O fogo persiste há mais de uma semana na Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Além de impactar a fauna local e de já ter consumido milhares de hectares de vegetação nativa, o incêndio ameaça o quilombo Kalunga, o maior do país. Há mais de 300 anos na região, os descendentes de escravizados foram reconhecidos pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em 2021, por conservarem os recursos naturais e a biodiversidade do Cerrado e preservarem práticas ancestrais. O sítio histórico onde vivem se tornou o primeiro TICCA (Territórios e Áreas Conservadas por Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais e Locais) do Brasil, registro concedido pela Organização das Nações Unidas (ONU).
No Cerrado, a baixa umidade do ar favorece a ocorrência de focos de incêndio, um dos efeitos da crise climática na Terra. O aumento da temperatura média global, que já ultrapassou a marca de 1,6º C acima dos níveis anteriores ao período da industrialização, traz também riscos ao patrimônio cultural. Para evidenciar a importância do debate sobre o tema e orientar políticas públicas destinadas à preservação e salvaguarda do conjunto de bens materiais e imateriais de grande relevância para a identidade, a memória e a cultura do povo brasileiro, foi lançada, em setembro, a Carta Brasileira do Patrimônio Cultural e Mudanças Climáticas.
Apresentado como um “apelo à ação coordenada, inclusiva e urgente em defesa do patrimônio cultural frente à crise climática”, o documento foi elaborado pelos comitês nacionais do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) e do Conselho Internacional de Museus (ICOM), com apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). É fruto de um processo participativo que envolveu representantes de comunidades tradicionais, povos indígenas, quilombolas, marisqueiras, pescadores artesanais, coletivos culturais, gestores públicos, instituições e pesquisadores de diferentes regiões e biomas. A Carta considera como princípio norteador a integração das políticas públicas ambientais e de desenvolvimento para a preservação do patrimônio.
“Os museus precisam estar atentos às grandes transformações e demandas sociais, como inclusão, sustentabilidade e diversidade [termos que fazem parte da nova definição de museu, aprovada pelo ICOM em 2022]. No momento, não existem desafios maiores para a humanidade do que o enfrentamento das mudanças climáticas, a defesa da democracia e a redução das desigualdades. Então, é esperado que os museus, para se manterem relevantes como instituições culturais sólidas, busquem responder a esses desafios”, destaca Diego Vaz Bevilaqua, presidente do ICOM Brasil e vice-diretor de Divulgação Científica e Patrimônio Cultural da Casa de Oswaldo Cruz.
Escuta em territórios caracterizados pelos seis biomas existentes no Brasil
A Carta Brasileira do Patrimônio Cultural e Mudanças Climáticas apresenta pontos debatidos durante oficinas realizadas, desde 2023, em regiões caracterizadas pelos seis diferentes biomas existentes no país — Pantanal, Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado, Amazônia e Pampa. Professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e secretária do Comitê de Mudanças Climáticas do Icomos Brasil, Luana Campos acompanhou todos os encontros para a elaboração do documento. “O bem não é inerte aos impactos do clima”, sentencia.
❝ Os patrimônios mais desprotegidos são os imateriais relacionados às populações em situação de vulnerabilidade❞
Diego Vaz Bevilaqua
Vice-diretor da Casa
Durante cada oficina, foram relatados perigos, como queimadas e enchentes, que estão impactando determinados patrimônios. Foi possível mapear também vulnerabilidades e riscos — perda de território, pobreza, ineficiência das leis, destruição de sítios arqueológicos e saberes tradicionais e o deslocamento forçado, entre outros. “A partir daí, vamos saber quais bens correm maior risco de desaparecimento, e o que se consegue fazer para evitar isso, com operações simples ou mais complexas, de baixo ou alto custo”, diz Aline Carvalho, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp (NEPAM), enfatizando o papel da Carta para a definição de ações prioritárias.
Segundo ela, o debate sobre patrimônio pode ser um caminho para o desenvolvimento de ações efetivas de combate e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. “Os povos tradicionais estão muito cientes da crise climática, mas há pessoas que não estão a par, não sabem de que forma de agir ou o que fazer para exigir seus direitos. O patrimônio pode ser uma janela para que isso seja debatido”, avalia Aline, que é professora da Unicamp.
Canoa de um pau só, tambor de crioula, festa do Divino: saberes em risco
É fácil compreender como os efeitos das mudanças climáticas impactam o patrimônio material, constituído, por exemplo, por sítios arqueológicos, conjuntos arquitetônicos e paisagens culturais. Mas quando se trata de bens intangíveis, como práticas e saberes tradicionais, pode ser difícil visualizar essa relação. Para explicar como isso se dá, Luana cita um exemplo que ocorre no Pantanal, onde ela vive, região que, de forma recorrente, tem passado por períodos de seca prolongada, favorecendo a ocorrência de queimadas e incêndios de grandes proporções. Por conta dessa situação, os indígenas que lá vivem não estão conseguindo a madeira necessária para pôr em prática um saber específico: a construção da canoa de um pau só.
