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Para além dos geólogos: o que a história tem a dizer sobre o Antropoceno

Em entrevista, Dominichi Miranda de Sá destaca o papel dos historiadores das ciências no debate, que envolve evidências científicas, mas também disputas entre áreas do saber

Karine Rodrigues

16 abr/2024

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Mês mais quente já registrado no planeta e 10º consecutivo de recorde de calor, março de 2024 foi também de altas temperaturas no mundo acadêmico. O debate entre profissionais de diferentes áreas do conhecimento ferveu após o jornal The New York Times vazar o resultado de uma ansiada votação sobre o Antropoceno. Para a maioria dos integrantes da Subcomissão Estratigráfica do Quaternário da União Internacional das Ciências Geológicas, o Antropoceno precisaria ter raízes muito mais profundas no tempo geológico para caracterizar uma nova época. Segundo esses geólogos, continuamos no Holoceno. 

Em debate desde a virada do século 21, o Antropoceno motivou, em 2009, a criação, pela União Internacional de Ciências Geológicas, de um Grupo de Trabalho responsável por investigar se estaríamos em uma nova época geológica e qual teria sido o seu início. Decidida a Grande Aceleração como marco temporal, foi preciso apontar um ponto de referência (golden spike) que evidenciaria a passagem do Holoceno para o Antropoceno. O Lago Crawford, no Canadá, foi o indicado, pois se constatou a presença de resíduos de testes nucleares, agrotóxicos, queima de combustíveis fósseis e de microplásticos depositados em seus sedimentos. A proposta foi enviada para três comitês da União. Mas esbarrou já no primeiro, a Subcomissão de Estratigráfica do Quaternário, onde estão reunidos geólogos que se dedicam ao estudo das camadas de rocha e como elas se relacionam no tempo. Houve 12 votos contra o Antropoceno, 4 a favor e 2 abstenções. 

Publicada em 5 de março, a notícia logo se espalhou em veículos da grande imprensa e publicações especializadas. Na ocasião, a historiadora Dominichi Miranda de Sá, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), estava às voltas com os preparativos para retorno ao Brasil, após pós-doutorado em Portugal, mas nem titubeou: estudiosa do tema, deu uma pausa para acompanhar – e participar – das discussões que movimentaram redes sociais e grupos de whatsapp. 

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Dominichi Miranda de Sá: "É incontornável que o debate do Antropoceno seja público"

“Alguns colegas disseram que nós, analistas do tema, teríamos ficado órfãos, sem objeto de estudo porque a discussão sobre o Antropoceno teria sido liquidada. Então, entrei na discussão para dizer: ‘Não! As notícias sobre a morte do Antropoceno estão muito exageradas. Essa discussão sobre o Antropoceno precisa ser vista sob as lentes da história das ciências porque é um debate sobre evidências científicas, teorias, metodologias, abordagens, mas é também um debate sobre autoridade científica, expertises, diferentes paradigmas disciplinares e disputas sobre como a ciência deve funcionar’ “, diz a historiadora, frisando a importância de tornar pública essa discussão. 

Em entrevista, Dominichi detalha o relevante papel dos historiadores das ciências no âmbito do Antropoceno e conta por qual motivo a Fiocruz – e, especialmente, a Casa de Oswaldo Cruz – está na crista da onda nesse debate tão relevante para a vida no planeta.

Em março, uma votação na União Internacional de Ciências Geológicas vetou o Antropoceno. Geólogos concluíram que as mudanças ocorridas na Terra ainda não são profundas o suficiente para caracterizar o início de uma época geológica. Como as ciências humanas, em particular a História, reagiu ao anúncio? 

Quando a notícia saiu, a Science e a Nature, as revistas científicas mais prestigiosas do mundo, repercutiram a discussão. Entre nós, do campo das humanidades, ainda não vi um debate mais circunstanciado. Na verdade, houve uma repercussão nas redes sociais, da qual participei um pouco. Alguns colegas disseram que nós, analistas do tema, teríamos ficado órfãos, sem objeto de estudo porque a discussão sobre o Antropoceno teria sido liquidada. Então, eu disse: ‘Não! As notícias sobre a morte do Antropoceno estão muito exageradas. Essa discussão sobre o Antropoceno precisa ser vista sob as lentes da história das ciências porque é um debate sobre evidências científicas, teorias, metodologias, abordagens, mas é também um debate sobre autoridade científica, expertises, diferentes paradigmas disciplinares e disputas sobre como a ciência deve funcionar’. É muito importante entendermos isso, pois várias áreas do conhecimento estão envolvidas na discussão pública sobre o Antropoceno e no próprio Grupo de Trabalho que propôs a nova época geológica à União Internacional das Ciências Geológicas. A geologia tem a atribuição de fazer a formalização das novas unidades cronoestratigráficas, mas ela não está isolada neste debate. A história das ciências, por exemplo, é fundamental para entendermos melhor tanto o conceito do Antropoceno quanto a própria história do Antropoceno, como e quando começou e o papel central da tecnociência neste processo.

