Fiocruz
Webmail FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

Acesso rápido à ciência, preprint chega aos jornais, mas falta clareza na divulgação

20 dez/2022

Reportagens baseadas em artigos sem avaliação formal de outros cientistas nem sempre explicitam a preliminaridade dos dados, aponta estudo

   Arte: Elias Sousa   

Imagem de uma mulher negra grávida, segurando a barriga, e, atrás delas, a imagem de um médico e de outro profissional de saúde

Por Cristiane Albuquerque

“OMS declara pandemia; em 15 dias, país pode ter 4 mil casos”. A manchete do jornal Folha de S. Paulo do dia 12 de março de 2020, um dia após a Organização Mundial da Saúde declarar a crise sanitária mundial causada pelo novo coronavírus, indicava o crescimento da doença em escala global e o seu avanço no território brasileiro. Até aquele momento, a Covid-19 já havia atingido mais de 124 mil pessoas em todo o mundo, totalizando mais de 4,6mil mortos.

O leitor ficou sem uma explicação detalhada sobre o que é uma plataforma de preprint, como funciona o processo de publicação de resultados de pesquisas e as implicações de um estudo que ainda não passou pela avaliação de outros pesquisadores

No contexto da emergência sanitária causada pela Covid-19, a necessidade de resposta para o combate à pandemia exigiu o compartilhamento rápido de informações científicas sobre o tema, até então, pouco conhecido. Se, por um lado, a comunidade científica intensificava a divulgação de dados em formato de preprint – artigos acadêmicos disponibilizados em plataformas de acesso aberto sem a avaliação ou revisão de outros cientistas -, por outro, a cobertura jornalística tentava dar conta da grande quantidade de informações enviadas diariamente pelos institutos de pesquisa.

Estudo que analisou a cobertura da pandemia a partir de artigos preprint demonstrou como o caráter preliminar e suas consequentes limitações foram minimizados na maioria das reportagens publicadas nos jornais The New York Times, dos Estados Unidos; The Guardian, do Reino Unido; e Folha de S. Paulo, do Brasil.

A levantamento foi realizado no primeiro semestre de 2020, visto que na fase inicial da pandemia os preprints foram amplamente usados como uma alternativa para compartilhar informação científica sobre o novo coronavírus. Nesse período, os autores identificaram mais de 35 mil reportagens sobre o novo coronavírus publicadas pelos jornais estudados. Desse total, 76 (0.2%) matérias analisaram estudos sobre Covid-19 publicados em plataformas de preprint. Desse valor, 65 faziam referência a resultado de pesquisas e 11, apesar de não relatarem pesquisas específicas, fomentaram discussões e debates sobre o processo de publicação de um artigo científico e a prática de divulgação de versões preliminares de um estudo.

Os dados da pesquisa indicam baixa prevalência de notícias sobre estudos não revisados por pares e revelam também que a mídia dá pouca atenção às informações relacionadas a artigos preliminares.

Veículos divulgam preprint sem a devida explicação sobre o termo

No que diz respeito à explicação do termo preprint e o que é um repositório de preprint, os autores observaram que das 65 matérias baseadas em resultados de pesquisas publicadas como preprint, 50 (77%) indicavam algum esclarecimento sobre o termo. O The New York Times forneceu a explicação em 20 matérias, seguido da Folha de São Paulo, com 19, e The Guardian, com 11.

“O leitor ficou sem uma explicação detalhada sobre o que é uma plataforma de preprint, como funciona o processo de publicação de resultados de pesquisas e as implicações de um estudo que ainda não passou pela avaliação de outros pesquisadores”, alerta Luisa Massarani, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e uma das autoras do artigo, ao lado de Luiz Felipe Fernandes das Neves, doutorando do Instituto de Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). O estudo foi publicado na Revista Ciência e Saúde Coletiva.

Outra evidência da fragilidade da cobertura midiática sobre o tema foi evidenciada pelo estudo e diz respeito aos repositórios: das 41 vezes em que foram citados, apenas 11 (27%) incluíram uma breve explicação sobre o que são e como funcionam esses sites. No The Guardian a explicação apareceu apenas uma vez, e na Folha de S. Paulo, duas vezes. Já no The New York Times, das 13 vezes em que uma plataforma de preprint foi citada, oito foram explicadas.

Além disso, metade das matérias que se referiam a preprints não mencionava a plataforma na qual o preprint havia sido publicado. No jornal Folha de S. Paulo, o nome do repositório foi indicado com maior frequência, e os mais citados foram o MedRxiv (27) e BioRxiv (11).

