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Especial História e Covid-19 | O uso das tecnologias digitais e da História Pública como recurso analítico no contexto pandêmico

03 abr/2023

Gilciano Menezes Costa (Professor – Seeduc RJ)*

 
 

A pandemia causada pela Covid-19 alterou diversas relações existentes nas sociedades. Diante desse contexto, tornou-se necessário implementar o isolamento social e, a partir do aumento da vacinação, uma retomada gradual da presença de pessoas nos espaços institucionais de produção do conhecimento. Esse cenário criou novos desafios para a produção acadêmica de diversas áreas. 

No âmbito da História, o acesso às fontes primárias em arquivos públicos e centros de memória e o contínuo contato com as bibliotecas e universidades se transformaram em problemas para o ofício do historiador, visto que esses espaços estiveram fechados durante boa parte da pandemia. Assim, o acesso a materiais digitalizados se tornou o principal meio para analisar as fontes primárias da pesquisa. 

A partir dos ensinamentos obtidos no Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI), durante minha graduação em História na Universidade Federal Fluminense (UFF), passei a ter como prática inicial de pesquisa a digitalização de fontes primárias, seja em arquivos privados de famílias locais ou em arquivos públicos. A modificação de política de acesso do acervo de periódicos impressos da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), ocorrida no final de 2018, viabilizou também a realização dessa prática para os jornais de meu interesse que ainda não tinham sido digitalizados por essa instituição. Isso contribuiu para amenizar os problemas causados com o fechamento dos espaços de pesquisa. 

Contudo, é relevante mencionar que isso não foi possível de ser realizado para quem estava iniciando suas pesquisas no período da pandemia. Nesse caso, assim como para a busca de comparações de informações mais gerais com as quais localizei no âmbito local, o acesso à Hemeroteca [1] (plataforma digital da FBN) foi fundamental para a elaboração, continuidade e conclusão de pesquisas nesse contexto pandêmico. Ficou em evidência que nesse cenário, de cuidado e de preservação da vida, as instituições públicas brasileiras, embora não recebam os investimentos devidos, contribuíram de forma significativa para uma adaptação producente na prática cotidiana de pesquisadores e pesquisadoras de todo o país.

Há diversos outros sítios eletrônicos [2] que também contribuíram para a realização de pesquisas, mas, em termos de comparações de dados em documentos digitais dentro de uma mesma plataforma, a Hemeroteca digital da FBN apresentou um destaque mais expressivo enquanto recurso tecnológico para o desenvolvimento da produção de conhecimento. Logo, o que pôde ser observado no período da pandemia é uma ampliação da cibercultura em diferentes campos de pesquisa, pois o contexto pandêmico gerou uma maior demanda por tecnologia da informação. O pesquisador Pierry Levy interpreta como cibercultura “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço” (LÉVY, 2010, p. 17). Dessa forma, as diversas demandas de pesquisa, ocasionadas pela impossibilidade do acesso aos acervos físicos, contribuíram para uma nova configuração dos espaços de trabalho baseadas nas tecnologias digitais.

Outro problema gerado pela Covid-19 para o ofício de historiador, entre os diversos que surgiram, foi a divulgação das comprovações dos estudos realizados, na medida em que as apresentações presenciais em eventos públicos foram interrompidas. Novamente, o uso de novas práticas comunicacionais como meio de adaptação baseada nas tecnologias digitais foi acionado. Com isso, as apresentações passaram a ser realizadas em plataformas de vídeo conferência (como Zoom e Google Meet) e a publicação da pesquisa, seja em sua totalidade ou em partes, se intensificou nas redes sociais (Facebook e Instagram). 

