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Especial História e Covid-19 | Realinhando experiências e expectativas

08 maio/2023

Luiz Alves Araújo Neto (COC/Fiocruz)*

 
 

Nas últimas semanas, a série especial História e Covid-19 apresentou diferentes perspectivas acerca do impacto da pandemia na prática de historiadoras e historiadores, possibilitando discussões acerca das dimensões prática, política e epistêmica da disciplina histórica em um cenário marcado por um evento traumático de escala mundial. Abordando temas diversos, do revisionismo histórico aos desafios da sala de aula, nossas convidadas e convidados expuseram um quadro no qual processos e tensões existentes no campo historiográfico foram aprofundados ou transformados pela pandemia, seja pelo recrudescimento de debates políticos e epistêmicos, seja pela dimensão mais imediata de distanciamento social e limitações ao acesso a recursos de pesquisa e ensino.

Além da reflexão anunciada no título da série especial, existe um elemento que reúne os textos, vídeos e áudios que publicamos nas últimas semanas, algo que envolve redefinições não somente dos percursos da disciplina histórica, mas de nossas experiências e expectativas [1]. Durante toda a pandemia, ainda mesmo agora, quando vivemos um processo tênue de encaminhamento para seu fim, negociamos nossas percepções de tempo, tanto num esforço de dar sentido à confusa temporalidade pandêmica quanto num vislumbre de pensar um tão falado mundo “pós-pandêmico”. Nesse processo de elaboração, chegamos mesmo a incrementar o vocabulário com expressões como o “novo normal” e a vaticinar transformações profundas no tecido social e na conjuntura político-econômica, com diagnósticos de que a Covid-19 seria o ponto de inflexão para o fim precoce ou começo efetivo do século 21.

Aqui, interessa menos discutir a pertinência e validade dessas projeções de mudança – essas avaliações foram muito bem feitas pelas convidadas e convidados desta série -, e sim, pensar como tais enunciados indicam os ajustes de rota feitos pela disciplina no cenário pandêmico. Esses ajustes de rota, é preciso dizer, não se limitaram ao campo historiográfico, envolvendo questionamentos variados a estruturas, instituições e processos colocados em xeque devido aos abalos causados pela pandemia. Um exemplo interessante foi a discussão sobre a pertinência de se pensar a saúde global nos moldes institucionais e teóricos até então vigentes (Cousins et al., 2021). Tal reflexão levou em conta os limites do modelo de saúde global em um cenário marcado por abordagens nacionalistas e protecionistas nas respostas à pandemia, caso do “nacionalismo vacinal” [2], além de contradições e tensionamentos já apontadas pelo campo crítico à saúde global nas últimas duas décadas (e.g. Biehl & Petryna, 2013).

Como diversos autores no âmbito da Filosofia e da Teoria da História apontaram, essas avaliações e projeções sobre o tempo se apropriam da figura do horizonte como um “lugar supremo de promessa e possibilidade” (Pickering, 2004, p. 272), uma metáfora para movimentos que, embora não sejam necessariamente otimistas e positivos, buscam ampliações. Dado o conjunto de reflexões que acompanhamos nas últimas semanas, é importante perguntar: ao contemplarmos a paisagem atual, quais promessas e possibilidades encontramos no horizonte de historiadoras e historiadores? Mais especificamente, quais expectativas podemos elaborar a partir do que vemos adiante para o ofício da História no Brasil? Os desafios do negacionismo e do revisionismo, a incorporação de métodos e epistemologias digitais, a relação entre a disciplina e o público, a prática da História em sala de aula, todos esses pontos debatidos nas últimas semanas compõem essa paisagem complexa para a prática histórica.

Soma-se a eles uma série de tópicos a serem abordados. A agenda de preocupações e respostas às mudanças climáticas provocadas pela atuação humana e todo o debate acerca do antropoceno e das divisões tradicionais entre natureza e cultura, ciência e sociedade consiste em um eixo importante para o horizonte da História. Por sua vez, a instabilidade das democracias liberais a partir do avanço da extrema direita e de uma reformulação do neoliberalismo tem reposicionado as lutas políticas da historiografia e, consequentemente, o conhecimento histórico. A pauta dos estudos decoloniais, da epistemologia feminista e da teoria racial crítica, em seus debates específicos e em suas intersecções, tem representado um elemento importante no horizonte da pesquisa histórica e na própria crítica aos regimes de objetividade que orientam as ciências humanas (Harding, 2015).

Não menos importante, processos criados, agravados e/ou mais evidenciados pela pandemia de Covid-19 também compõem esse horizonte complexo. É o caso das preocupações com as desigualdades e iniquidades sociais, tanto em seus sentidos estruturais e teóricos quanto em suas manifestações mais específicas, como nos estudos sobre a fome, um problema central da história brasileira que foi ampliado durante os últimos anos com diversos atravessamentos políticos.

