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Além de alvo, mulheres foram agentes da eugenia, movimento baseado na “melhoria da raça”

No Brasil das primeiras décadas do século 20, ideário eugênico era o que havia de mais moderno na ciência e disseminado por vozes como o de Eunice Penna Kehl

Karine Rodrigues

17 set/2024

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“Minha avó era progressista nos costumes e muito livre em suas observações a respeito das pessoas e de si mesma, como se constata na leitura dos diários. Descobrir, tanto anos após sua morte, que tenha sido fã da eugenia e simpatizante da Alemanha durante a guerra foi para mim uma grande decepção”, observou a psicanalista Maria Rita Kehl sobre Eunice, no posfácio de Diários (1935-1936), lançado pela Chão Editora. O livro reproduz, na íntegra, o conteúdo de dois dos 14 cadernos onde a mãe de seu pai desfiava desejos, frustações, rotinas domésticas e a dor da perda do primogênito, que morreu de septicemia na adolescência.  

Eunice Penna Kehl (1901-1980) é destaque em nota de pesquisa publicada na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos e que analisa a participação feminina na eugenia brasileira e os discursos médicos sobre os papeis e funções sociais dos sexos na primeira metade do século 20. Termo criado pelo cientista inglês Francis Galton, em 1883, a eugenia almejava um mundo restrito aos “bem-nascidos”, daí a aproximação com o programa de higiene racial nazista. Em busca da eliminação de grupos considerados indesejados, como judeus e negros, o movimento científico defendia práticas como o exame médico pré-nupcial obrigatório, a restrição da imigração e a esterilização compulsória. 

Escrito por Thayná Soares de Almeida Vieira, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), com orientação do pesquisador Robert Wegner, o texto aborda um aspecto da história da eugenia ainda pouco explorado: a participação das mulheres como agentes do movimento científico.  

No Brasil, as mulheres, consideradas pelos eugenistas “as guardiãs das futuras gerações”, e, por isso, foco de práticas contra a “degeneração da raça”, foram participantes ativas na disseminação dos preceitos eugênicos, argumenta a historiadora. Em sua análise, ela dá especial atenção às produções de Eunice e da médica sergipana Ítala Silva de Oliveira (1897-1984), mas outros nomes fazem parte da pesquisa que ela está realizando no doutorado, como Maria Lacerda de Moura (1887-1945), Adalzira Bittencourt (1904-1976), Sylvia Serafim (1902-1936) e Lily Lages (1907-2003). Em uma das fontes investigadas, o Boletim de Educação Sexual, ela encontrou textos de 17 mulheres, entre professoras, médicas e escritoras.  

“A hipótese que levanto é que as mulheres não foram apenas alvo de políticas eugênicas, mas agentes desse movimento, quebrando com a ideia de que as latino-americanas só se fizeram presentes nos círculos eugênicos na posição de auxiliares e de um mero objeto da eugenia”, diz Thayná, em entrevista por telefone, de Paris, onde realiza temporada de estudos com bolsa-sanduíche no Cermes.  

Brasil, a antítese de um país eugênico 

A eugenia não foi uma ciência homogênea. Adquiria feições próprias, a depender do contexto nacional onde estava inserida. O Brasil, por exemplo, inspirou-se no modelo francês, que, por sua vez, partia do princípio de que mudanças realizadas no meio ambiente e na sociedade, como as condições sanitárias e de saúde da população, poderiam resultar em melhorias nas próximas gerações. Porém, estudos mais recentes apontaram que não se deve caracterizar a abordagem nacional como branda, uma vez que medidas mais radicais também ganharam espaço no país. 

“Nesse contexto, a ciência eugênica apresentava um conjunto de medidas que reiteravam a crença de que os problemas sociais poderiam ser resolvidos com a intervenção da ciência”, escreve a historiadora, acrescentando que, em decorrência do clima tropical e da população mestiça, o Brasil era considerado, pelos europeus, como a antítese de um país eugênico, embora passível de ser transformado.  

Em 2022, quando Diários (1935-1936) foi lançado, Thayná cursava mestrado no PPGHCS e buscava compreender de que forma o controle e a educação matrimonial, considerados elementos centrais da eugenia brasileira, contribuíram para reforçar a condição da mulher como agente central da procriação, sobrevivência e melhoria das futuras gerações.  

Filha de Belisário Penna e esposa de Renato Kehl defendia exame pré-nupcial 

Durante a investigação, o encontro com Eunice seria inevitável e acabaria por levar a historiadora ao tema do doutorado. É que a autora dos diários vivera ao lado de dois médicos defensores da eugenia, embora com visões diferentes em relação aos meios adotados pelo movimento científico. O pai dela, o sanitarista Belisário Penna (1868-1939), considerava a educação higiênica e a reforma social via saneamento como meios para assegurar a saúde da população; já o marido, Renato Kehl, o maior porta-voz da eugenia no país, inicialmente até viu com bons olhos a ligação entre ciência eugênica e sanitarismo, mas depois concluiu que a reforma higiênica, por si só, seria incapaz de modificar o perfil racial no Brasil. Tornou-se, então, adepto de medidas mais radicais para reduzir o número de pessoas consideradas socialmente indesejáveis, como a esterilização obrigatória. 

