Fiocruz
Webmail FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

Especial História e Covid-19 | A morte contestada: narrativas negacionistas sobre o número de óbitos na pandemia

13 abr/2023

Ede Cerqueira (COC/Fiocruz)*

 
 

"Fizeram uma ‘apavoração". "A covid não foi isso tudo que falaram" (Marques, 2022). Em outubro de 2022, quando o Brasil já registrava 687.527 óbitos decorrentes da Covid-19, a opinião desse dono de bar em São Paulo, vizinho ao cemitério São Luís, era de que o número de mortos devido à pandemia foi menor do que o divulgado, um tipo de narrativa que foi amplamente compartilhada nas redes sociais por milhares de brasileiros durante a pandemia. Por outro lado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o número de óbitos oficialmente registrados como decorrentes de Covid-19, por volta de 5,4 milhões até maio de 2022, estava subestimado. Para a OMS, a mortalidade por Covid-19 seria quase três vezes maior (Grimley, Cornish e Stylianou, 2022). Ou seja, a discussão sobre os números da pandemia aconteceu tanto no âmbito especializado como em redes sociais entre não especialistas.

No início da pandemia, em 2020, uma enorme quantidade de cifras, rankings, gráficos e tabelas foi apresentada ao público não-especializado e passou a fazer parte da linguagem corrente e das decisões sobre como agir na pandemia, tanto no plano individual como no coletivo. Inicialmente, os gráficos traziam projeções sobre a disseminação do vírus no Brasil, baseadas em dados epidemiológicos da China e da Europa. A mensagem combinada ao gráfico era de que precisávamos “achatar a curva”, ou seja, diminuir o ritmo de contaminação, para preservar os serviços de saúde. Mas, com a aceleração e interiorização da contaminação, surgiram questionamentos sobre quando atingiríamos o topo da curva de disseminação e veríamos a queda na propagação do vírus. Tais questionamentos, por um lado, representavam a preocupação de especialistas e parte da população informada por estes de que os registros oficiais de casos e óbitos estivessem subnotificados, devido à limitação da testagem no país, as dificuldades de compilar os dados e de separar os números relativos aos óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que poderiam estar mascarando a gravidade da pandemia no país. Por outro lado, o questionamento dos números e de nossa real situação foi utilizado por gestores públicos e seus seguidores para negar a própria pandemia e suas consequências como evento histórico e criar um debate público que perdurou durante meses em torno da falsa dicotomia entre preservar vidas ou salvar a economia.

Porém, para além do questionamento dos números, a pandemia revelou-se um terreno fértil para a propagação, além do próprio vírus, de notícias falsas, desinformações, boatos, vídeos descontextualizados etc., com a intenção de fortalecer uma narrativa que diminuísse o impacto e o alcance da doença. Estes seriam exemplos de negacionismos, que procuram influenciar a construção de uma narrativa sobre a pandemia e seu significado em um momento em que isto ainda está em disputa. Esta análise está centrada em um aspecto desses negacionismos, a saber, o questionamento dos números de mortos por covid-19.

Nas últimas décadas temos convivido com a ampliação de formas diversas de negacionismo,[1] sendo os mais comuns o negacionismo científico, que tem o “caráter intencional e articulado para produzir e disseminar desinformações e dúvidas, por meio de estratégias organizadas com o objetivo de contrariar evidências e alegações consensualmente reconhecidas pela comunidade científica” (Kropf, 2022: 422), e o histórico, praticado por uma “fração da opinião pública, restrita a grupos diretamente envolvidos em temas sensíveis, que nega um fato histórico e suas evidências” (Napolitano, 2022: 458).

