“Olá, meninas! Vou contar minha experiência pra vocês, pois fiz minha cirurgia dia 26 de março. Se eu falar pra vocês que está sendo fácil, estarei mentindo. (…) Todos os dias penso no arrependimento dessa cirurgia”, desabafa, em uma comunidade virtual, uma paciente submetida a uma cirurgia estética genital cerca de um mês antes. Nos comentários da postagem, uma mulher que passara pelo mesmo procedimento concorda sobre as dificuldades do pós-operatório: “Fico me perguntando pq eles não falam sobre todas estas ocorrências p nós pacientes, ficamos apreensivas sem saber se podem ocorrer ou não aff.”
Na área do fórum on-line destinada à chamada ninfoplastia, cirurgia plástica de redução dos pequenos lábios vaginais, outras 1.015 histórias reais detalham a experiência. Cada relato, por sua vez, traz vários comentários, com teores diversos. Há quem diga ter ficado satisfeita com o procedimento; enquanto outras demonstram arrependimento. E existem também as que repetiram a intervenção. A intensa participação em um só fórum é um indício da grande procura pela cirurgia íntima feminina no Brasil, comprovada por números da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps), que reúne indicadores de 23 países. Segundo dados do ano passado, foram realizadas 28.478 ninfoplastias no país, campeão na realização do procedimento, seguido pelos Estados Unidos, com 18.316 intervenções.
“As cirurgias íntimas podem ser apresentadas como um caso particular no qual as exigências em torno de um corpo feminino ‘perfeito’, e alvo de grandes investimentos, tornam-se imperativas e conduzem a transformações corporais e subjetivas importantes”, analisa a antropóloga Fabíola Ronden, em estudo publicado em História, Ciências, Saúde, Manguinhos, no qual investiga disputas entre as duas especialidades médicas autorizadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) a realizar cirurgias íntimas no país: ginecologia e cirurgia plástica.
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora de temáticas relativas a gênero e ciência; relações de gênero, corpo, sexualidade, saúde; biotecnologias e história da medicina no Brasil e autora de Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher e A arte de enganar a natureza: contracepção aborto e infanticídio no início do século 20, ambos lançados pela Editora Fiocruz, Rohden destaca que esse cenário de transformações no corpo feminino se acentuou com a emergência da internet e das redes sociais.
❝ É importante esclarecer que o padrão que você pode ver em filmes ou em nudes na internet já é construído a partir da plástica ou dos filtros. São duplas camadas de transformação❞
Fabíola Rohden
Professora da UFRGS
Em análise anterior, publicada em 2021 e realizada com base em pesquisas em matérias jornalísticas, redes sociais, grupos em Facebook, Whatsapp e sites com informações sobre cirurgias estéticas, Rohden concluiu que mulheres na faixa etária dos 12 aos 70 anos, com a média em torno dos 30 anos e de diversas camadas sociais, têm buscado fazer o procedimento, realizado, em sua maior parte, por cirurgiões plásticos e no sistema privado de saúde.
Funcionalidade ou estética?
As tensões entre ginecologistas e cirurgiões plásticos estão presentes desde as referências pioneiras publicadas sobre o tema no Brasil, observa a antropóloga, que usou como fonte artigos científicos e sites institucionais, entre os quais, o texto Hipertrofia de ninfas, publicado em 1993. Os autores, ambos cirurgiões plásticos, consideram que, enquanto aos ginecologistas caberia a função de “cuidar da saúde dos genitais, e não de sua estética”, os cirurgiões plásticos, pelo tipo do trabalho que realizam, não estranhariam se uma mulher manifestasse insatisfação com “o tamanho de suas ninfas”.
O artigo Hipertrofia de ninfas já expõe algumas das principais questões que mobilizam até hoje os debates sobre o tema entre as duas especialidades médicas: “a diferença entre cirurgiões plásticos e ginecologistas, entre estética e reparação ou funcionalidade, e entre práticas distantes, hábitos regionais, que beiram a mutilação e os procedimentos, mesmo que puramente estéticos, realizados no âmbito da cirurgia estética”. Na bibliografia internacional, argumentos semelhantes são adotados.
“As fronteiras entre funcionalidade e estética são bastante ambíguas e complexas”, diz a pesquisadora, citando, como exemplo, relatos de cirurgiões plásticos que consideram a colocação de mama de silicone funcional, se for feita em uma jovem, por possibilitar a sua continuidade no mercado afetivo-sexual, mas não em uma mulher na faixa dos 60 anos.