Um projeto de minha autoria intitulado “História de Itaboraí e Região” contribuiu de forma expressiva para a publicização de minhas pesquisas no contexto pandêmico [3]. Nesse período, essa iniciativa já estava estruturada pela divulgação de meus textos em perfis pessoais, páginas e grupos nas redes sociais e em um site pessoal. A divulgação de todo material produzido utilizou uma perspectiva metodológica baseada no diálogo entre a História Local e a História Pública, pois a primeira se caracteriza por ser uma “proposta de investigação das atividades cotidianas de comunidades conectadas historicamente num território” (NEVES, 2008, p. 31) e a outra em uma “prática eminentemente voltada àquela “divulgação histórica” […] e a produção de materiais para a circulação e consumo de uma audiência mais ampla do que nossos pares acadêmicos (MAUAD, ALMEIDA E SANTHIAGO, 2016, p.12).”

Dessa maneira, as publicações priorizaram textos objetivos que em sua grande maioria tinham sido extraídos de minhas pesquisas produzidas na universidade (UFF). Com menos frequência, também divulguei meus artigos publicados em anais e em revistas acadêmicas. Os textos mais objetivos apresentaram vocabulários mais usuais de fácil compreensão e os anais e artigos de revistas eram acompanhados de uma chamada explicando a questão central dos textos.

Como as temáticas das publicações desse projeto acompanham, na maioria das vezes, datas festivas e, principalmente, temas que estão em evidência na opinião pública, optou-se por privilegiar, no período pandêmico, conteúdos que dialogassem com a temática das “Febres do Macacu” [4], embora variados outros temas também tenham sido compartilhados. Com isso, diversas publicações foram realizadas para desconstruir equívocos analíticos em que superdimensionam os impactos dessas febres na História Local, abordagem resultante da persistência do uso da historiografia positivista na região. Além disso, as postagens em minhas redes sociais e em meu site buscaram realizar parâmetros comparativos entre sujeitos sociais do período das “Febres do Macacu” com os do período mais recente da Covid-19, mostrando, com o questionamento devido, as ações de indivíduos de ambos os contextos em detrimento dos cuidados necessários para a preservação da vida.

Portanto, no contexto pandêmico, o uso de fontes primárias digitalizadas e o compartilhamento de textos nas redes sociais, e em sites, se transformaram em recursos valiosos e eficazes de produção e propagação de conhecimento para além do espaço acadêmico. A utilização das tecnologias digitais e toda cibercultura desenvolvida nesse período proporcionaram uma ampliação da prática cotidiana de análise e uma percepção de que tais recursos continuarão sendo essenciais no ofício do historiador. 

*Gilciano Menezes Costa é formado em História pela UFF, com Mestrado e Doutorado pelo PPGH-UFF. Professor de História, Filosofia e Sociologia na rede estadual de ensino em Itaboraí. Idealizador do projeto História de Itaboraí e Região.

[1] Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 5 out. 2022.

[2] Entre os outros sites disponíveis, destaca-se o Acervo do Center for ResearchLibraries (CTL). Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/. Acesso em: 6 out. 2022.

[3] Além de meus perfis pessoais no Facebook e no Instagran, as publicações desse projeto foram realizadas principalmente em minha página (https://www.facebook.com/HistoriadeItaboraieRegiao) e em meu site (https://www.historiadeitaborai.org/). Acesso em 6 out. 2022.

[4] Esse termo foi utilizado para designar algumas febres endêmicas (como malária, febre amarela e cólera) que se desenvolveram na primeira metade do século XIX (sobretudo a partir de 1829) nas proximidades do rio Macacu, sobretudo nas regiões de Itaboraí e Cachoeiras de Macacu (COSTA, 2013).

Referências:

COSTA, Gilciano Menezes. A escravidão em Itaboraí: uma vivência as margens do rio Macacu. Dissertação de Mestrado. UFF. 2013. Disponível em: https://cutt.ly/dissertacao_uff2013. Acesso em: 7 out. 2022. 

LÉVY, Pierry. Cibercultura. 3 ed. São Paulo: Ed. 34, 2010.

MAUAD, Ana Maria e ALMEIDA, Juniele Rabêlo de e SANTHIAGO, Ricardo. História Pública no Brasil: Sentidos e Itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016.

NEVES, Erivaldo Fagundes. História e Região: Tópicos de História Regional e Local. Ponta de Lança, São Cristóvão v.1, n.2, abr.-out. 2008.