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Como o combate químico a pragas e doenças na lavoura contribuiu para a degradação ambiental

Em estudo sobre a história da agricultura, pesquisador amplia perspectiva de análise sobre o tema ao focar na relação entre plantas, patógenos e insetos

Karine Rodrigues

10 nov/2022

Fungo causador de uma epidemia iniciada em meados do século 19, na Irlanda, o Phytophthora infestans não nutria o menor interesse por seres humanos, mas foi protagonista de uma crise humanitária de enormes proporções: um surto de fome que levou à emigração de mais de dois milhões de irlandeses, perda com impactos duradouros na história do país. Agente de uma doença chamada míldio-da-batateira ou requeima, ele evoluiu no processo de domesticação das plantas, na transição da caça e coleta para o regime agrícola.

O episódio, conhecido como um dos mais célebres problemas fitossanitários de que se tem notícia, é narrado em estudo sobre a longa história da agricultura, publicado em recente edição do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas. Escrito pelo biólogo e historiador André Felipe Cândido da Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS), da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), o artigo investiga o encontro entre plantas, insetos, patógenos e sociedades na perspectiva de uma história agroecológica e do conhecimento científico.

O estudo traz um foco pouco usual na historiografia ao lançar luz sobre pragas agrícolas e doenças vegetais, que, destaca o pesquisador, representam eixos privilegiados de análise da formação da agricultura industrial como prática hegemônica no Ocidente. Silva mostra que o caminho escolhido para se combater microorganismos e insetos na lavoura diz muito sobre como a agricultura vem contribuindo para as mudanças globais características do Antropoceno, nova época geológica marcada por drásticas alterações nos fluxos naturais da Terra.

“A contaminação do ar, do solo e das águas por componentes químicos, com consequências ecológicas locais e globais, deve-se em parte significativa ao uso intensivo de pesticidas”, escreve Silva, sobre um cenário acentuado pela Grande Aceleração desde os anos 1950, quando avanços nos sistemas de produção e consumo resultaram em desmedida e inédita exploração de recursos naturais. O panorama se tornou ainda mais crítico a partir da Revolução Verde, movimento que apostou no aumento da produtividade de alimentos como forma de se acabar com a fome, por meio da mecanização, do intenso uso de energia nos sistemas agrários e de produtos químicos poluidores e tóxicos.

Redução de biodiversidade deixou monoculturas mais frágeis 

Não é de hoje que o homem disputa plantações com pragas e doenças vegetais. O embate vem desde a transição para a agricultura e foi se acentuando com o aumento da circulação global de plantas e sementes. Commodities coloniais, como café, algodão e cacau, viraram alvo fácil de inúmeros patógenos. A situação se agravou ainda mais com a consolidação do sistema capitalista, que trouxe a reboque a agricultura industrial, baseada na monocultura, mecanização intensiva e uso generalizado de agroquímicos, e se estabeleceu como padrão de produção alimentar.

Segundo relatório de 2021 da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e da Convenção Internacional de Proteção de Plantas (CIPP), de 10 a 28% da produção global atual são perdidos para pragas e doenças, com custos de mais de US$ 220 bilhões, cita Silva no artigo, lembrando que insetos e patógenos prejudicam todos os componentes da segurança alimentar. Para complicar o cenário, Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de 2019, alertou que pragas e patógenos já estão sofrendo modificações em função das mudanças climáticas, um prenúncio de mais prejuízos na lavoura.

Mas como as perdas nas safras alcançaram número tão impressionantes? Silva explica que o plantio de um único tipo de produto agrícola, com vistas à exportação, contribui para o aumento das pragas agrícolas e epidemias vegetais ao radicalizar a simplificação ecológica: “Ao substituírem ecossistemas biologicamente mais diversos ou sistemas agroecológicos menos exclusivistas, as plantations tornaram-se suscetíveis aos ‘inimigos da lavoura’, por se constituírem de uma única espécie de planta, em geral com a mesma composição genética, estando concentradas em um mesmo espaço, de modo diferente da configuração de seus ambientes de origem”.

Busca de solução para perdas nas safras impulsionou conhecimento

As perdas econômicas decorrentes da maior incidência de pragas e doenças vegetais alavancaram a produção de conhecimento científico. Especialidades como a fitopatologia e a entomologia passaram a focar em soluções para os problemas causados pelos parasitas de culturas economicamente relevantes, contribuindo para alicerçar um padrão de ciências agrícolas.

Entre os agrotóxicos então utilizados nas lavouras, a estrela era o DDT, originalmente usado contra mosquitos vetores de doenças. O produto caiu nas graças da indústria agrícola quando o químico suíço Paul Hermann Müller descobriu, em 1939, as propriedades inseticidas do composto, achado que o fez ganhar o Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1948. Era um caminho curto e eficiente, mas também muito nocivo à saúde humana, animal e dos ecossistemas, denunciou a bióloga norte-americana Rachel Carson no livro Primavera silenciosa, publicado em 1962, obra que deflagrou o movimento ambientalista.

No artigo, Silva explicita a complexa relação entre os avanços do conhecimento científico, que resultaram em tecnologias de larga escala utilizadas na agricultura industrial, e as consequências drásticas de tais descobertas no meio ambiente. Um exemplo foi o desenvolvimento do método Haber-Bosch de fixação artificial do nitrogênio, possibilitando uma fertilização sintética que já afeta o próprio ciclo natural do nitrogênio, uma das características do Antropoceno. Pela descoberta, Fritz Haber e Carl Bosch ganharam o Nobel de Química, respectivamente, em 1918 e em 1931.