Alinhada com a ciência eugênica, ela defendia o exame médico pré-nupcial obrigatório como medida para impedir uniões entre pessoas consideradas degeneradas, garantindo assim a saúde das futuras gerações. “Nas palavras de Eunice, uma vez que lhe foi revelado que as doenças e os casamentos realizados em más condições de saúde eram, em grande parte, a causa das mazelas humanas, ela tomou a deliberação de propagar os princípios eugênicos relativos ao casamento”, escreve Thayná. 

Em seus diários, ela conta que ajudava Renato Kehl a corrigir capítulos de seus livros. Em um deles, Como escolher um bom marido, lançado em 1923 e reeditado em 1935, ela escreve o prefácio: “É possível perceber que Eunice adota um tom de aconselhamento, pois ela trata as leitoras em potencial como amigas que, por meio dos seus conselhos, seriam iniciadas no conhecimento eugênico. De acordo com Eunice, as leitoras não demorariam a perceber que o tema tratado na publicação era de grande importância e que a eugenia era uma ciência ‘digna do interesse de todas as moças inteligentes e cultas’ ”.  

Rara presença negra na academia, Ítala foi médica e eugenista 

Ítala Silva de Oliveira fazia parte desse perfil. Bacharel em sciencias e letras, fez uma segunda formação e se tornou uma das primeiras mulheres a defender tese na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1927. Intitulado Da sexualidade e da educação sexual, o estudo destaca a importância de se desmistificar o tema entre as mulheres, uma vez que as informações seriam relevantes para fazer melhores escolhas no casamento e auxiliar na constituição de uma boa raça, seguindo uma linha de argumentação condizente com o movimento eugênico. O conhecimento das funções orgânicas dos sexos não tiraria a pureza de ninguém”, dizia. 

Escolhida para representar a Faculdade de Medicina da Bahia no primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, Ítala defendia a instrução feminina de maneira ampla, pois 

considerava que ela traria benefícios à espécie. “Em sua opinião, a mulher também tem direito ao conhecimento, em seu benefício próprio e em benefício dos seus filhos amanhã”, escreve Thayná, dizendo-se surpresa pelo fato de a médica ser negra e defender uma ciência que propalava o racismo. 

Ítala, destaca a historiadora, considerava feminista o seu discurso a favor da eugenia e acreditava que o feminismo estava sendo mal interpretado. “Segundo ela, o feminismo não queria transformar as mulheres em homens, ele apenas queria dar a elas seus direitos humanos”. E quais seriam, então, esses direitos? Nas palavras da médica, seriam aqueles “correspondentes às atribuições normais na sociedade”. 

Em sua tese de mestrado, Thayná observa que, apesar de ter sido associada, especialmente, às ideias conservadoras, a eugenia também se vinculou a movimentos reformistas. “Naquele momento, o discurso eugênico era o que havia de mais moderno. Então, estar inserido nesse movimento científico era também uma maneira de ter voz, entende? Há essa ideia de que a eugenia foi sempre explicitamente racista e antifeminista, mas na verdade ela foi uma ciência complexa, que se adaptava muito ao contexto que em que estava inserida”, observa a historiadora, destacando que só após 1945, com o nazismo, é que as críticas surgiram de forma mais consistente em relação à ciência propalada inicialmente por Francis Galton.  

Embora não tenha se declarado feminista, Eunice trilhou um caminho nada usual para o período. “A julgar pelos seus diários, era uma mulher sempre em busca de novos projetos. Dava aulas de alemão e fundou, junto com uma amiga e sócia, uma academia de ginástica para mulheres”, escreve a historiadora, que vê uma semelhança entre a esposa de Renato Kehl e a médica sergipana: ambas falam em prol de uma educação feminina, ainda que voltada para um pensamento eugênico. 

Em seus diários, Eunice deixa clara vontade de seguir a carreira de escritora, assim como as barreiras para transformar seu desejo em realidade. Além de argumentar que “a mulher não pode dedicar-se à literatura, sem prejuízo para as suas obrigações”, justifica que “um casal está fadado à infelicidade “quando marido e mulher lutam no mesmo campo de competições”. Naquele período, Renato já escrevera cerca de uma dezena de livros. Quase 40 anos após a morte de Eunice, Maria Rita Kehl deu vida ao anseio da avó paterna ao entregar para a editora Chão os diários que ela escrevera entre 1935 e 1970, uma das fontes que pode ajudar a compreender as complexidades desse movimento, que reacende no mundo contemporâneo quando os “fortes e saudáveis” são privilegiados em detrimento dos mais vulneráveis, como ocorreu durante a pandemia de Covid-19.