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Ciência em nanquim e negativos de vidro: como Oswaldo Cruz abriu as portas de seu instituto à iconografia

04 nov/2020

Arte: Silmara Mansur / Imagens: Acervo COC.   

Por Karine Rodrigues

Quando a medicina experimental começou a firmar seus passos no Brasil no início do século 20, já se fazia ciência com nanquim, guache e negativos de vidro no então Instituto Soroterápico Federal, embrião da Fiocruz. Entusiasta da imagem em suas diferentes modalidades, Oswaldo Cruz (1872-1917) abriu as portas da instituição para a ilustração científica desde que a pesquisa se fazia em barracões na distante Fazenda de Manguinhos, nas franjas da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro.

Mais do que simples ilustrações relegadas ao papel de coadjuvantes, os recursos visuais desempenharam um papel de destaque na produção científica, O poder comunicativo das imagens ofereceu diferentes possibilidades para a narrativa científica

Em um Brasil onde a institucionalização da ciência se consolidava, importava anotar, provar, divulgar e arquivar como evidência observações e experimentos científicos. Registros visuais de espécies microscópicas de animais e vegetais, anatomia humana e outras áreas do conhecimento se faziam por meio de métodos manuais de representação, como desenho, pintura e gravura, assim como de reprodução técnica, no caso da fotografia. 

Dissertação defendida este ano no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) aponta que a imagem desempenhou papel fundamental na construção do saber médico. A análise se concentrou nos periódicos científicos Memórias do Instituto Oswaldo Cruz e Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins

Memórias do Instituto Oswaldo Cruz entrou em circulação em abril de 1909, quando a instituição criada para produzir soro contra a peste bubônica, quase uma década antes, já espraiara suas áreas de atuação para a pesquisa e o ensino. A publicação surgiu para comunicar a produção científica dos pesquisadores de Manguinhos, uma iniciativa de Oswaldo Cruz. 

Na dissertação Imagem e Ciência: Produção e usos da Fotografia em Periódicos especializados no Rio de Janeiro (1905-1930), Priscila de Oliveira Araújo analisa como as imagens, em especial a fotografia, foram usadas como elemento constitutivo da produção de conhecimento médico e de comunicação em ciência no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século 20.  

A investigação, que teve como foco o primeiro periódico das áreas biológica e biomédica do país e um dos mais antigos da América Latina, denota o papel de destaque ocupado pela imagem nas primeiras décadas de funcionamento da Fiocruz. A iconografia se fez presente em todas as publicações do periódico analisadas entre 1909, ano da fundação, e 1930.  

A revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, existente até hoje em versão online, mesclava artigos científicos, relatórios de expedições científicas realizadas pela instituição, com relatórios e fotografias, e homenagens a integrantes da comunicação científica, em casos de morte. 

“Percebemos que mais do que simples ilustrações relegadas ao papel de coadjuvantes, os recursos visuais desempenharam um papel de destaque na produção científica, na qual sua importância era reconhecida também pelos próprios agentes envolvidos na construção do conhecimento médico-científico. O poder comunicativo das imagens ofereceu diferentes possibilidades para a narrativa científica, na qual as linguagens visual e textual podem ser complementares e, também, de certa maneira, independentes”, observa Priscila. 

Desenhos com microscópios e lupas 


   
    Ilustração de Manoel de Castro Silva. Imagem: Acervo COC/Fiocruz.

Transformar em imagem o conhecimento científico tinha lá as suas especificidades. A elaboração dos desenhos pedia, por exemplo, microscópios, lupas e outros tipos de equipamentos necessários à ampliação máxima dos objetos. Técnica e observação minuciosa possibilitavam que vetores de doenças desafiadores, como a febre amarela e a doença de Chagas, ganhassem forma pelas mãos habilidosas de desenhistas. Para conferir fidedignidade, usavam medidas, redução e aumento de escalas, texturas e cores.  

Além da constatar a onipresença da iconografia nos textos publicados no periódico do Instituto Oswaldo Cruz, Priscila considerou que a estrutura organizacional do Instituto Oswaldo Cruz também indicava o papel de relevância ocupado pela imagem. Setores destinados ao desenho e à fotografia, onde atuavam profissionais da área, concederam à ilustração científica o status de atividade relevante na Fiocruz. 