“Se a espécie não chega a um tamanho determinado, não faz sentido a comunidade cortar aquela árvore para fazer a canoa de um pau só. Então, esse conhecimento vai se perdendo ao longo do tempo porque, como os indígenas precisam navegar, acabam optando por comprar um barco de madeira ou de alumínio. Se as queimadas acontecem em um período mais curto do que o ciclo natural do Pantanal, já não há mais a madeira para uso desse conhecimento tradicional. E se o conhecimento não é utilizado, ele se perde”, frisa Luana, chamando atenção para o fato de que a Carta enfatiza que os conhecimentos tradicionais e ancestrais são fundamentais para estratégias de adaptação e mitigação.
Além da canoa de um pau só, a professora da UFMS cita outros exemplos de patrimônios imateriais existentes no Brasil: os modos de fazer viola-de-cocho, no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; a cajuína, no Piauí; e as panelas de barro de Goiabeiras, no Espírito Santo. “Esses bens estão em perigo, em decorrência da intensificação dos eventos extremos, motivados por sua vez, pelas mudanças climáticas”, alerta.
Impactos do clima são desproporcionais
A Carta traz a associação entre fatores climáticos e sociais como um de seus princípios norteadores. Sobre isso, o presidente do ICOM Brasil e vice-diretor de Divulgação Científica e Patrimônio Cultural da Casa de Oswaldo Cruz destaca que não há como falar de mudanças climáticas sem considerar os principais atores por trás da destruição de ecossistemas e os grupos mais expostos aos danos causados pela crise ambiental. Territórios indígenas e comunidades tradicionais estão entre os mais ameaçados:
“Há dados sólidos que apontam que os patrimônios mais desprotegidos são os imateriais relacionados às populações em situação de vulnerabilidade. Eles se perderão mais rapidamente. Isso mostra que não há como desassociar questão climática e questão social. Querer aplicar a mesma regra para quem destruiu o meio ambiente e para quem está sofrendo os efeitos dessa destruição é injusto e promove desigualdade social. É muito importante que essa discussão seja sempre a associada à justiça climática”.
❝ Existem iniciativas do governo que buscam essa inter-relação entre setores, mas a cultura não entra, embora seja impactada pelas mudanças climáticas. O ser humano está em risco, e ele não é um indivíduo puramente biológico. É social e cultural❞
Luana Campos
Professora da UFMS
A transversalidade do tema exige um trabalho intersetorial, mas promover o diálogo e inserir a cultura no debate sobre as mudanças climáticas, apontam Luana e Diego, é um desafio. “Existem iniciativas do governo que buscam essa inter-relação entre setores, mas a cultura não entra, embora seja impactada pelas mudanças climáticas. O ser humano está em risco, e ele não é um indivíduo puramente biológico. É social e cultural”, diz Luana, avaliando que até mesmo entre progressistas há quem considere a cultura “penduricalho, souvenir, entretenimento”. “Cultura é o que nós somos, é o que fazemos”.
Cultura como um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável
Em um movimento global pela valorização da cultura, ministros da área, representando 160 países, reuniram-se em Barcelona, na semana passada, e defenderam a cultura como um objetivo independente e autônomo no quadro de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), enfatizando a sua relevância para a democracia, os direitos humanos e a questão do climática. Na avaliação de Diego, a cultura traz os elementos necessários para se trabalhar socialmente os referidos temas.
“É preciso um conjunto de ações que mobilize não exclusivamente as informações, mas os sentimentos, as memórias, as identidades, os pertencimentos. A cultura traz todos esses elementos, atuando em múltiplas dimensões, não apenas cognitiva, mas afetiva e estética. É fundamental que a cultura esteja engajada nessa discussão”, diz, destacando que a Carta dialoga com uma das missões da Fiocruz, que tem a pauta sobre clima e saúde como um grande desafio e uma prioridades da instituição. Ele considera também que a Casa de Oswaldo Cruz pode trazer importantes contribuições ao tema no campo do patrimônio cultural.
Agora, os envolvidos na iniciativa traçam os próximos passos. A expectativa é a criar redes interinstitucionais e comunitárias de resposta às emergências climáticas, envolvendo patrimônio. Durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), em novembro, em Belém, será realizado um evento no Museu das Amazônias para abordar indicadores e realizar um balanço das ações motivadas pela Carta e sobre o papel da Cultura no evento global. “A Carta é uma declaração política para a sociedade e para o campo político”, finaliza Diego.