Na esteira dos novos problemas, a Covid Longa, em sua polissemia e instabilidade de definição, nos lembra que a pandemia não acabou, pelo menos como um processo histórico. O surgimento de uma nova entidade nosológica coloca desafios aos sistemas de saúde e provoca grande sofrimento na população, principalmente devido à invisibilidade das experiências de pessoas que lidam com os mais diversos sintomas dessa síndrome. No sentido historiográfico, coloca-se em questão o fim da pandemia e as consequências práticas de demarcar um processo histórico como encerrado. Dessa forma, pensar a relação entre a História e a Covid-19 é, certamente, lidar com as implicações da pandemia em nossa prática profissional e política, mas é, também, discutir o nosso papel na compreensão desse fenômeno.

Eventos traumáticos envolvem um tensionamento entre a memória e o esquecimento (Pollak, 1989), um balanceamento demasiado complexo, pois lida com uma constelação de emoções entre o coletivo e o individual. Nesse sentido, parece também que projetar horizontes, organizar expectativas e recalcular rotas é uma forma de lidar com o trauma da pandemia, com nosso luto coletivo das mais de 700 mil pessoas mortas somente no Brasil, sem contar a subnotificação. O bem conhecido movimento entre experiência e expectativa, fundamental à epistemologia histórica, é, ao mesmo tempo, um ato político. Olhar para o horizonte sem abandonar o espaço de experiência é garantir que não esqueçamos, garantir que tanto sofrimento e tantas mortes não passem ao largo e, não menos importante, que as pessoas responsáveis por isso não fiquem impunes. Sem anistia.

*Luiz Alves Araújo Neto é historiador, doutor em História das Ciências e da Saúde. Coordenador ajunto do Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz e bolsista de pós-doutorado da FAPERJ (PDR-10). Atua nas áreas de História da Medicina e da Saúde Pública, Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, e Saúde Coletiva.


[1] As noções de experiência e expectativa mobilizadas aqui se referem às categorias metahistóricas elaboradas por Reinhart Koselleck (2006), o espaço de experiência e o horizonte de expectativa.

[2] Nacionalismo vacinal é um termo utilizado para classificar os movimentos de países mais ricos de garantir estoques de vacinas contra Covid-19 para suas populações, deixando países mais pobres sem acesso ao imunobiológicos. A Organização Mundial da Saúde criticou constantemente essa postura, pois contradizia os princípios de solidariedade e cooperação que orientavam as respostas à pandemia defendidas pela agência multilateral.

Referências:

Biehl, João & Petryna, Adriana. When People Come First: critical studies in Global Health. Princeton: Princeton University Press, 2013.

Cousins, Thomas et al. The changing climates of global health. BMJ Global Health, v. 6, n.3, 2021, p. 1-6.

Harding, Sandra. “Stronger Objectivity for Sciences from Below”. In: Objectivity and Diversity: another logic of scientific research. Chicago: University of Chicago Press, 2015, p. 26 – 51.

Koselleck, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2006.

Pickering, Michael. Experience as Horizon. Koselleck, expectation and historical time. Cultural Studies, v. 18, n. 2/3, 2004, p. 271-289.

Pollak, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

Leia todos os artigos da série:

Apresentação: Os impactos da pandemia no ofício de historiadoras e historiadores – Luiz Alves Araújo Neto (COC/Fiocruz)
1) Pandemia e os métodos digitais no ofício do historiador: aceleração e urgência – Eric Brasil (Unilab)
2) Ensino de História: para onde vai a formação de professores no pós-pandemia? – Margarida Maria Dias de Oliveira (UFRN)
3) Precisamos de mais, e não menos, relativismo – Karin Alejandra Rosemblatt (Universidade de Maryland)
4) Pandemia e ensino de História: entre o presente e futuro – Éder Mendes de Paula (UFJ)
5) O uso das tecnologias digitais e da História Pública como recurso analítico no contexto pandêmico – Gilciano Menezes Costa (Professor – Seeduc RJ)
6) Covid-19, novas direitas e o problema da verdade científica de uma perspectiva histórica – Thiago da Costa Lopes (COC/Fiocruz)
7) Orientação temporal, Covid-19 e a Educação Básica brasileira na atualidade – Ricardo dos Santos Batista (COC/Fiocruz)
8) A morte contestada: narrativas negacionistas sobre o número de óbitos na pandemia – Ede Cerqueira (COC/Fiocruz)
9) Experiência com as Humanidades Digitais entre a comunidade historiadora no Brasil pandêmico – Daiane Rossi (COC/Fiocruz)
10) O negacionismo histórico e o revisionismo ideológico: leituras sobre o passado e desafios à História – Marcos Napolitano (USP)
11) A pandemia como impulso para a comunicação digital do Observatório História e Saúde – Cynthia Maciel Duarte e Ingrid Casazza (COC/Fiocruz) 
12) O fazer histórico no pós-pandemia e o diálogo mais alargado sobre história e tecnologia – Anita Lucchesi (Universidade de Luxemburgo)
13) Um objeto de estudo para a história da saúde mental – Eliza Toledo (COC/Fiocruz)