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Combate ao negacionismo historiográfico confronta o obscurantismo que ameaça a democracia, diz historiador

10 mar/2021

Por Jacqueline Boechat


    
    Marcos Napolitano. Foto: Cecília Bastos/USP Imagem.

O historiador pode e deve rever o passado diante de novas evidências e novas fontes. Entretanto, nos últimos anos, tentativas de revisar a história por meio de um prisma ideológico ou mesmo de negar as bases factuais de processos históricos têm ganhado terreno no Brasil. A avaliação foi feita pelo historiador Marcos Napolitano, da Universidade de São Paulo (USP) em fevereiro de 2020, quando o professor se preparava para ministrar uma aula sobre o tema na Casa de Oswaldo Cruz, que acabou cancelada com a pandemia de Covid-19. 

Quase um ano depois, quando os desdobramentos da crise sanitária mostraram que o tema é mais atual que nunca, Napolitano é novamente convidado para abrir o ano letivo da Casa com a palestra Negacionismos e revisionismos ideológicos: o conhecimento histórico em xeque, agora em formato virtual com transmissão pela página da Casa no Facebook em 19 de março, às 14h. 

Especialista no período do Brasil Republicano, com ênfase no regime militar, e na área de história da cultura, com ênfase nas relações entre história e música popular e história e cinema, Marcos Francisco Napolitano de Eugênio é doutor e mestre em História Social pela USP. Foi professor no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), entre 1994 e 2004 e professor visitante do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL) da Universidade de Paris III, em 2009.

Atualmente, Marcos Napolitano é professor de História do Brasil Independente, docente-orientador no Programa de Pós-Graduação em História Social da USP e assessor ad-hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Reproduzimos aqui os principais trechos da conversa com o pesquisador, publicada originalmente em março de 2020.

Assista à aula na íntegra:

Em linhas gerais, o que significa negacionismo e revisionismo ideológico?

O negacionismo é uma negação de bases factuais de processos históricos com vistas, sobretudo, a encobrir crimes e genocídios praticados pelos Estados. O 'revisionismo ideológico' não chega a negar consensos factuais, mas tenta reinterpretar os processos históricos e suas motivações partindo de valores e ideologias que orientam a argumentação, mesmo à custa de manipulação de fontes e distorções metodológicas. Em tempo, todo historiador é cidadão e tem valores ideológicos que o orientam, mas a premissa da pesquisa e o método histórico básico (respeito às fontes, argumentação lógica, crítica documental, objetividade) devem ser preservados.

Existe realmente um aumento desse fenômeno e como podemos evidenciar esse aumento?

O negacionismo e o revisionismo não são fenômenos recentes, mas têm aumentado sobretudo pela militância de grupos politicamente orientados nas redes sociais, que são espaços públicos de grande poder de disseminação social, sem controle e sem chancela institucional. Momentos de polarização política, refundação societária ou crise institucional favorecem estes fenômenos.

Esse tipo de atitude é novidade no Brasil ou há informações que corroborem a recorrência do fenômeno?

Não chega a ser uma novidade no Brasil, mas desde 2014 o revisionismo ideológico em torno de alguns temas sensíveis (escravidão, ditadura) tem ganhado visibilidade em torno da crítica conservadora ao "politicamente correto" e à hegemonia político-cultural da esquerda. O negacionismo em relação ao Holocausto é antigo entre nós, embora restrito e marginal ao debate acadêmico e político. Mas, na eleição de 2018, o negacionismo histórico cresceu, como parte da estratégia geral das fake news como propaganda política, sobretudo no campo da extrema-direita.

Quais as fronteiras entre o revisionismo historiográfico e o ideológico? Em que ocasiões a revisão historiográfica pode ou deve ser feita?

Todo trabalho historiográfico inovador é revisionista. O revisionismo faz parte do trabalho do historiador e do debate historiográfico, não há nenhum problema nisso, desde que se respeite o método histórico geral – análise crítica de fontes primárias, explicitação das perspectivas metodológicas e políticas do trabalho, argumentação contextualizada, objetividade analítica (evitando análises puramente valorativas dos personagens históricos). O revisionismo ideológico enquadra não só a perspectiva de análise aos valores do analista, mas também enquadra e limita a argumentação a estes objetivos, descontextualizando ou omitindo fontes, encadeando fatos de maneira linear e simplista, generalizando ações individuais que não representam processos mais amplos.

Quais as consequências de se adotar um modelo revisionista ideológico?

Geralmente, o revisionismo ideológico prepara o caminho dos negacionistas.

Por que é importante falar sobre esse assunto?

Combater o negacionismo historiográfico é parte do combate ao negacionismo científico mais amplo e às fake news como arma política. Portanto, trata-se de combater o obscurantismo que tem sido uma ameaça à democracia e aos valores civilizacionais básicos.