Como a história das ciências pode contribuir para essa discussão?

O debate sobre o Antropoceno é uma problemática científica que emergiu por conta da institucionalização de uma outra disciplina, chamada Ciências do Sistema Terra. Ela surge na época da Guerra Fria, na configuração da Big Science, ou seja, em programas de pesquisa altamente transdisciplinares, transnacionais, financiados por vultuosas somas de recursos de agências multilaterais e países desenvolvidos. A história das ciências explica como esta disciplina emergiu e, com suas novas técnicas, equipamentos e instrumentos científicos, colocou uma nova categoria geofísica no debate político e científico – o Sistema Terra. Então, é fundamental entendermos que quem está advogando muito esse debate é uma disciplina nova, bastante diferente da geologia. Assim como essas disciplinas, nós, das ciências sociais e humanas, estamos igualmente participando da discussão, mas contribuímos com outras temáticas, como os marcos temporais, as paisagens multiespécies, a problematização do próprio termo Antropoceno, perspectivas decoloniais que evidenciam cortes de raça, gênero e classe nos impactos das mudanças planetárias. Os geólogos, por sua vez, em processos muito rigorosos e demorados, estão buscando o marcador de uma nova época geocronológica. Já os cientistas do Sistema Terra, de sua parte, estão trabalhando com outras abordagens, discutindo mudanças biotermodinâmicas na Terra e os limites planetários no uso da água, da biodiversidade e do solo, por exemplo, além dos quais o Sistema Terrestre não funcionará mais em um estado estável, como foi no Holoceno.  

E as humanidades?

Nós estamos insistindo que essa discussão da biogeofísica precisa estar associada a processos históricos e socioeconômicos, ou seja, que deve se realizar o estudo de uma natureza sociofísica verdadeiramente entrelaçada. E problematizamos bastante, por exemplo, os enunciados científicos que tratam das responsabilidades da espécie humana em termos agregados sem considerar a história do empoderamento tecnológico de apenas certas sociedades na história e a distribuição bastante desigual de riqueza e impactos sociais, que estão na origem da Grande Aceleração. Até o próprio conceito de Antropoceno, como eu já disse, tem sido criticado em favor de outras propostas, como Capitaloceno, Plantationceno, Sojaceno, Lixoceno, Tecnoceno. O que muitos advogamos é que a discussão do Antropoceno necessita de colaborações multidisciplinares dada a configuração geohistórica do problema. O historiador indiano Dipesh Chakrabarty, umas das principais referências nesta discussão, diz que o Antropoceno impôs uma fusão da história humana e da história planetária. Definitivamente, não se trata de um objeto de uma única disciplina em termos científicos tradicionais. 

Qual teria sido o marco temporal, segundo o Grupo de Trabalho do Antropoceno?

O Grupo de Trabalho advoga que o Antropoceno teria começado na chamada Grande Aceleração, conjunto de processos socioeconômicos e biogeoquímicos ocorridos a partir da década de 1950. Essas décadas testemunharam níveis jamais vistos de industrialização em escala planetária, com verticalização súbita e muito acentuada de todos os níveis de exploração de elementos naturais, especialmente daqueles destinados a gerar energia. Por sua vez, a queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás) intensificou a poluição do ar e o desflorestamento, assim como o aumento de dióxido de carbono na atmosfera. A exploração da água levou à alteração brutal de cursos e regimes hidrológicos por barragens, usinas hidrelétricas e canais para irrigação na agricultura. Somem-se a esses fenômenos do período, a criação industrial de animais para a alimentação humana, e a crescente simplificação de ecossistemas pela drástica diminuição da biodiversidade para a criação agropecuária. Frente a essa proposta, geólogos objetaram: ‘Processos geológicos se estendem por milhares, milhões de anos, então, como é que o Antropoceno pode ter começado há 70 anos apenas?’ Alegaram que seria preciso considerar outros marcos temporais, como, por exemplo, o início da agricultura, há 10 mil anos; a colonização das Américas e do Pacífico, com devastação ambiental e drenagem de recursos naturais de outros lugares do planeta para a Europa; a Revolução Industrial, no século 18, com a queima de combustíveis fósseis. Esse debate sobre o início do Antropoceno é o pomo da discórdia e esse ponto, exatamente, levou à rejeição do Antropoceno com uma nova época geológica. Os geólogos disseram que o Antropoceno pode continuar a ser usado como um termo informal ou como um grande evento da história planetária, mas não é uma nova época geológica. Importante reter que os geólogos jamais negaram as mudanças climáticas ou o impacto da ação humana no planeta. Até porque, como diz o professor australiano Clive Hamilton, encontrar sinais em estratos rochosos não é definitivamente similar a identificar uma mudança no funcionamento do Sistema Terra. 