“A presença desses profissionais no quadro de funcionários do Instituto Oswaldo Cruz logo em seus primeiros anos de funcionamento é, em si, um indicativo da importância da ilustração para as atividades científicas realizadas na instituição. Além disso, vale lembrar que tais ilustrações foram elaboradas por desenhistas contratados, mas também pelos próprios pesquisadores, sendo desenvolvidas por diferentes técnicas e com o apoio de equipamentos”, diz Priscila. 

Pioneiro foi homenageado com designação de espécies 

Criado em 1900, já em 1906 o instituto contava com um profissional da área para realizar os desenhos que acompanhavam os estudos dos pesquisadores. Pioneiro entre os desenhistas profissionais da Fiocruz, Manoel de Castro Silva imortalizou insetos, helmintos, protozoários, entre outros organismos populares entre os pesquisadores, até 1934, ano de sua morte. Ingressou no Instituto Oswaldo Cruz a convite de Oswaldo Cruz para prestar serviços como desenhista e foi efetivado no cargo dois anos depois, onde registrou a sua assinatura em desenhos que acompanhavam trabalhos de pesquisadores como o próprio Oswaldo Cruz, Gaspar Vianna, Cesar Pinto e Adolpho Lutz.  

O predomínio dos desenhos se justifica, em parte, pela constatação do cargo de desenhista no quadro de funcionários aprovados pelo decreto nº 1.802, de 12 de dezembro de 1907, que cria o Instituto de Patologia Experimental.

Em 1918, durante o surto da gripe espanhola, Manoel de Castro Silva foi transferido para o hospital e pronto socorro de Ramos, no subúrbio carioca, impressionando com seus trabalhos o então diretor da unidade, Carlos Chagas. Minucioso, característica essencial para quem se dedicava ao ofício de reproduzir seres diminutos e a anatomia humana, Castro Silva foi homenageado na designação das espécies de helmintos Castroia silvaiLongistriata castrosilvai.  

Castro Silva não brilhou sozinho nas páginas de Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Embora nem sempre os desenhos publicados estivessem assinados, sabia-se que, além dele, atuavam como desenhistas no período o alemão Rudolph Fischer (1886-1955), contratado em abril de 1912,  Luiz Kattenbach (1898-1953), Raymundo Porciúncula de Morais (1892-1981), que foi professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Raymundo Honorio Daniel, Luiz Augusto Cordeiro e Antonio Viegas Pugas (1920-1972). Para traduzir cortes histiológicos e outros preparados miscroscópicos, todos se valiam de muita técnica e desempenhavam um trabalho de miniaturista  


    Manoel Castro e Silva ao microscópio
   Retrato de Castro Silva, pelo desenhista Raymundo Honório Daniel. Acervo COC.

Além dos desenhistas profissionais, cientistas como Lauro Travassos, Aristides Marques da Cunha e Júlio Muniz também deixaram sua marca nas ilustrações científicas. “O cientista assumia o papel de ilustrador que, a partir de técnicas e de observação minuciosa, era capaz de traduzir graficamente e da melhor maneira possível, o conteúdo científico. Utilizando-se de elementos como medidas, redução e aumento de escalas, texturas, cores, entre outros, o ilustrador, torna-se capaz de executar desenhos precisos do ponto de vista científico, sem deixar de lado ou acrescentar nenhuma outra característica, sendo fiel ao objeto a ser ilustrado”, escreve na tese. 

Chefe do Serviço de Arquivo Histórico do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz, Aline Lacerda enfatiza o valor do acervo construído ao longo dos 120 anos da Fiocruz. O arquivo sob a guarda da instituição, com mais de 9 mil negativos de vidro, fotografias em papel e centenas de desenhos, revela a importância dada à iconografia desde o surgimento da instituição. 

“O arquivo histórico do Instituto Oswaldo Cruz, sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz, guarda importantes documentos visuais e mais notadamente os desenhos produzidos pelas pesquisas científicas, como a entomologia, mas não só. Existe uma boa variedade de desenhos de pesquisas diversas. A Casa também guarda alguns arquivos pessoais de cientistas que contém desenhos, como o caso de José Jurberg, e detém um dos mais importantes acervos sobre a história da saúde pública brasileira e o único com informações sobre a atuação do Instituto Oswaldo Cruz – depois Fiocruz – nesse cenário”, observa Aline Lacerda. 

