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Oracy Nogueira, o homem que desvendou o racismo brasileiro

06 nov/2020

Arte: Silmara Mansur / Imagens: Acervo COC.   

Por Karine Rodrigues 

Se hoje em dia médicos negros ainda são raros no Brasil, imagine na década de 1920. Aos olhos do menino Oracy, a singularidade do doutor que surgia para consultas, visitas ou jogos de baralho em sua casa em Cunha (SP) não passou despercebida. Com os anos, sua curiosidade aumentou e motivou investigações pioneiras e contribuições originais ao estudo das relações raciais. Essa trajetória está materializada em um acervo fundamental para a compreensão da dinâmica do racismo no país, sob a guarda do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Este era um argumento de Oracy Nogueira: se compreendemos como o racismo atua, é mais fácil encontrar as formas mais adequadas e eficazes para o seu combate

“Desde que me conheço por gente, sempre me intrigou o fato de ser esse personagem o único de sua cor, no círculo dominante de que participava, enquanto, ao contrário, entre os pobres, e, em geral, entre os que tinham que exercer alguma atividade física para sobreviver, eram raros os brancos e tão mais raros quanto mais evidente a pobreza”, recordou o sociólogo Oracy Nogueira (1917-1996), na época já um senhor aposentado, referindo-se ao médico baiano que frequentava sua casa.

O texto faz parte da introdução de Negro político, político negro: a vida do Doutor Alfredo Casemiro da Rocha, parlamentar da República Velha, que ele escreveu em seus últimos anos de vida. Lançado em 1992, pela Edusp, o livro associa reflexão sociológica e relato biográfico para mostrar o impacto da situação racial na vida do protagonista negro, que se destacou na política, chegando a senador da República.

Embora tenha levado quase uma vida para escrever uma obra sobre o personagem que chamava sua atenção desde a infância, a trajetória acadêmica de Oracy revela que ele esteve bastante ocupado com o tema desde quando, adolescente, se deu conta do seu interesse pelas pessoas de cor e seus problemas.

Filho de professores primários, branco, nascido em Cunha, no interior de São Paulo, em 17 de novembro de 1917, o sociólogo produziu análises fundamentais para a compreensão do estigma da tuberculose pulmonar e do racismo brasileiro e foi um dos precursores da análise sociológica elaborada na década de 1950 sobre a dinâmica insidiosa do preconceito racial  no país, então propalado aos quatro ventos como exemplo de democracia racial.

Em Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil, artigo seminal, ele desenvolveu uma análise comparativa sobre os padrões de discriminação racial no Brasil e nos Estados Unidos. O estudo foi apresentado no Congresso Internacional de Americanistas, em 1954, em São Paulo.

O artigo reúne 12 enunciados comparativos sobre os dois tipos de preconceito esboçados em relatório anterior sobre as relações raciais em Itapetininga (SP), produzido para um ciclo de estudos patrocinados pela Unesco, no Brasil, do qual participaram Florestan Fernandes, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Virginia Leone Bicudo, Roger Bastide, entre outros.

A aparência e a descendência

O preconceito racial de marca, próprio do Brasil, é definido no critério da aparência, na cor da pele. Nele, é possível contrabalançar a "desvantagem" da cor, digamos assim, por algum atributo associado a ela, como fama, instrução, ocupação ou riqueza. São variáveis que atuam promovendo uma espécie de apagamento da cor.

Já o preconceito de origem, característico dos Estados Unidos, reside na descendência. Ser negro ou não é inegociável, independentemente do contexto ou condições sociais. Portanto, uma mulher branca de cabelos louros e olhos azuis pode sofrer preconceito se, originalmente, descender de negros.

Diz Oracy em seu artigo: "Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as conseqüências do preconceito, diz-se que é de origem".

“Esse artigo é uma obra-prima. Um clássico”, descreve o sociólogo Marcos Chor Maio, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). “Ele criou um modelo, uma teoria”, acrescenta, destacando a enorme capacidade de concisão do pesquisador, que reuniu em um quadro de referência os principais pontos do preconceito racial nos dois países.

Oracy Nogueira desenvolveu estudos etnográficos. Há um arcabouço teórico-metodológico que é próprio à antropologia. Essa sensibilidade está presente, por exemplo, em seu artigo sobre preconceito racial de marca e de origem

Segundo Chor, que pesquisou sobre relações raciais patrocinadas pela Unesco no início dos anos 1950  em seu doutorado, a sociologia de Oracy tem uma marca muito forte da antropologia. Nela estão presentes a observação participante, a entrevista, o questionário, o dar a voz, bem na linha da tradição da Escola de Chicago. “Ele desenvolve estudos etnográficos. Há um arcabouço teórico-metodológico que é próprio à antropologia. Essa sensibilidade está presente, por exemplo, no artigo sobre preconceito racial de marca e de origem”, diz o pesquisador, autor do artigo O racismo no microscópio: Oracy Nogueira e o Projeto Unesco.

