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Treinamento de natação no Tietê, em 1929, quando o rio era um espaço concorrido para esportes (Foto: Acervo do C.R. Tietê)

Além da poluição, Tietê abrigou competições esportivas, pescarias e passeios românticos

Artigo na revista 'HCS-Manguinhos' analisa mudanças nas concepções sobre o rio, veiculadas por jornais e revistas produzidas pelos clubes esportivos

Karine Rodrigues

02 abr/2024

Em 1900, quando competidores dos Jogos Olímpicos se lançaram nas águas do Sena, em Paris, para disputar provas de natação, práticas esportivas já faziam parte do cenário do Tietê, em São Paulo. À época, o rio despontava como um concorrido espaço de sociabilidade, ponto de encontro para esportes aquáticos, pescarias, mergulhos, piqueniques e passeios românticos.   

Artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos analisa concepções sobre o Tietê veiculadas por jornais paulistanos e revistas produzidas pelos clubes esportivos nas primeiras décadas do século 20, revelando motivações por trás das transformações ocorridas nos discursos associados ao rio. Curioso imaginar, por exemplo, que até a década de 1880, nadar no Tietê era um desafio à polícia e à legislação vigente, que proibia o divertimento, alegando atentado ao pudor e perigos de afogamento. 

“Colocamos o Tietê em uma conjuntura histórica. Isso ajuda um pouco a desmistificar a ideia do rio só como sujeira, poluição. Toda uma vida social se desenvolveu às margens dele nas primeiras décadas do século 20. É interessante pensar que o Tietê foi também o rio da saúde, por causa dessa associação que os clubes faziam do desenvolvimento corporal com a natação e o remo”, observa a historiadora Daniele Cristina Carqueijeiro Medeiros (Universidad de la República, no Uruguai), autora do estudo, juntamente com Marcelo Moraes e Silva (Universidade Federal do Paraná), e Evelise Amgarten Quitzau (Universidade Federal de Viçosa) 

As mudanças na interpretação sobre o Tietê ocorreram a partir da instalação dos primeiros clubes esportivos à beira do rio, quando São Paulo caminhava para se tornar uma das maiores cidades em imigração no mundo. Em 1899, italianos interessados na prática de remo fundaram o Clube Esperia. O esporte também motivou a criação do Clube Regatas São Paulo (1902), que abriu as portas logo depois, na outra margem do rio, dando origem, mais adiante, ao Clube de Regatas Tietê (1907) e à Associação Atlética São Paulo (1914). 

‘Nem mesmo pela filtração se encontrará um corretivo eficaz’ 

O Tietê se estabelecia então como local de diversão, embora, naquele período, relatórios oficiais já chamassem atenção para a condição sanitária crítica do rio, fruto da ocupação crescente de suas margens e do carreamento de lixo nos períodos de chuva.  

Ao longo da década de 1890, inclusive, jornais associavam o contato com as águas do rio a problemas de saúde. Em 17 de outubro de 1898, O Estado de S. Paulo alertava para exame microbiológico que apontara alta concentração do Bacillus coli (atualmente Escherichia coli), agente causador da cólera, e vetores de outras doenças, como a febre tifoide, no trecho do rio que cortava a capital paulista. Os surtos de doenças registradas em várias cidades brasileiras, segundo o periódico, eram decorrentes do consumo de água contaminada. No caso do Tietê, “nem mesmo pela filtração se encontrará um corretivo eficaz”, frisava a reportagem.   

Para a população que começava a ocupar as margens do rio, porém, ele representava mais um espaço de divertimento do que uma fonte de poluição. O surgimento de uma nova interpretação sobre a vida em meio à natureza, que passou a ser valorizada, impactou as concepções a respeito do rio.  

“Esses discursos, difundidos por médicos, higienistas, sanitaristas, arquitetos e professores, promoviam estratégias de aproximação e aproveitamento da natureza, considerando-a meio profícuo de educação e saúde da população”, escrevem os autores do artigo. Com isso, tanto a população em geral como o poder público direcionaram um novo o olhar para ações em parques, praças e rios, numa “institucionalização da vida ao ar livre’.  

A associação da natação e do remo à promoção da saúde e à formação integral do ser humano, física, social e mental, afetou, então, a forma como o Tietê passou a ser percebido. Antes proibidas no rio, a prática de exercícios e as atividades de lazer passaram a ser incentivadas no local, segundo os autores do estudo: “Esses usos do rio não nascem no momento no qual os clubes são estabelecidos. O rio sempre foi um grande amigo de São Paulo. Vem dele a energia elétrica, por exemplo, e a areia para levantar a cidade”, observa Daniele. 

