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Como alguns vermes ajudaram a redefinir as fronteiras da medicina: a gênese da helmintologia no Brasil

04 jun/2012

No Encontro às Quintas, dia 24 de maio, o pesquisador Flávio Edler fez sua exposição sobre A medicina no Brasil imperial: clima, parasitas e patologia tropical, livro que viria a autografar no dia seguinte, durante a festa em comemoração aos 112 anos da Fiocruz na Praça Pasteur, campus de Manguinhos. Professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, ele contou para a plateia, majoritariamente composta de alunos, como foi seu processo de trabalho durante o doutorado, quando estudou a história da helmintologia, “recorrendo a metodologias e aos recursos da sociologia e da história das ciências”.

 

Em suas investigações, o historiador dedicou especial atenção para a controvérsia em torno da descoberta, em 1866, da causa da ancilostomíase ou ‘o amarelão’ de que sofria o personagem de Monteiro Lobato ‘Jeca Tatu’, que colocou, de um lado, o grupo de médicos brasileiros liderados pelo alemão Otto Wucherer e, de outro, os membros da Academia Imperial de Medicina, que contestavam seus argumentos. O doutor Wucherer viveu na Bahia, onde clinicava e fazia pesquisas e, assim, encontrou ancilóstomos, um tipo específico de vermes, em corpos de escravos mortos. Aquele fato acabou jogando por terra a crença entre os helmintologistas da época, para quem a ancilostomíase era provocada por um conjunto de fatores relacionados ao clima e ao meio ambiente, e não por aqueles parasitas intestinais. “A descoberta da causa dessa doença por Wucherer foi uma das grandes contribuições à medicina tropical”, ressaltou Flávio.

 

Diferente do que havia programado originalmente, Flávio Edler não centrou sua apresentação na controvérsia que a descoberta de Wucherer provocou entre diferentes ‘escolas’ médicas no Brasil. Ele preferiu reproduzir aos alunos da pós-graduação a trajetória da pesquisa que fez durante o doutorado, “apenas passando” pelo episódio da controvérsia, que é “o eixo” do livro. Ele contou que, antes de estudar a helmintologia no Brasil do século 19, fez uma pesquisa sobre o ensino médico no país por volta dos 1870-1880, quando ocorria uma grande reforma curricular.  “Os grandes centros médicos daqui, então, estavam muito articulados aos centros de ciências europeus”, o que, segundo Flávio, vem reforçar a idéia de que havia preocupação em se fazer ciência há muito mais tempo.

 

É que o pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz disse o seguinte: na década de 1980, ao analisar o que existia na literatura sobre a ciência médica brasileira, encontrou “dois momentos”. Segundo ele, os médicos, que atuavam como historiadores da medicina, referiam-se aos “estudos sobre a pré-medicina” e “a medicina científica”. O pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz explicou que a história da medicina foi monopólio de médicos, durante muito tempo. “Como os cientistas de outras áreas do conhecimento, os médicos também faziam a história dos seus campos de atuação.” Edler esclarece que aqueles “médicos-historiadores” estabeleceram como marco divisor entre os dois momentos, o grupo liderado por Oswaldo Cruz. “Eles pensavam assim: de um lado ficavam os cientistas, os racionais, que produziam uma ciência válida. Do outro, ficavam os outros.”

 

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Observado por Robert Wegner, Flávio Edler contou aos
alunos da pós-graduação seu trajeto durante a pesquisa
de doutorado. Foto: Vinícius Pequeno

Quando Flávio começou a conhecer esse universo da história, estava fazendo o seu mestrado e começou a perceber que a ciência ainda era um difícil objeto de estudo para o historiador. “Eu estava apenas tateando aquele campo, muito novo ainda para mim”. A história da medicina feita por historiadores veio a acontecer aa partir dos anos 1960 e, como os médicos-historiadores, ressaltou Flávio Edler em sua exposição, os historiadores inicialmente também produziram trabalhos “descontextualizados, anacrônicos”, sem a preocupação em entender a ciência por dentro. Para Flávio, tal característica dos “primeiros estudos históricos sobre a medicina no Brasil, feita por historiadores”, perdurou até o final da década de 1980, início dos anos 1990, quando uma nova safra de trabalhos começou a surgir.

 

“Eu me incluo nesse grupo de historiadores que, de forma pioneira no país, passou a estudar a história da medicina, tentando articular os conhecimentos médicos e da sociedade da época que se analisa, por perceber que não havia uma ciência apenas”, diz ele. “A ciência não é universal; existiram outras ciências, como a do Império, por exemplo.” Segundo o historiador, esse grupo de profissionais do campo da história e outras disciplinas das ciências humanas, veio questionar aquela visão de que apenas com Oswaldo Cruz passou-se a fazer ciência entre nós. “A Escola Tropicalista Baiana reflete outro momento em que se tentou fazer ciência”, diz, mas a visão da literatura era a de que ”eles fracassaram”. Então Flávio tomou como um desafio estudar esses “fracassados” e o efetivo modo pelo qual produziram ciência.

 

Flávio descreveu, então, a estrutura do livro: seguido do prefácio de Sergio Goes de Paula, o 1º capítulo, “Clima e doença no contexto da medicina hospitalar”, é uma “recomposição das bases da climatologia médica no Brasil”, quando a medicina ainda seguia as prescrições da doutrina de Hipócrates, segundo a qual muitas doenças se relacionavam com fatores climáticos, raciais, dietéticos e do meio onde as pessoas viviam. “Pensava-se a doença entre o organismo humano e seu contato com o meio ambiente”, destacou o autor. Neste capítulo, são apresentadas as duas escolas médicas existentes, a do Rio de Janeiro e a da Bahia.

 

No 2º capítulo, “Geografia médica e patologia tropical”, ele disse que buscou “uma cartografia do conhecimento médico, já que não havia apenas uma medicina, mas vários projetos de medicina distintos e concorrentes”. Neste trecho do livro ele descreve os grupos que buscavam reconhecimento e legitimidade, como a Academia Imperial de Medicina, bem como outros tantos, responsáveis por publicar livros, periódicos e manuais de medicina popular, como o Dicionário do dr. Chernoviz. No 3º capítulo, “A helmintologia médica”, o autor discute o surgimento da disciplina, gestada originalmente como parasitismo, no campo da história natural, “até que os médicos alemães começaram a estudar a helmintologia”.  Edler também explica que havia muitas divergências entre as escolas européias: “Alemanha, França e Inglaterra estudavam de formas diferentes a nova disciplina médica”.

 

O 4º capítulo, “A sociogênese da helmintologia médica no Brasil”, foi exatamente o tema da exposição no encontro às Quintas. Flávio disse ter se surpreendido com o que verificou ao começar seus estudos: “pensei que fosse encontrar um debate de surdos, dois paradigmas diferentes, mas não era esse o quadro. Muita gente estudiosa discutindo suas hipóteses, sobre o diagnóstico e o tratamento da opilação, os debates em torno da descoberta de Wucherer”. Seguido das conclusões, o 5º capítulo do livro, “A clínica, a higiene e a parasitologia da constituição da medicina tropical”, encerra o livro, que integra a Coleção História e Saúde, da Editora Fiocruz (R$ 38,00).

 

O próximo Encontro às Quintas será no dia 14 de junho, com a apresentação do professor do Instituto de História da UFMG, Fernando Luiz Vale Castro, que vai discutir a Revista Americana, publicada no Rio de Janeiro entre 1809 e 1819.