Arte: Silmara Mansur |
Por Cristiane Albuquerque
Com o país caminhando para registrar 66 mil novos casos de câncer de mama este ano de acordo com projeções do Instituto Nacional de Câncer (Inca), as políticas para o diagnóstico da doença no Brasil estão envoltas em uma controvérsia ainda sem solução. Uma indefinição relacionada à idade mínima para a realização de mamografias coloca de lados opostos o Sistema Único de Saúde (SUS) e o setor privado, expondo diferenças históricas em suas respectivas visões sobre o diagnóstico. Em um país extremamente desigual, os desacordos quanto ao uso desse exame como técnica de rastreamento resultaram em um sistema paralelo de detecção precoce, em que as brasileiras que pagam por um plano de saúde têm acesso facilitado ao procedimento na comparação com as que recorrem ao serviço público.
Os embates resultaram em dois programas distintos de prevenção do câncer de mama, evidenciando a tensão entre os setores público e privado: um sistema voltado para a classe média, que recorre aos planos de saúde, e outro destinado às classes mais pobres, usuárias mais recorrentes do SUS
O processo de incorporação da mamografia como um ferramenta de diagnóstico e os debates para a implementação de programas de rastreamento no Brasil foram objeto de estudo dos pesquisadores Luiz Antonio Teixeira e Luiz Alves, da Casa de Oswaldo Cruz, autores do artigo Still Controversial: Early Detection and Screening for Breast Cancer in Brasil, 1950-2010, publicado na revista científica Medical History. “As diversas perspectivas sobre o tema refletem tensões entre o desejo de implementar o direito constitucional da saúde para todos e a realidade das dramáticas desigualdades sociais e do acesso estratificado aos cuidados de saúde. Estas dificuldades também estão relacionadas à força do setor privado na definição de ações de saúde pública e a incapacidade do setor público em regulamentá-lo”, ressalta Luiz Antonio Teixeira.
Os embates em torno dessa questão resultaram, na prática, em dois programas distintos de prevenção do câncer de mama, evidenciando a tensão entre os setores público e privado: um sistema voltado para a classe média, que recorre aos planos de saúde, e outro destinado às classes mais pobres, usuárias mais recorrentes do SUS, apontam os pesquisadores.
No contexto da estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS), o Instituto Nacional de Câncer (Inca) constituía em 1990 sua posição como instituição responsável pela organização das políticas de controle de câncer. No entanto, havia limitações à capacidade de mobilização das recomendações indicadas pelo Instituto, principalmente, em relação ao setor privado que, fortemente estruturado, defendia o uso amplo da mamografia.
“O alinhamento do Inca à Opas [Organização Pan-Americana da Saúde], face da Organização Mundial da Saúde [OMS] nas Américas, propunha políticas que levavam em consideração a complexidade epidemiológica e a desigualdade socioeconômica de cada região, por exemplo”, afirmou Luiz Alves, historiador e bolsista de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC, que também assina o artigo.
A partir de uma lei aprovada em 2008 pelo Congresso Nacional, o exame mamográfico foi garantido a todas as mulheres a partir de 40 anos. Contrapondo abertamente a lei instituída pelo legislativo brasileiro, o Inca estabeleceu em 2015 novas condutas para a detecção do precoce do câncer de mama com a recomendação da mamografia em mulheres entre 50 e 69 anos, a cada dois anos.
É necessário apontar que cada grupo se posiciona a partir de expectativas, interesses e valores próprios. O problema, no sentido prático, é a criação de regimes paralelos de detecção precoce, que muitas vezes se confrontam
No setor privado, o uso da mamografia é estabelecido a partir da interação entre médico e paciente, o cliente do plano de saúde demanda que o médico indique os exames mais precisos possíveis para avaliação de sua saúde. Já na saúde pública, mulheres pobres fazem mamografia de acordo com as recomendações nacionais. “Quem pode pagar recorre mais a mamografia pelo setor privado, já que o exame é socialmente reconhecido como mais eficaz. Diferentemente, no SUS a relação entre médico e paciente é pautada na noção de usuário e no direito à saúde, o que torna a demanda individual associada à orientação do sistema”, destacou Luiz Alves.