A decisão tomada pelos geólogos traz consequências. Quais impactos esperar?  O que se sabe mais sobre essa votação?

Na decisão da subcomissão, os geólogos criticaram o Grupo de Trabalho que fez a proposta da nova época geológica. Argumentam que demoraram muito a apresentar um relatório, cobrado intensamente desde 2018, porque privilegiaram o debate público, com muitas entrevistas, seminários, papers, notas para a imprensa. Alegaram ainda que o Grupo de Trabalho era quantitativa e qualitativamente muito diverso, poderíamos nós dizer “uma anomalia”, nos termos do [físico e historiador da ciência] Thomas Kuhn (1922-1996), no seu clássico A Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962. ‘Eram 30 membros e o grupo era altamente interdisciplinar’. Havia, além de geólogos, cientistas do sistema terra, arqueólogos, ecólogos, paleoecólogos, geógrafos, juristas e historiadores, da ciência, como a estadunidense Naomi Oreskes, uma das especialistas no debate sobre o negacionismo climático e confiança pública na ciência, e o historiador ambiental John McNeill, referência incontornável na discussão da Grande Aceleração. A União Internacional aceitou a natureza multidisciplinar do Grupo de Trabalho, mas negociou que, nos termos da sua disciplina, apenas os geólogos poderiam participar da votação e da decisão finais. Vamos, assim, vendo a própria visão que eles têm da ciência na sua relação com o debate público e da rigidez das fronteiras disciplinares entre as ciências. No Grupo de Trabalho, a discussão era transdisciplinar. Em propostas como o Anthropocene Curriculum do Instituto Max Planck já se vem discutindo o codesenvolvimento de experimentos curriculares transdisciplinares com a participação de diferentes comunidades epistêmicas, artísticas e coletivos sociais. O instituto já vem trabalhando também nos marcos de uma disciplina nova, uma transdisciplina: a geoantropologia, que vai pesquisar a existência de um Sistema Terra tecnológico (a tecnosfera) e os seres humanos como entes concomitantemente biológicos, culturais, sociais e tecnológicos. Precisamos participar disso. E destaco aqui outra vez o Clive Hamilton, que é um dos que advogam que a geologia não pode ser a única área a ter a última palavra sobre o Antropoceno. ‘Esses marcos rochosos que os geólogos estão procurando só vão ser encontrados, nos termos que a disciplina exige, daqui a milhões de anos’. A gravidade do Antropoceno e da mudança climática não pode obviamente esperar por essa decisão disciplinar.

E nós não vamos mais estar aqui…

Ele diz isso também! Que daqui a milhões de anos não haverá mais humanos e nem geólogos. E fala que é preciso partir de outros cânones, até para atender a urgência política que o debate exige. O Clive Hamilton não é o único, mas ele defende que o Antropoceno é uma revolução científica nos termos do Thomas Kuhn, então, trata-se de uma mudança de paradigma. Por isso, dizemos que a história das ciências é fundamental para essa discussão. Pois não se trata da apresentação de melhores ou definitivas evidências científicas, de certo versus errado, de conhecimento obsoleto versus conhecimento mais avançado. São paradigmas diferentes, ou seja, sistemas de pensamento, que tem a ver com teorias, metodologias, valores, com o modo como se interpretam evidências e o funcionamento da ciência, no sentido do Kuhn. O Hamilton, exatamente, diz que a formalização do Antropoceno não vai poder ser como se deu até agora, a partir de uma única disciplina, de uma única autoridade epistêmica, só com a participação da ciência como o padrão-ouro dessa discussão. É como outros teóricos também dizem: ‘Esse é um tema que tem tudo a ver com todas as questões mais importantes das sociedades contemporâneas porque tem relação com as perguntas de como vamos viver, criar os nossos filhos, fazer compras, trabalhar, circular no mundo, discutir essas mudanças, estabelecer a nossa política, a nossa economia’. Então, isso interessa a todos, todas, nossa espécie e outras espécies também. É incontornável que esse debate seja público. E, mais, com a participação intensa dos coletivos e saberes indígenas e em diálogos bem horizontais e simétricos, pois, mesmo antes da amplitude que o debate sobre o Antropoceno ganhou, já sinalizavam para a “queda do céu”, como adverte Davi Kopenawa. Filósofos indígenas, cientistas do sistema terra, cientistas sociais estão argumentando que estamos vivendo um momento de transformações planetárias radicais, que o Antropoceno é uma ruptura irreversível no funcionamento do sistema terra. A filósofa Débora Danowisk e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro dizem que saberes indígenas são cruciais para nós agora, pois essas sociedades são especialistas em fim de mundo, já que o deles terminou há mais de 500 anos. E isso não é salvacionismo. É perspectiva decolonial: as sociedades indígenas têm epistemologias e ontologias relacionais que nos permitem pensar fora da gramática apocalíptica e escatológica tão associada ao Antropoceno. Aliás, o filósofo, agora imortal, Ailton Krenack já escreveu o maravilhoso livro: Ideias para adiar o fim do mundo. Insistimos que essa discussão, dada sua gravidade e imprevisibilidade sem precedentes, exige novas cooperações epistemológicas e com outras cosmovisões.   

