […] É por aí que imagino que também vamos chegar a vacina contra leishmania”, disse.

A leishmaniose visceral hoje no Brasil

O atual surto de leishmaniose visceral no Brasil e sua dispersão por Estados que até pouco tempo não registravam casos da doença ainda deixam muitas questões no ar, afirmou Costa. Segundo ele, a urbanização da doença – antes prevalente em áreas rurais – é um fenômeno novo e incompreendido. “Inicialmente jurávamos que havia sido [por causa da] favelização. Hoje sabemos que não é isso, porque muitas cidades que não têm favela, tem o calazar urbano. Campo Grande, por exemplo, tem muito mais [casos de] calazar do que Teresina”, disse.

Segundo a professora Dorcas Lamounier, também da UFPI, somente no início dos anos 80 é que se verificou a tendência de urbanização da leishmaniose visceral, com a percepção de que, nessas situações, a doença é mais severa do que quando afligia área rurais apenas. “Não sabemos exatamente se é por causa do flebotomíneo, se é porque as pessoas vivem em aglomerados e serem infectadas por uma alta carga parasitária, ou por múltiplas picadas repetidas vezes, ou se essas pessoas vivem em condições nutricionais diferentes do passado”, comentou.

O foco de Dorcas nos últimos anos tem sido identificar os fatores que influenciam as chances de um paciente vir a morrer da doença. “Os nossos métodos de profilaxia estão falhando, os métodos de contenção de epidemia estão falhando, a eliminação de cães [animais que são hospedeiros da leishmania] não mostrou o resultado esperado, uma vacina ainda vai demorar um pouquinho. Enquanto isso queremos saber se é possível identificar um indivíduo com maior risco de morrer e desta forma trata-lo de forma diferenciada”, explicou.