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Encampada pelo nazismo, eugenia já foi emblema de modernidade no Brasil

Artigo na revista Manguinhos analisa as relações de gênero no 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, expressas em concepções sobre hereditariedade, reprodução e “melhoria” da raça

Karine Rodrigues

10 fev/2021

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Qual a probabilidade de encontrar um modernista em um evento que discute o aperfeiçoamento da raça e aconselha a exclusão das correntes imigratórias que não sejam de brancos? Por mais improvável que pareça aos olhos de hoje, nas primeiras décadas do século 20, médicos, cientistas e intelectuais participaram do movimento eugênico, que, em sua linha mais extrema, defendia práticas para excluir “indesejáveis”, impedindo a sua reprodução. Pretendiam, assim, “melhorar” geneticamente a população brasileira.

Na lista de trabalhos apresentados no 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, maior manifestação pública do movimento no país, realizado no Rio de Janeiro, em 1929, figuram, entre outros, Jorge de Lima (1895-1953), integrante da vanguarda artística de 1922, e Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), médico, antropólogo e pai da radiodifusão nacional. Apoiavam o movimento cientifico e social que se ocupava da “melhoria” da raça humana por meio das leis de hereditariedade. Criado pelo britânico Francis Galton (1822-1911), no fim do século 19, tornou-se mais adiante uma das doutrinas centrais do nazismo.

Poeta, romancista e também médico, autor do renomado Invenção de Orfeu (1952), entre outros títulos, eternizado ainda por poemas como Grande Circo Místico, no evento, Lima discorreu sobre A procriação voluntária do sexo de acordo com a época da coabitação, na qual abordou a questão da determinação do sexo biológico. Pinto, por sua vez, tratou de Notas sobre os tipos antropológicos do Brasil.

Dizer que o movimento [eugênico] foi mais brando [na América Latina] oculta algumas iniciativas que eram muito mais incisivas, até mesmo racistas, do que outras

Anderson Ricardo Carlos

Biólogo, doutorando da USP

“Hoje parece surreal vê-los como participantes do movimento eugênico, mas, naquela época, não”, diz o biólogo Anderson Ricardo Carlos, doutorando em Ensino de Ciências na Universidade de São Paulo (USP) e membro do Grupo de Pesquisa em História da Biologia e Ensino (HBE), liderado por sua atual orientadora, a historiadora da ciência e professora do IB-USP, Maria Elice de Brzezinski Prestes. Em artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), ele analisa as relações de gênero no 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, expressas, por exemplo, em concepções sobre hereditariedade, reprodução e a “melhoria” da raça humana.

Em 1920, eugenia era um “emblema de modernidade cultural, associado a um conhecimento científico que designava uma versão mais atualizada da ciência moderna” no período, observa Anderson Ricardo Carlos. Dizia respeito à preocupação das elites políticas e intelectuais com a saúde, a situação sanitária, a composição de raças e a posição do Brasil em relação aos demais países, acrescenta o pesquisador, que assina o artigo em parceria com a doutora em Educação e bióloga Fernanda Franzolin e com a historiadora e doutora em História das Ciências Márcia Helena Alvim.

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Jorge de Lima: Foto: Arquivo Nacional

Hierarquização entre os sexos

A pesquisa se baseou no volume 1 das Atas e Trabalhos do congresso, documento que integra o acervo da Casa de Oswaldo Cruz. A publicação reúne o convite do evento, o regimento interno, quatro conferências, apresentadas por nomes como o médico Renato Kehl (1889-1974) e o jurista Levi Carneiro (1882-1971), e 20 trabalhos, entre os quais, o de Lima. No texto, o escritor alagoano faz inúmeras referências a pesquisadores alemães. Naquele 1929, a Alemanha estava em grande crescimento militar e econômico.

“Para os eugenistas como Lima, a determinação de sexo biológico estava à mercê do ambiente, ou seja, condicionada a costumes sociais do período. Associava-se o conteúdo de genética, expresso nos estudos de determinação voluntária dos sexos, a ideias nacionalistas e militaristas, sustentando um ideal de hierarquização entre os sexos, considerando os costumes sociais e a conjuntura política do período histórico”, escreve o doutorando.

O primeiro contato de Carlos com o tema da eugenia surgiu em uma disciplina durante intercâmbio na Universidade Radboud, na Holanda, em 2015, durante a graduação, por meio do programa Ciência sem Fronteiras. Por sugestão do professor, leu A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina (Editora Fiocruz, 2005), da historiadora norte-americana Nancy Stepan. Na obra, lançada originalmente em 1991, ela aborda pesquisas realizadas no Brasil em 1980 e discorre sobre as especificidades do movimento eugênico nos três países mais populosos da região: Brasil, México e Argentina.