Cerca de 70% dos trabalhos traziam ilustrações científicas 

Em sua pesquisa, que cobre os anos de 1909 a 1930, Priscila considerou 46 números e 12 suplementos de Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, impresso na tipografia da própria instituição até 1940. A investigação aponta que a ilustração foi um recurso utilizado em todo o período do estudo. Com exceção de 1929, mais de 50% das publicações anuais contêm elementos iconográficos.  

Dos 337 trabalhos publicados no periódico pesquisado, 229, ou seja, 68%, contêm ilustração científica de diversos tipos, como desenhos, fotografias e fotomicrografias, dado que aponta para a atenção dada à imagem nas primeiras décadas da instituição. Há 116 publicações que apresentam apenas desenhos, isto é, pouco mais da metade de todas as publicações ilustradas.  


    
    Doença de Chagas [1900- 1930]. Foto: J. Pinto/Acervo COC.

“Este predomínio dos desenhos se justifica, em parte, pela constatação do cargo de desenhista no quadro de funcionários aprovados pelo decreto nº 1.802, de 12 de dezembro de 1907, que cria o Instituto de Patologia Experimental, e que viabiliza a produção deste recurso imagético de forma ampliada no Instituto”, ressalta Priscila na dissertação. 

A pesquisa revela também maior presença da ilustração científica em áreas com destaque para a descrição pormenorizada dos objetos de estudo: entomologia, helmintologia e protozoologia. Independentemente do campo de saber, elas são dispostas, em geral, ao fim do texto e impressas em papel cartão, reservado especificamente às imagens.  

Aline observa que a ilustração científica compreende uma série de serviços auxiliares ao trabalho científico, dentre eles o mais característico desse nome, o desenho. “Esses serviços se esmeravam em produzir representações visuais dos fenômenos que eram objeto de estudo tanto nos laboratórios científicos quanto nos trabalhos de campo. Mas outros serviços técnicos, como a fotografia e a cartografia, além dos gráficos, compunham também os artigos publicados e, todos eles, organizavam uma leitura mais visualmente apreensível das informações e do conhecimento que o artigo veiculava”, detalha. 

Fotomicrografia foi essencial para bacteriologia e histologia 

Na análise empreendida, Priscila contabilizou 1.472 registros fotográficos, sendo que mais da metade estão inseridos na categoria médico-científica, que incluiu, por exemplo, imagens de órgãos, cobaias e plantas. O subtipo mais frequente aqui é a fotomicrografia, técnica em que a imagem é obtida com o auxílio de um microscópio. Usada para registrar células, cortes histológicos de tecidos, espécies de insetos e microorganismos, ela tornou-se essencial a partir do desenvolvimento da bacteriologia e da histologia na década de 1870. No periódico do Instituto Oswaldo Cruz, as fotomicrografias retrataram insetos, microorganismos, plantas e lesões. 

Também foram listadas na pesquisa fotografias de expedições científicas, enfermos, institucionais e de médicos. Segundo Priscila, há um padrão de uso das imagens, usadas para confirmar e validar observações e experimentos. As fotografias de expedições científicas realizadas no interior do país documentam a vida e a saúde do brasileiro e representam um acervo igualmente valioso da Fiocruz. 


Núcleo arquitetônico do instituto que deu origem à Fiocruz registrado por J. Pinto. Foto: Acervo COC.

 

A história da fotografia nas primeiras décadas de existência da Fiocruz tem Joaquim Pinto da Silva (1884-1951), J. Pinto, como protagonista. Por mais de quatro décadas, ele esteve no comando do Serviço de Fotografia. Ingressou na instituição ainda no tempo dos barracões de Manguinhos, em 1903, e, permaneceu até se aposentar, em 1946, por força de problema de saúde. Tamanho era o investimento da instituição na área, que ela ocupou lugar de destaque no Pavilhão Mourisco, atual sede da Fiocruz. 

Segundo Aline, as ilustrações a serviço do trabalho científico tinham como objetivo traduzir visualmente o que o olho do cientista via com base na observação da natureza e seus fenômenos.  

“Essa tradução era compreendida como essencial ao trabalho mas, ao mesmo tempo, deveria perseguir os ideais de objetividade e imparcialidade, os mesmos que guiavam o olhar do cientista. Cada uma dessas formas de representação tem uma história própria sobre como construiu essa força de realidade e de prova. No caso do desenho, mas também em certa medida da fotografia, mesmo operando na perspectiva da objetividade de abordagem, vários exemplares são também obras de beleza estética notáveis”, conclui.