A pesquisa, realizada no âmbito do projeto História do Câncer em parceria entre a Fiocruz e o Inca, analisou fontes médicas, principalmente revistas especializadas em oncologia publicadas entre 1950 e 2017, relatórios dos Congressos Brasileiros de Mastologia e campanhas brasileiras de controle de câncer, livros, documentos institucionais e testemunhos orais de profissionais da saúde, pacientes e associações.
Conflitos de interesse
A pesquisa revelou ainda os conflitos de interesse entre as três concepções predominantes sobre o rastreamento mamográfico no país defendido pelas sociedades médicas, especialistas em saúde pública e as associações de pacientes, entre as décadas de 1960 e 2000.
Apoiados nas diretrizes da OMS e da Opas, atores do campo da saúde pública apontavam a inadequação e a inviabilidade de realizar programas nacionais de rastreamento organizado, devido às desigualdades econômicas e acesso limitado aos serviços de saúde. Em contrapartida, membros das sociedades médicas, apoiadas por especialistas da saúde privada, defendiam a implantação de uma política que privilegiasse a mamografia. Já as associações de pacientes demandavam a distribuição ampla de mamógrafos, a redução da faixa etária para início dos testes e maior frequência de exames.
“É necessário apontar que cada grupo se posiciona a partir de expectativas, interesses e valores próprios. O problema, no sentido prático, é a criação de regimes paralelos de detecção precoce, que muitas vezes se confrontam, a ausência de uma resolução e, principalmente, as limitações impostas ao cuidado da população”, disse Luiz Alves.
De acordo com Luiz Antonio Teixeira, os parâmetros de transformação da mamografia em ferramenta adequada para o trabalho de diagnóstico precoce do câncer de mama ainda permanecem incertos. “Sua definição não depende somente de evidências científicas, mas das posições relativas de grupos com interesses e poderes historicamente construídos e consolidados”, disse.
Se a perspectiva de médicos especialistas e as associações de pacientes possui uma forte articulação com a sociedade, através de campanhas publicitárias, em especial o ‘Outubro Rosa’, o campo da saúde pública atribui o posicionamento de seus opositores a interesses de grandes corporações biomédicas. “A discussão segue em aberto, o problema do rastreamento traduz uma questão no âmbito da relação tecnociência e sociedade: como gerenciar as tensões entre atores com diferentes interesses frente a evidências científicas pouco estabilizadas, já não é possível saber – por enquanto – se o rastreamento mamográfico reduziu a mortalidade por câncer de mama no Brasil.”, indagou Teixeira.
Ditadura militar e o enfraquecimento da saúde pública
Perspectiva econômica dos cuidados de saúde, favorecimento do uso do serviço privado de saúde e enfraquecimento do Ministério da Saúde. Estas são algumas consequências apontadas pelo estudo sobre os impactos na saúde pública, medicina e nas articulações sobre o câncer, dos mais de 20 anos de ditadura militar no Brasil (1964-1985).
A política militar, segundo Luiz Alves, priorizou a comprar estatal de serviços de saúde pelo setor privado, ao mesmo tempo em que Programa Nacional de Controle do Câncer (PNCC), criado pelo Ministério da Saúde em 1973, promoveu o reembolso financiado pelo Estado de todos os procedimentos realizados em hospitais e laboratórios particulares. “Devido, principalmente, à ênfase no sistema previdenciário e no desenvolvimento da medicina hospitalar, a ditadura militar contribuiu para o enfraquecimento do Ministério da Saúde na época. Essa formatação do sistema de saúde favoreceu bastante ao setor privado, que cresceu a partir da prestação de serviços ao Ministério da Previdência e Assistência Social”, explicou.
O PNCC também estabeleceu que instituições privadas tivessem vínculo com a Divisão Nacional de Câncer, órgão do Ministério da Saúde, e que poderiam receber equipamentos para o diagnóstico e tratamento de câncer: mamografias e outros instrumentos comprados com dinheiro público foram entregues à rede pública dos estados e, frequentemente, a hospitais particulares e clínicas.
Nesta perspectiva, o setor privado tornou-se articulador na elaboração de políticas de controle do câncer, dificultando as possibilidades de ações amplas e coordenadas. “No caso dos hospitais de câncer, já havia um modelo consolidado de instituições privadas, fundadas por ligas filantrópicas, que eram mantidas com suporte de financiamento público. Praticamente todos os institutos e hospitais de câncer seguem esse modelo, com exceção ao próprio Instituto Nacional do Câncer, instituição do Estado”, concluiu Alves.