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Estudo inédito revela como a Fiocruz fala sobre ciência com o público

28 maio/2021

Mapeamento confirma a tradição em divulgação científica, mas ainda há espaço para ampliar o envolvimento dos grupos de pesquisa nas ações

Ilustração: Silmara Mansur/iStock

Ilustração: cientista negra de óculos com seis braços, segurando um gravador, tubo de ensaio, celular, câmera, lupa, bloquinho

Por Karine Rodrigues

Em 1907, Oswaldo Cruz partiu para a Alemanha com uma bagagem nada usual: amostras de soros e vacinas, exemplares de insetos transmissores de doenças, materiais sobre campanhas sanitárias, peças de anatomia patológica, maquetes do instituto que deu origem à Fiocruz. Estava disposto a impressionar os participantes do 14º Congresso Internacional de Higiene e Demografia. E conseguiu: garantiu medalha de ouro para o Brasil, naquela que pode ser vista como a primeira grande iniciativa de divulgação científica da instituição.

Nem todo pesquisador vai pegar uma câmera, gravar um vídeo de YouTube, fazer um podcast. Alguns têm essa habilidade, outros não. Então, é preciso ter instrumentos institucionais para que ele possa se engajar em atividades de divulgação científica

De lá para cá, a forma de falar sobre ciência para o público em geral se tornou campo de conhecimento e sofreu muitas transformações, dentro e fora da Fiocruz, onde é considerada área estratégica e um compromisso social. Um estudo inédito conduzido pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) detalha como se comunica com a sociedade a instituição criada há 121 anos, hoje uma das principais referências em ciência e tecnologia em saúde da América Latina, presente em 11 unidades da federação e com atuação nas áreas de pesquisa, ensino e inovação, onde se destaca na produção de vacinas e biofármacos.

A investigação, a primeira do tipo na história da instituição, revelou que a Fiocruz possui um grande sistema de divulgação e popularização científica, com ações em meios tradicionais de comunicação, internet, materiais educativos e de divulgação, atividades presenciais e na chamada ciência cidadã. Artigo publicado na mais recente edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos detalha o mapeamento realizado em 2015 e 2016.

“Não esperávamos um campo tão plural e tão diverso. Praticamente todas as unidades [da Fiocruz] desenvolvem ações de divulgação e popularização científica. E não eram genéricas, parecidas. Ao contrário: se alinhavam à missão de cada unidade. De fato, existe um grande sistema de divulgação e popularização científica na Fiocruz, mesmo que não organizado”, pontua o pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) Diego Vaz Bevilaqua, destacando o grande desafio de estruturar a atuação na área.

Política responde às fragilidades identificadas no mapeamento

Coordenador-adjunto da Política de Divulgação Científica da Fiocruz, publicada em abril, o pesquisador considera que ela é um primeiro passo rumo à organização das ações na área. O mapeamento das ações desenvolvidas pela instituição foi fundamental para a elaboração do documento sobre o tema, acrescenta.

Montagem com diversas capas da revista Radis. Manchetes dizem: Resposta afirmativa; Tamanho universal; Pantanal em Cinzas; Sofrimento
Revista Radis, da Ensp/Fiocruz, é destaque em comunicação em saúde. Imagem: Reprodução.


“A Política marca um momento de amadurecimento da área na Fiocruz. É uma inovação no cenário das instituições brasileiras e responde às fragilidades apresentadas no mapeamento, que tem a ver com a questão de ampliar o financiamento, a comunicação dialógica, a colaboração interna, a diversidade regional, a adesão dos grupos de pesquisa. Tudo isso, a Política traz como elemento a ser desenvolvido. Estamos em um momento em que a sociedade precisa muito da divulgação científica”, avalia Bevilaqua, que assina o artigo sobre o mapeamento com Heliton Barros; Maria Inês Rodrigues Fernandes; Loloano Claudionor da Silva (in memorian) e a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima.

O segredo para se combater fake news não é informação maciça, passada de forma autoritária, de cima para baixo, mas um diálogo horizontal entre a ciência e a sociedade

Em tempos de negacionismo científico e pandemia, centrar esforços em uma comunicação dialógica com a sociedade é também compreender o potencial das ações de divulgação e popularização da ciência no enfrentamento à onda de notícias falsas.

“O segredo para se combater fake news não é informação maciça, passada de forma autoritária, de cima para baixo, mas um diálogo horizontal entre a ciência e a sociedade. Através disso, a população se torna mais capaz de posicionar de forma crítica em relação à informação científica e, com isso, também impede a propagação de notícias deliberadamente falsas sobre o tema”, ressalta Bevilaqua, físico com pós-doutorado na Universidade Harvard (EUA), que trocou a bancada pelas pesquisas em divulgação científica.