No Brasil, vivenciamos, durante a pandemia, a sobreposição destas duas formas de negacionismos. Em um momento de medo generalizado entre a população e de insegurança e dúvidas até por parte da ciência, frente a um novo vírus e uma nova patologia, surgiram narrativas que contestaram tanto a capacidade dos cientistas de dimensionar e dar respostas à crise como negaram o próprio fato da existência de uma pandemia. Desde a declaração da Covid-19 como pandemia pela OMS em 11 de março de 2020, inúmeras afirmações da comunidade científica em relação à Covid foram questionadas e colocadas em dúvida, de maneira similar ao que Naomi Oreskes e Erik Conway (2010) apontam como tendo ocorrido em relação a outros temas, como o potencial cancerígeno do fumo e as mudanças climáticas produzidas pela ação do ser humano. Tais narrativas sobre a Covid minimizaram a dimensão da emergência sanitária em seu caráter global, a gravidade e letalidade da doença ou mesmo a caracterizaram como uma grande farsa promovida ou por agências internacionais como a OMS, com apoio de governos locais e da grande imprensa, ou mesmo pelo próprio governo chinês, para alcançar uma dominação mundial.

A negação dos números da pandemia pode ser analisada como uma aproximação entre o negacionismo científico e o histórico, pois ao mesmo tempo em que dados produzidos por instituições de saúde e ciência nacionais e internacionais foram negados ou manipulados em prol de narrativas conspiratórias, a própria história de milhares de brasileiros adoecidos ou vitimados pela doença foi negada, assim como as diversas histórias de enfrentamento à pandemia. Para Camargo (2022), estratégias negacionistas que visam o enfraquecimento da confiança pública nos números constituem uma nova forma de negacionismo, o estatístico.

Tivemos no Brasil exemplos claros do descrédito do governo federal em relação aos dados estatísticos e epidemiológicos. A mudança no critério de publicação do número diário de óbitos, proposta pelo Ministério da Saúde, que contabilizava apenas as mortes ocorridas no mesmo dia da divulgação e excluía aquelas confirmadas posteriormente, causou uma forte crise de confiança, o que levou à mobilização, em 08 de junho de 2020, de grandes grupos de mídia para reunir esses dados junto às secretarias de saúde dos governos estaduais, compilá-los e divulgá-los diariamente (Camargo, 2022).

O questionamento dos números de mortos por parte da população nos permite também fazer uma analogia com um episódio notório do negacionismo histórico: o questionamento do número de prisioneiros judeus mortos durante a Segunda Guerra Mundial, no chamado Holocausto. Um exemplo foi o historiador estadunidense Harry Elmer Barnes, que defendeu que os números estavam errados e que as câmaras de gás de campos de concentração na verdade não serviam para matar os internos; Barnes ainda afirmou que, mesmo que os números de mortos estivessem certos, o que os Aliados haviam feito à Alemanha era igual ou mesmo pior. Vários historiadores de prestígio, como o francês Pierre Vidal-Naquet, criticaram Barnes e outros negacionistas, mostrando como as evidências históricas possibilitam contestar tais narrativas (Dawidowicz, 1992). Embora conscientes da diferença de contexto entre os acontecimentos, consideramos que a analogia nos ajuda a compreender o motivo da disputa em torno do alcance e do significado dos números ser relevante historicamente.

Segundo o psicanalista Sergio Telles, os negacionismos agem frente a situações extremas, como crimes de guerra, genocídios, colaboracionismo e, no nosso caso, as mortes causadas pela pandemia, pois estes “são acontecimentos que suscitam uma vergonha insuportável, evocam fatos que tanto o estado quanto a sociedade preferem esquecer do que ter de lembrar e fazer o trabalho de luto e reparação que se impõe” (Telles, 2021).

Os casos de notícias falsas postadas em várias mídias sociais que foram identificadas, analisadas e desmentidas pelo Projeto Comprova demonstram como os números foram manipulados durante a pandemia para corroborar com afirmações falsas ou enganosas. O intuito, na maioria dos casos, era o de questionar o número de mortes como uma estratégia de negar não somente dados científicos mas a própria pandemia como um fato histórico, ou pelo menos sua amplitude, gravidade e repercussões.