O estudo constatou ainda que 59% das matérias com informações divulgadas como preprint  apareceram sem declarações adicionais ou entrevistas com pelo menos um dos autores da pesquisa. O índice foi maior no The Guardian, que aparece com 22 matérias sem depoimentos de pesquisadores, seguidas da Folha de S. Paulo, com 16, e The New York Times, com 11. Além disso, em algumas matérias, as fontes de informação eram desvinculadas ao estudo, seja em relação à instituição ou à autoria ou quando o jornal não entrevista os cientistas responsáveis pelo estudo. “Estes veículos ouviram comentários de fontes locais em seus respectivos países, deslocando as pesquisas do contexto em que foram produzidos. O The New York Times apresentou a maior taxa de entrevistas com outros cientistas”, explica Massarani.

Massarani destaca a importância de a mídia ter noticiado conhecimentos provenientes de preprint, especialmente nos primeiros meses da pandemia de Covid-19, tornando pública a geração de conhecimentos sobre o tema e fomentando debates na sociedade e a discussão entre pares, possibilitando o aprimoramento dos estudos.

“No entanto, o ponto fundamental é a necessidade de ampliar a compreensão do público sobre os métodos e processos da ciência, esclarecendo que se trata de um estudo que ainda não passou pela validação de pares”, completa a pesquisadora, que coordena o Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia. 

Na busca de respostas ao público sobre o enfrentamento de uma doença desconhecida, os critérios de noticiabilidade dos veículos foram pautados por uma variedade de temáticas: 16 áreas de pesquisa foram detectadas pelos autores, com o predomínio de conteúdos que envolviam teste de medicamentos (15 citações), identificação de anticorpos contra o vírus na população (11) e poluição e Covid-19 (10). A cloroquina e a hidroxicloroquina, medicamentos utilizados para o tratamento de malária e sem eficácia comprovada contra a Covid-19, apareceram em nove das 15 citações sobre a busca de possíveis medicamentos.

Ciência e diálogo com a imprensa 

Da Fiocruz, uma das mais importantes instituições científicas do país, saíram informações sobre a Covid-19 que pautaram a imprensa nacional e internacional. Em janeiro de 2021, mês em que Brasil registrou uma das mais altas médias de óbito, com quase 30 mil mortes, a instituição recebeu em média cem solicitações e pedidos de imprensa diariamente, totalizando mais de três mil atendimentos.

Coordenadora de comunicação social da instituição, a jornalista Elisa Andries defende que, em um contexto de emergência sanitária, não faz sentido aguardar um artigo ser publicado para que a informação seja divulgada, já que o processo de revisão e avaliação por pares pode levar até um ano.

“Em uma crise sanitária é superimportante que a informação científica circule e que a população tenha acesso a ela no momento da descoberta, seja um medicamento que faz efeito, um dado epidemiológico importante, sempre deixando claro que se trata de um preprint, que se trata de uma informação ainda não corroborada pelos cientistas, pelos pares”, disse Andries, que é mestre em Saúde Pública.

Sobre os processos de divulgação de dados científicos não avaliados por pares, a Fiocruz tem como linha editorial garantir destaque no release – material produzido pela assessoria de imprensa – para esclarecer que se trata de um estudo publicado como preprint. Além disso, segundo Elisa Andries, a instituição orienta seus pesquisadores a reforçar a informação junto ao jornalista que está cobrindo a pauta.

A crise no jornalismo científico brasileiro é outro ponto que deve ser levado em consideração, segundo Andries, para problematizar a cobertura da mídia sobre preprint.

“A estrutura do jornalismo científico no Brasil é pequena, são poucos os jornalistas que, de fato, entendem os processos da ciência. Além disso, durante a pandemia, jornalistas de diversas editorias, como política, economia, cobriram a Covid-19. Quais as implicações disso? São jornalistas que não têm conhecimento sobre o preprint, não sabem do que se trata, pois não faz parte da rotina de trabalho deles, e isso aprofunda o problema”, pondera.

Editora executiva da revista História das Ciências e da Saúde – Manguinhos, editada pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), Roberta Cardoso Cerqueira também destaca a importância do preprint durante a pandemia de Covid-19, no que diz respeito ao processo de abertura de dados na ciência. “Com a pandemia, as revistas científicas, artigos científicos e preprint ocuparam os noticiários dos principais veículos de comunicação, algo inédito na comunicação científica. O compartilhamento dos dados científicos entre cientistas do mundo inteiro permitiu, sem dúvida, que chegássemos até a vacina rapidamente”, avalia Cerqueira.

Na avaliação de Roberta, o diálogo entre instituições de ciência e pesquisadores com a imprensa, a partir dos preprints, exige dos jornalistas um melhor entendimento das práticas mais recentes da comunicação científica e de sua disseminação.

“As assessorias de imprensa de instituições de pesquisa podem auxiliar os jornalistas na compreensão das práticas científicas e, mesmo com o uso do preprint para a divulgação da ciência, a preocupação com a checagem da informação deve permanecer a mesma. Entender como funciona esse universo será cada vez mais importante para a divulgação rápida dos resultados da pesquisa e a qualidade dessa informação para a sociedade”, finaliza Cerqueira.