Comunidade escolar e vulneráveis: prioridade atual e prioridade desejada

A análise classificou e analisou um total de 150 ações. Há maior concentração das atividades na sede da Fiocruz, no Rio, e, em especial, no Museu da Vida, que integra a Casa de Oswaldo Cruz e tem como atividade fim a divulgação e a popularização da ciência. Naquele momento, em que não se imaginava que o mundo entraria em quarentena prolongada para enfrentar a Covid-19, as ações presenciais predominavam na instituição.

Adolescentes ao redor de maquete do campus da Fiocruz no centro de recepção com o instrutor
Visitantes no Centro de Recepção do Museu da Vida. Foto: Nathalia Werneck/Museu da Vida.


Considerando as ações por grupos específicos, as destinadas à “comunidade escolar” (professores, estudantes e familiares) são as mais frequentes: representam 43% das atividades, na análise por tipo de grupo, e 16% do total de ações desenvolvidas pela Fiocruz, dado coerente com a tradição da instituição em educação em ciências, segundo o artigo. Já as ações relativas à “população socialmente vulnerabilizada” correspondem a 20% daquelas dirigidas a grupos específicos e 7% do total, participação que poderia ser ampliada, avaliam os autores do estudo, justificando a dificuldade do referido público em ter acesso ao conhecimento científico e por ser a Fiocruz voltada à saúde pública.

Baixa adesão dos grupos de pesquisa

Segundo o levantamento, apenas cerca de 10% dos grupos de pesquisa da Fiocruz desenvolvem ações de divulgação e popularização científica. A baixa participação é decorrência do cenário nacional, marcado pela falta de estímulo à atividade no sistema de avaliação do pesquisador, considera Bevilaqua.

Uma das vantagens de se conhecer melhor as ações de divulgação científica é poder avaliar de forma mais aprofundada cada uma das iniciativas, para poder compreender o quanto a Fiocruz está conseguindo executar o objetivo de sair de uma comunicação unidirecional para um modelo mais dialógico

“Isso se deve muito ao contexto brasileiro, de pouco incentivo à divulgação científica na avaliação da pesquisa, tanto individual quanto dos projetos. Houve um avanço, nos últimos anos, com a inclusão da divulgação científica em alguns editais, mas a maior parte das bancas de seleção de pesquisador, das bancas de progressão do pesquisador, dos projetos de balcão das agências de fomento ou não preveem atividades de divulgação científica ou não preveem a sua avaliação. E quando preveem, a avaliação é feita de uma forma muito básica, tipo fez ou não fez. Não contam a qualidade e a intensidade das ações”.

Para ampliar o engajamento na Fiocruz, ele entende que o caminho é inserir a divulgação científica nos editais e processos de avaliação da pesquisa e criar sistemas e mecanismos que incentivem o pesquisador a aderir ao campo, facilitando a realização de ações na área.

“Nem todo pesquisador vai pegar uma câmera, gravar um vídeo de YouTube, fazer um podcast. Alguns têm essa habilidade, outros não. Então, é preciso ter instrumentos institucionais para que ele possa se engajar em atividades de divulgação científica. Jornalistas especializados no tema que façam entrevistas, que produzam material junto com o pesquisador, museus de ciências que façam exposições, chamando pesquisadores para fazer parte da comissão de desenvolvimento da exposição”, pontua Bevilaqua, que chefiou o Museu da Vida de 2013 a 2017.

Menino observa no microscópio
Fiocruz Pernambuco participa da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia. Foto: Fiocruz Pernambuco.


Outro importante desafio interno é conhecer e monitorar de forma permanente as ações do campo, bem como analisar seus impactos. Estão em discussão novas modalidades de acompanhamento, entre as quais, um sistema que funcione como um banco de dados, alimentado periodicamente por cada unidade, adianta Bevilaqua:

O mapeamento apontou ainda que há muitos produtos que se comunicam com o público de forma mais tradicional, unidirecional, embora tenham “grande potencial para promover o diálogo e o engajamento”.

“Uma das vantagens de se conhecer melhor essas ações, inclusive através de um sistema desse tipo, é poder avaliar de forma mais aprofundada cada uma das iniciativas, para poder compreender o quanto a Fiocruz está conseguindo executar o objetivo de sair de uma comunicação unidirecional para um modelo mais dialógico”, observa.

Instituições de pesquisa, principal espaço de divulgação e popularização

Bevilaqua destaca a importância de as instituições de pesquisa, principal espaço de divulgação e popularização da ciência, realizarem levantamentos sobre as ações na área e investigarem como elas se organizam. Estudos com parâmetros de análise sobre a atuação na área em grandes universidades e instituições de ciência e tecnologia são praticamente inexistentes.

“Essas instituições têm um papel estruturante para o sistema de divulgação científica nacional. Muitas vezes, ela é feita de forma fragmentada pelos pesquisadores, laboratórios ou programas da instituição, mas precisa se ancorar numa visão de ciência e sociedade que a instituição deve promover. É importante que as instituições façam o mapeamento e se organizem. Se você organiza o sistema, você potencializa esse papel da educação científica”.