Além de demonstrar que a América Latina não pode ser vista como uma simples consumidora de ideias estrangeiras, Stepan observou que o movimento teria seguido, aqui, noções neolamarckianas, ou seja, com a influência de fatores ambientais na descendência, e, por isso, focada em ações de higiene e combate a vícios e doenças. Segundo ela, tratava-se de um caminho menos radical do que o de países anglo-saxões, onde vigoraram segregação racial e esterilização como forma de controle reprodutivo e “melhoria da raça”, na linha da concepção mendeliana de genética, na qual fatores hereditários estão condicionados a condições internas.

Carlos destaca que o movimento eugênico no Brasil é considerado um dos mais complexos. Há uma discussão historiográfica, explica ele, entre duas linhas de pensamento: a de Nancy, que considera a eugenia brasileira um movimento mais brando que o registrada em outros países; e outra, mais atual e contrária ao argumento anterior.

Entre os latino-americanos, havia, de fato, incentivo aos exames pré-nupciais e conselhos morais e de higiene sexual feminina, entre outras ações, no lugar de esterilizações em massa, diz Carlos. Mas acrescenta que “dizer que o movimento foi mais brando oculta algumas iniciativas do movimento eugênico que eram muito mais incisivas, até mesmo racistas, do que outras”. “O movimento é complexo porque reúne linhas de pensamento completamente diferentes”, explica.

Carlos conclui que os trabalhos apresentados durante o congresso, como o de Lima e de Renato Kehl, legitimavam comportamentos e papéis sociais para homens e mulheres na época, assim como em outros países. “O trabalho dos eugenistas brasileiros sujeitava a ciência a princípios de hegemonia masculina e, concomitantemente, de submissão feminina”, escreve o biólogo.

O discurso de gênero foi de grande relevância na eugenia, considerando que as características hereditárias seriam transmitidas por reprodução sexual. Às mulheres caberiam a responsabilidade de “sujar” ou o não a prole ao procriarem com homens em condições “desfavoráveis” ou de raças consideradas inferiores. “Pode-se definir o pensamento eugenista geral sobre as mulheres como se elas representassem ‘úteros a serviço da nação’ “, escreve Carlos, que é professor do Ensino Fundamental e Médio de uma escola particular de São Bernardo do Campo (SP). Em sua dissertação, além da análise historiográfica, elaborou uma proposta didática para abordar o tema da eugenia no ensino de genética no Ensino Médio, material que integra livro sobre o tema.

Na eugenia, finaliza o doutorando, desigualdades sociais e culturais entre homens e mulheres eram pautadas e justificadas em argumentos de base biológica. Mas quem inferiorizou as mulheres, alerta, foram as interpretações sociais sobre o biológico. “Tal discussão é essencial na atualidade, em função de ainda vermos, lamentavelmente, o biológico sendo utilizado como argumento para validar injustiças sociais de forma a desconsiderar a desigualdade histórica de oportunidades e os trabalhos acadêmicos de grandes intelectuais da área de gênero”, escreve.

Suplemento temático revisitou tese sobre eugenia

A tese de que na América Latina o movimento eugênico teria sido mais brando foi revisitada em suplemento de HCS-Manguinhos lançado em dezembro de 2016 com artigos de pesquisadores de vários países. Ao abrir a edição, os editores convidados  – Ana Carolina Vimieiro-Gomes (Universidade Federal de Minas Gerais), Vanderlei Sebastião de Souza (Universidade Estadual do Centro-Oeste, no Paraná) e Robert Wegner (COC/Fiocruz) – destacam a relevância do tema:

“Este número especial nos leva a refletir sobre a persistência de práticas eugênicas mesmo após a Segunda Guerra Mundial e a correspondente desestruturação da eugenia como movimento organizado. A eleição de Donald Trump nos EUA, o crescimento de movimento xenófobos na Europa, a insistente presença da ideia de “raça” e o fortalecimento de uma pauta contrária aos direitos das minorias no Brasil e na América Latina mostram a atualidade do tema tratado. A história da eugenia deve, nesse sentido, servir para problematizar as consequências de discursos e práticas reacionárias, racistas e excludentes, independentemente de se viver em países latinos ou anglo-saxões”.