“Existe um certo denuncismo de que as ciências tiveram a serviço dessa agricultura industrializada, tóxica. A ciência não é una. As mesmas ciências também desenvolvem outras alternativas e ajudam a evidenciar os efeitos danosos dessa mesma agricultura. Então, na verdade, é algo muito mais complexo. Por isso, o papel do Estado é importante porque ele permite, por exemplo, a realização de pesquisas que não estão tão sujeitas à pressão direta dos interesses econômicos produtores e da indústria química. É claro que essa pressão também pode ocorrer via Estado, ainda mais quando o Estado se torna um comitê de defesa desses interesses, mas potencialmente você pode desenvolver pesquisas em outras direções”, observa o pesquisador.

Em reação à descoberta dos efeitos acumulativos do DDT para os organismos e para o meio ambiente, surgiram novos saberes, além do retorno à cena dos métodos biológicos para o controle de pragas. Para fazer frente aos meios empregados pela agricultura industrial, ganharam destaque o manejo integrado de pragas (MIP) e formas sustentáveis de produção de alimentos e de combate a insetos e patógenos, agrupadas sob o rótulo de agricultura alternativa. “Métodos mais atentos às dinâmicas locais dos ecossistemas passaram a valorizar a sinergia, a diversidade e a integração junto a processos sociais que valorizam o envolvimento de comunidades e grupos tradicionais”, escreve Silva.

Agenda de pesquisa sobre saúde e ecologia na Grande Aceleração

O papel fundamental da agricultura nas transformações ecológicas tem atraído mais a atenção da historiografia, em especial, da história ambiental, mas estudos sobre a perspectiva das pragas, dos patógenos e das plantas são escassos, no contexto internacional e também brasileiro, observa o historiador. “No caso do Brasil, acho que a falta desses estudos fica ainda mais gritante pela relevância que a agricultura tem na história do país, que nesses cinco séculos se insere na economia mundial basicamente pela exportação de commodities agrícolas”.

Segundo ele, esse caráter incipiente pode ser em razão de diversos fatores, entre os quais, o desenvolvimento relativamente recente da própria historiografia das ciências no Brasil como campo profissionalizado, de cerca de 50 anos, e pelo antropocentrismo que marca as ciências humanas e sociais. Mas, observa que atualmente, nas ciências sociais, fala-se em uma virada das plantas, na qual elas passam a ser consideradas seres muito mais ativos, coparticipantes da história humana, e não algo estático que simplesmente reage às intempéries do meio.

“Novos conhecimentos têm mostrado a complexidade de como elas participam da fisiologia da biosfera. Se você pensa as espécies como esses agentes que se afetam mutuamente em relações simbióticas, mas também em outros tipos de relações, você passa a ter visões mais complexas sobre isso. O que é uma praga? Não existe uma praga. É uma concepção completamente antropocêntrica, porque é uma praga para nós, mas o inseto só está lá existindo, se alimentando”, explica o historiador, que integra o grupo de pesquisa História, Saúde e Ecologia no Brasil da Grande Aceleração, do PPGHCS.

A temática dos estudos já realizados pelos integrantes do grupo de pesquisa é variada. Vai da história do movimento agroecológico no Rio de Janeiro e na região serrana, à toxicologia no Instituto Biológico de São Paulo, tema da tese recente defendida no PPGHCS por Leonardo de Bem Lignani; do Programa Nacional de Defensivos Agrícolas à agroecologia dentro das escolas de agronomia; passando por análises sobre o uso de agrotóxicos pós-Rachel Carson. “É uma agenda de pesquisa que tem ganhado muita ênfase e que está dentro de um esforço mais amplo de traçar essa vertente de como é que as práticas agrícolas trazem consequências para a ecologia, para a saúde humana e ambiental”, explica Silva.

Para o pesquisador, embora seja difícil a batalha contra métodos usados pelo agronegócio, “uma disputa entre Davi e Golias’, ele avalia ser importante desconstruir a narrativa que eles divulgam de que o emprego dos agrotóxicos é incontornável. E a História tem feito isso, refletindo criticamente sobre as diversas possibilidades para a produção de alimentos ao longo do tempo.

“O papel da História é mostrar que esse padrão hegemônico que está aí colocado, com agrotóxicos como uma das molas mestras, como se só fosse praticar agricultura assim, não é o único possível. Há controle biológico, a própria agroecologia, várias perspectivas, e não é de hoje. Mas por que é que determinados caminhos foram percorridos e onde ele nos trouxe? Por que é que você não tenta promover formas mais democráticas e ecologicamente sustentáveis de prática agrícola? A história potencialmente empodera esse tipo de perspectiva alternativa. O grande barato da história é mostrar que aquilo que parece natural e inelutável é fruto de escolhas bem pontuadas no tempo”, frisa Silva.

Apesar dos inúmeros problemas decorrentes do atual modelo, e da força do agronegócio no país, o pesquisador enxerga avanços. Por exemplo, o aumento do consumo de alimentos orgânicos e a força da agroecologia, como prática agrícola e movimento social, organizado de forma horizontalizada, com emancipação feminina, além de iniciativas da agricultura familiar, com produtos usados na alimentação fornecida nas escolas. “Isso é uma política pública”.