Analisando o primeiro semestre de 2020, quando o número de casos e óbitos começavam a crescer por todo o país, de maneira paralela as narrativas que minimizavam ou buscavam caracterizar a pandemia como farsa ganharam força nas redes sociais. Um exemplo é uma corrente de WhatsApp, que viralizou também no Facebook, entre abril e maio de 2020, e utilizava falsos dados de óbitos por covid-19, supostamente obtidos pelo Portal da Transparência, mantido pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), para negar a pandemia; porém, os números apresentados na mensagem eram incompatíveis com os dados da plataforma citada. A mensagem compartilhada nas redes sociais alegava que os óbitos registrados entre janeiro e abril teriam sido “mais de 4.600” em 2019, enquanto o número no mesmo período de 2020 seria de “cerca de 4.200” (Projeto Comprova, 2022). Até o final de abril foram registrados mais de 6.000 óbitos por covid (Johns Hopkins University, 2022).

No mesmo período, outra publicação, postada no Facebook e compartilhada no Instagram, com muitas visualizações e compartilhamentos, mostrava a foto de um caixão aberto com um travesseiro dentro como prova de que caixões vazios estavam sendo enterrados no estado do Amazonas. Entretanto, como foi comprovado, a foto era de 2017, referente a uma reportagem sobre golpe de seguro de vida, em outro estado. Além da foto, a publicação mostrava vários caixões em uma vala em um cemitério em Manaus, indicando o golpe. O Amazonas, em abril de 2020, sofreu com um colapso dos sistemas de saúde e funerário, registrando durante algumas semanas a maior taxa de mortalidade pelo coronavírus no país. Nesse mesmo período, foi compartilhada uma publicação que dizia que, antes da visita do então ministro da Saúde, Nelson Teich, ao Amazonas, o governo local registrava 140 óbitos diários, mas, com a chegada de Teich, o número havia caído para 46, sendo apenas dois por covid-19, sugerindo que os números, que estariam sendo inflados, teriam sido corrigidos com a presença do ministro; isto em um momento em que o Amazonas, e o país, enfrentavam um aumento no número de óbitos por Covid-19 (Projeto Comprova, 2022).

Os dados sobre as mortes de covid-19 tornaram-se alvo de desinformação, sendo empregados, várias vezes, de maneira distorcida como respaldo científico para opiniões pessoais. Em um vídeo publicado no YouTube era afirmado que o número de mortes por covid-19 era uma “fraude”, uma vez que, segundo alegava o autor do conteúdo, o registro de mortes por pneumonia estava sendo somado aos casos de covid-19. “Estamos na casa de 22, 23 mil pessoas falecidas pelo covid-19, mas se forem descartadas as pessoas que não testaram, a gente não chega nem a 5 mil”. Nesse período, o Brasil registrava 29.314 mortes confirmadas. Até junho de 2020, também tiveram grande visibilidade e repercussão as postagens nas redes sociais que acusavam governos estaduais e municipais de inflar o número de mortes para receber mais verbas ou para prejudicar o governo federal, inclusive alegando que atestados estariam sendo fraudados, pois óbitos ocasionados por motivos diversos estariam sendo registrados como Covid-19. Tais informações compartilhadas, além de negar os números da pandemia, demonstravam desconhecimento de que a definição dos valores destinados pelo Ministério da Saúde para ações de enfrentamento à pandemia não tomava como base o número de pacientes infectados ou mortos por estado ou município (Projeto Comprova, 2022). Segundo o levantamento da Universidade Johns Hopkins, no final de junho de 2020, o Brasil era o segundo em número de mortes no mundo, com 59.792 óbitos (Johns Hopkins University, 2022).

Durante a pandemia vimos colegas historiadores produzindo valiosas análises comparativas entre esta e outras pandemias e epidemias anteriores, assim como estudos de determinados recortes da conjuntura atual. Sobretudo, a pandemia fez com que nós, como historiadores, nos juntássemos aos colegas que já trabalhavam com histórias do tempo presente, frente à necessidade de produzirmos registros e análises que combatam a negação do fato histórico da pandemia e de seus impactos e repercussões. As histórias que darão conta de aspectos diversos da pandemia já começam a serem escritas, em um contexto de narrativas em disputa e “combates pela história”. A negação ou diminuição dos mortos por covid deve ser vista como fazendo parte destas disputas, procurando condicionar as narrativas futuras por motivos políticos ou ideológicos.