É possível que esse veto ao termo seja apropriado de forma equivocada pelos negacionistas do clima?  

Isso pode ser acionado pelos negacionistas do clima sim, sob argumentos que já mencionei. Não tem mais Antropoceno, ‘Os geólogos disseram que não têm mudança no clima’. Eles não disseram isso, mas, nesse tráfego de fake news, é claro que isso pode acontecer. Outra coisa que nos preocupa: será que vamos ter uma redução de financiamento para pesquisas científicas que estudam o Antropoceno? Precisamos colocar isso em debate público. Está em aberto e a luta é política, como sempre 

Você pode situar o Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde na produção de conhecimento nessa área?

Até brinquei no nosso grupo de whatsapp: nós, da Casa de Oswaldo Cruz, somos tão ou mais importantes que os geólogos no momento: historiadores da ciência somos interdisciplinares por definição, temos um museu magnífico (Museu da Vida Fiocruz), com uma capilaridade enorme em divulgação científica, estamos na Fiocruz, com uma proximidade com os cientistas de outros campos do conhecimento. Então, temos uma possibilidade muito grande de transformar esse debate como o momento exige: insisto, em interdisciplinar e público. 

O que o grupo de pesquisa da Casa sobre o Antropoceno faz atualmente?

Atualmente, estamos com um projeto financiado por um edital Proep, Casa de Oswaldo Cruz e CNPq, sob a coordenação do André Felipe Cândido da Silva: A Amazônia como microcosmo do Antropoceno. Nós pesquisamos o processo por meio do qual a Amazônia, em redes e na associação entre projetos climáticos transnacionais e saberes ecológicos locais, amazônicos, passou a ser vista como um bioma de interesse planetário, fundamental para a própria regulação climática. Procuramos entender como é que se deram os debates científicos em relação a essa ressignificação. No grupo de pesquisa, participam dois professores da Universidade Nova de Lisboa, com quem trabalhei em Portugal: Maria Paulo Diogo e Davide Scarso. Eles têm uma produção importante sobre a relevância da história das ciências e da tecnologia no debate sobre o Antropoceno, com contribuições originais ao campo, como os conceitos de Anthropolands e lupemnature. Além de publicações, cursos, novos projetos de pesquisa, estamos estimando maior mobilidade de pesquisadores entre as duas instituições. Faremos triangulação ainda com parceiros da Universidade Federal do Pará e Museu Goeldi, como Nelson Sanjad e Érico da Silva Muniz, que também são pesquisadores do projeto da Amazônia. Colaboração, muita colaboração, local, interespecífica, ontológica, nacional, transnacional, interdisciplinar – esses são nossos interesses agora.   

Nota do editor: Dois dias após a publicação da entrevista, o Grupo de Trabalho do Antropoceno publicou uma resposta no The Smithsonian Magazine para rebater essa suposta insuficiência da Grande Aceleração como marco temporal. Sobre o teor da resposta, Dominichi Miranda de Sá comentou: “O Grupo de Trabalho enfatizou que o Antropoceno não é mera devastação ambiental de ecossistemas, que não se trata de abranger todas as transformações antropogênicas da história humana. A proposta se refere a uma ruptura radical: impactos globais e sincrônicos ao redor do planeta e que alteraram de maneira irreversívelfuncionamento do Sistema Terra. Registraram com todas as letras: o Antropoceno é a despedida definitiva da Terra e de seus habitantes do sistema planetário estável do Holoceno”.