Naquela época, a saúde passou a ser associada ao desenvolvimento do país. Para se tornar uma nação civilizada e próspera, o Brasil teria antes de solucionar seus problemas na área. Citando Gilberto Hochman (2013), os autores destacam que o “período da Primeira República foi marcante para as mudanças em relação às concepções de saúde e doença, pensadas como problemas identitários nacionais, que deveriam ser combatidos em favor do nacionalismo”. Para combater as enfermidades no período, o saneamento público, que abrangia, por exemplo, a coleta de lixo e o fluxo dos rios, era considerado primordial. 

De amigo a inimigo da especialização esportiva 

Essa concepção, no entanto, mudou quando as características do rio passaram a ir de encontro às regras internacionais dos esportes, a partir da década de 1930. A variação do volume d’água ao longo do ano, por exemplo, inviabilizava a contabilização de recordes. Já a grande quantidade de curvas impedia a criação de raias. Havia empecilhos ao desempenho dos atletas nos esportes aquáticos. “Quanto mais os clubes se aproximavam dos ideais esportivos, menos interessante se tornava a prática nos rios”, segundo o artigo. 

“Os clubes começaram a notar a falta de especialização de seus nadadores e remadores que não treinavam em espaços especificamente criados para disputas esportivas. Pouco a pouco, o Tietê deixava de ser o espaço principal de competições e treinamentos esportivos. Toda a associação entre a saúde, a higiene e os esportes, construída nas décadas anteriores, deixou de acompanhar as impressões sobre o rio”. 

Com isso, o Tietê, antes considerado tão propício à natação e ao remo, é colocado em xeque como lugar ideal para treinamentos e competições. Com o intuito de se tornar uma “nação esportiva”, os clubes passam a construir piscinas, “que foram diretamente associadas à melhoria do desempenho e à quebra de marcas e recordes esportivos”. “De espaço indissociável das práticas esportivas, da saúde e dos divertimentos, o Tietê passou a ser considerado inadequado, dada a poluição do rio e a impossibilidade de realização de provas esportivas”, escrevem os autores. 

A mudança de interpretação não necessariamente está vinculada à poluição nas águas do Tietê, chama atenção Daniele: “O rio já era sujo, especialmente nessa região mais central, mas era imprescindível para as práticas esportiva. Com a profissionalização dos esportes, os clubes deixaram de necessitar do rio. Os clubes vão construindo suas piscinas e virando as costas para o rio”, diz, explicando que a mudança do traçado do rio para a construção de vias rápidas, na década de 1940, distanciou ainda mais os clubes do rio.  

No início dos anos 1940, o Tietê passou a ser visto como um espaço “cada vez mais degradado e perigoso para os habitantes da cidade”. A destruição da mata ciliar, derrubada para abrir espaço para prédios, indústrias e casas, afugentou os animais que habitavam as águas do rio nos trechos urbanos. Por causa do crescimento acelerado de São Paulo e da falta de ações para preservação ambiental, o rio pagou um preço alto. A população deixou de usar o rio para divertimentos, e as provas de natação passaram a ser realizadas nos clubes. No caso do remo, foram transferidas para Santos e Santo Amaro, e, a partir de 1948, para a raia de Jurubatuba. 

Esportes voltam ao Sena nas Olimpíadas de Paris.  E ao Tietê? 

Em estudos sobre o desenvolvimento esportivo da natação na França, Terret (1994) nota que as águas abertas não eram prejudiciais à higiene dos praticantes, e, sim, ao desenvolvimento esportivo da natação. Em São Paulo, situação semelhante foi percebida: antes da total impossibilidade do uso do rio, os discursos que priorizavam as questões esportivas já tinham condenado o Tietê ao posto de transmissor de doenças. Na década de 1940, esse processo de distanciamento se intensificou, e os últimos torneios de natação e regatas foram disputados.  

Sobre a história do esporte, Daniele considera que o tema “ainda é um tanto marginal” nas revistas de História. “Pouco a pouco os historiadores estão se voltando para discutir essa temática e ao mesmo tempo os professores de Educação Física estão se dedicando a pensá-la historicamente”, avalia. A pesquisadora começou a trabalhar com o tema da história da educação física, do corpo e do esporte na iniciação científica. Desde 2021, mora no Uruguai, onde criou um grupo de pesquisa sobre o assunto na Universidade da República.   

Quando julho chegar, e a Olimpíada de Verão voltar a Paris, mais de um século depois, as águas do Sena serão novamente usadas para competições esportivas, proibida durante cerca de um século por causa da água suja. Mas para isso foi necessário um longo e bilionário projeto de limpeza de suas águas, já citado como um dos mais importantes legados dos jogos. Vamos sonhar que isso aconteça também com o Tietê.