Apropriação do discurso feminista
Já no século 21, em um cenário de consolidação de um modo de viver ancorado na exibição exacerbada e no compartilhamento da vida como ela não é, via uso intenso de filtros nas imagens postadas nas redes sociais, o número de cirurgias íntimas se ampliou, a ponto de registrar um aumento de 50% entre os anos de 2010 e 2012.
Ao falar sobre a maior procura pelo procedimento naquele período, o então presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBPC), órgão oficial da Associação Médica Brasileira e do CFM, justifica: “Cada vez mais, a mulher deseja satisfação pessoal e liberdade. Antigamente, essa questão ficava escondidinha e ‘elas só falavam com o ginecologista’. Mas hoje, com a conquista da maior liberdade sexual e independência, houve esse espaço para a mulher melhorar e buscar perfeição em alguns pontos”, argumenta Nelson Edy Guerra, em texto publicado no site da SBCP, em novembro de 2012. Ele diz ainda que, em mais de 95% dos casos, o procedimento não estaria associado a questões estéticas e objetivava melhorar a confiança e a autoestima das pacientes.
Rohden chama atenção para o uso investido do discurso feminista na argumentação e frisa a importância de se esclarecer sobre a imensa variabilidade da genitália feminina, seja nas redes sociais e sites das especialidades médicas ou de profissionais da área, seja nas consultas. “Trabalhos sérios sobre o tema vão dizer que os casos em que você teria uma questão funcional seriam mínimos, e não os quase 30 mil que são feitos no Brasil”.
Segundo a antropóloga, é importante também deixar claro que, não necessariamente, o procedimento é “fácil, rápido e eficaz”. Em outro estudo, no qual analisa o significado da ideia do antes e depois, ela trabalha com histórias de frustração com a cirurgia, quando as pacientes expressam que estão arrependidas por diversos motivos: dores contantes; cicatriz que não fecha; perde da sensibilidade; corte exagerado dos pequenos lábios.
“Elas começam, então, a aventar a ideia de que não deveriam ter realizado o procedimento. Dizem que se tivessem explicado a elas que tinham uma genitália dentro do ‘normal’, talvez não tivessem realizado a cirurgia. Aí percebemos a importância de uma comunicação que fale sobre a diversidade de uma maneira mais aberta, o que muitos cirurgiões plásticos não estão fazendo”, avalia a professora da UFRGS, observando que, embora sejam responsáveis pela realização da maior parte das ninfoplastias, ela encontrou poucas informações e posicionamentos oficiais sobre o tema por parte dos referidos profissionais.
Padrão que se vê em filmes e na internet já é construído por plástica ou filtros
Rohden avalia que não há uma responsabilidade de se explicar para as mulheres, principalmente para as adolescentes, sobre a variabilidade morfológica da vulva. “É importante esclarecer que o padrão que você pode ver em filmes ou em nudes na internet já é construído a partir da plástica ou dos filtros. São duplas camadas de transformação”, destaca, observando que, muitas vezes, no universo das cirurgias estéticas, não basta fazer, tem de mostrar o resultado. “Esse discurso do investimento combina com toda a ideologia neoliberal e essa ideia de que você tem que ser capaz de se aprimorar, se transformar, saber gastar seus recursos em prol do aprimoramento de si”.
Já nos textos publicados no site oficial da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), principal referência no campo, as fontes revelam um posicionamento crítico. Em um dos artigos analisados, de fevereiro de 2018, José Humberto Belmino Chaves chama atenção para o limite ético diante do crescente aumento da oferta de ninfoplastias no país. “Fazem-se afirmações sem qualquer suporte científico, garantem-se resultados improváveis. Mais, cria-se a necessidade, inventa-se a ‘doença’ ou defeito e oferecem a sua cura mágica. Exploram-se as fraquezas individuais: cirurgias que melhoram a autoestima, a função sexual, que salvam casamentos”.
A antropóloga conclui que a naturalização das cirurgias íntimas no Brasil ocorre dentro de um cenário propício a intervenções, no qual a lógica do aprimoramento de si se impõe, incentivada pelo acesso a diferentes tipos de tecnologias e recursos biomédicos e pelo incentivo às transformações corporais disseminado nas redes sociais. É resultado também de um processo de biomedicalização da sociedade, além de ser um fenômeno no qual o dispositivo de gênero ocupa um lugar central.
“Os discursos favoráveis ao procedimento reforçam a insistência em constante autovigilância por parte das mulheres que deveriam estar atentas aos padrões considerados mais adequados ou “femininos” e efetivar as transformações necessárias para se aproximar desses modelos”, escreve Rohden, chamando atenção para o fato de que esse fenômeno, que envolve disputas entre campos profissionais, precisa ser entendido no contexto da ênfase no aprimoramento de si, via recursos biomédicos, e dos imperativos de gênero.