Ao mesmo tempo, é importante destacar que vários estudos sobre ciências têm desmistificado a ideia de que os números são expressões objetivas de uma “verdade” pura e mostrado como a coleta e interpretação de dados numéricos sofre influência de fatores sociais e culturais (Bloor, 2009). Afinal, “ao transitar de laboratórios especializados para centros de compilação e cálculo e daí a jornais e redes sociais”, até serem aplicados em ações públicas e apropriados pela linguagem corrente, os “números se modificam, mudam de sentido, se prestam a usos eruditos e leigos, teóricos e práticos, são trabalhados e retrabalhados em uma cadeia de sucessivas traduções e interpretações” (Camargo, Motta e Mourão, 2022). Assim, discussões a respeito de números e seu significado não são uma coisa nova, e, portanto, mais importante do que definir quais números estão “corretos” ou não é analisar essa cadeia de apropriações e deslocamentos em relação a eles.

Ede Cerqueira é pesquisadora em estágio de pós-doutoramento pelo Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Doutora em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz (2019). Mestre em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz (2014). Possui especialização em História e Cultura Afro-Brasileira pela Fundação Visconde de Cairu (2004), e graduação em Licenciatura em História pela Universidade do Estado da Bahia (2003).

[1] Entendemos negacionismo como sendo “realizações coletivas em que práticas de negação transformam-se em formas completamente diferentes de ver o mundo, indo além da recusa da verdade e produzindo outra verdade, que se pretende superior” (Ratton, 2022: 414).
 

Referências:

BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. 2ª. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio. Negacionismo estatístico. In: SZWAKO, J.; RATTON, J. L. Dicionário dos negacionismos no Brasil. Recife, PE: Cepe Editora, 2022.

CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio; MOTTA, Eugênia de Souza Mello Guimarães; MOURÃO, Victor Luiz Alves. Números Emergentes: Temporalidade, Métrica e Estética da Pandemia de Covid-19. Mediações, Londrina, v. 26, n. 2, mai.-ago. 2021, pp. 311-332.

DAWIDOWICZ, Lucy. “Lies About the Holocaust”. In KOZODOY, Neal (Ed.). What Is The Use of Jewish History?: Essays. New York: Schocken Books, 1992, pp. 84–100.

GRIMLEY, Naomi; CORNISH, Jack; STYLIANOU, Nassos. Número real de mortes por covid no mundo pode ter chegado a 15 milhões, diz OMS. BBC News, 05/05/2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61332581. Acesso em: 02/11/2022.

JOHNS HOPKINS UNIVERSITY. Brazil: Overview. Coronavirus Resource Center. 2022. Disponível em: https://coronavirus.jhu.edu/region/brazil. Acesso em: 02/11/2022.

KROPF, Simone Petraglia. Negacionismo científico. In: SZWAKO, J.; RATTON, J. L. Dicionário dos negacionismos no Brasil. Recife, PE: Cepe Editora, 2022.

MARQUES, Júlia. “Memória do povo é curta”: no cemitério da covid, há dor e negacionismo. UOL Cotidiano, 20/10/2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ cotidiano/ultimas-noticias/2022/10/20/cemiterio-do-codigo-de-barras-se-divide-entre-dor-da-covid-e-negacionismo.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 02/11/2022.

NAPOLITANO, Marcos. Negacionismo histórico. In: SZWAKO, J.; RATTON, J. L. Dicionário dos negacionismos no Brasil. Recife, PE: Cepe Editora, 2022.

ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik M. Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming. New York: Bloomsbury Press, 2010.

PROJETO COMPROVA. 2022. Disponível em https://projetocomprova.com.br/. Acesso em: 02/11/2022.

RATTON, J. L. Negacionismo. In: SZWAKO, J.; RATTON, J. L. Dicionário dos negacionismos no Brasil. Recife, PE: Cepe Editora, 2022.

TELLES, Sergio. Aspectos do negacionismo no mal-estar de hoje. Psychiatry on-line Brazil, v. 26, n. 6, jun. 2021. Disponível em: https://www.polbr.med.br/2021/06/01/ aspectos-do-negacionismo-no-mal-estar-de-hoje/. Acesso em: 02/11/2022