Professora titular e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti recorda que a leitura do artigo foi uma revelação. Ela considera o trabalho “originalíssimo”, pois atesta que não há ninguém falando nada parecido sobre relações raciais naqueles anos 1950, no Brasil.

Já o antropólogo Roberto DaMatta destaca que o artigo representou um prenúncio de uma análise que mais tarde seria conhecida como estrutural.

“Contém um elemento fundamental no pensamento sociológico moderno ou pós-moderno, sem o qual não há possibilidade de se discernir coisa nenhuma, que é a comparação. Ele é fundamentalmente comparativo”, diz, em sua apresentação em abril de 2014, na Fiocruz, por ocasião do Encontro às Quintas intitulado “Estigma de cor e de doença, sociologia de Oracy Nogueira”, que marcou a chegada do arquivo Oracy Nogueira à COC. Um texto de DaMatta, A Fábula das Três Raças, ou racismo à brasileira, indicou já nos anos 1980 o caráter precursor das formulações de Oracy.

Acervo sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz

Se hoje o acervo de Oracy Nogueira está sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz, Chor é um personagem fundamental no processo que resultou na transferência para a Fiocruz do Fundo Oracy Nogueira, em 2013.

Por ser um estudioso das pesquisas sobre relações raciais, em seu doutoramento, e conhecedor da obra de Maria Laura sobre Oracy, ele, que estivera com o sociólogo em setembro de 1995, estimulou Maria Laura a visitar Oracy na capital paulista, o que ocorreu em novembro daquele mesmo ano.

Oracy realizara um estudo de comunidade no livro sobre Itapetininga, obra histórica-sociológica que levantou mais de 200 anos de história. Encontrou, em Chor, “um interlocutor essencial”. Embora fragilizado por um derrame, a conversa rendeu.

Havia um projeto nítido de hegemonia de uma maneira de pensar o Brasil que fez parte desse contexto e implicou uma estigmatização de muitas vertentes de pensamento

“Foi muito tocante porque ele estava bem idoso. Ele estava perfeitamente lúcido, acompanhado da esposa dele, Lizete Toledo Ribeiro”, recorda Maria Laura. Combinaram um próximo encontro. Oracy faleceu pouco tempo depois, em fevereiro do ano seguinte.

Após alguns meses, Maria Laura procurou José Luiz Nogueira, filho do sociólogo, em busca de informações sobre duas biografias dos sociólogos Donald Pierson (1900-1995), norte-americano, e Emilio Willems (1905-1997), alemão, que teriam sido escritas por Oracy para a Coleção de Grandes Cientistas, da editora Ática, coordenada pelo sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995).

José Luiz abriu as portas da casa da rua Apinajés, 756. Lá, no escritório de Oracy, Maria Laura encontrou um material de valor inestimável para a história da sociologia e da antropologia. Além dos originais, guardados em caixas tomadas pela umidade e devidamente identificadas, encontrou outras preciosidades, como a documentação relativa ao doutoramento de Oracy Nogueira na Universidade de Chicago, realizado sob orientação de Everet Hughes, mas nunca concluído, e a correspondência com o sociológico norte-americano Donald Pierson, de quem foi aluno e assistente na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.

“Há muito o lugar não era frequentado. Estava com infiltrações. Muita coisa se perdeu porque ele adoeceu e não ia mais ao escritório. Estantes inteiras mofadas, molhadas, sabe?”, conta Maria Laura, que conseguiu apoio da direção do IFCS para transportar e higienizar o material e, em 2007, verba da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) para a realização do inventário e constituição do Fundo Oracy Nogueira. Apesar do prazer de receber pesquisadores interessados na obra do sociólogo em sua sala, estava segura de que o valioso acervo exigia melhores condições de preservação. Ela intermediou a doação do acervo pela família de Oracy para a Casa de Oswaldo Cruz.

O Fundo Oracy Nogueira, que reúne documentos iconográficos, além de rico material textual, permite compreender melhor a trajetória do sociólogo, em sua passagem por instituições relevantes da história das ciências sociais, como a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, os Departamentos de Sociologia e Antropologia da Universidade de Chicago, Universidade de São Paulo (USP) e Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, no Rio.

No início de sua trajetória, no Bacharelado realizado na Escola Livre de Sociologia e Política, sob orientação de Pierson, Oracy realizara um trabalho intitulado Atitude desfavorável de alguns anunciantes de São Paulo em relação aos empregados de cor. Quis entender o que estava por trás dos anúncios de procura de empregados, nos quais a cor era citada como critério de exclusão ou preterição de candidatos. O estudo foi publicado na revista Sociologia.

Oracy integrou a primeira turma de mestrado da instituição. Uma de suas colegas era socióloga e psicanalista negra Virginia Leone Bicudo (1910-2003). Nas pesquisas que realizaram durante o curso, ambos chegaram a conclusões semelhantes, que apontavam para fragilidade da anunciada harmonia racial brasileira. Chor organizou a obra Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, que traz a dissertação defendida pela pesquisadora em 1945. Em entrevista publicada no Cadernos Pagu, o pesquisador discorre sobre as relações raciais e a psicanálise na trajetória de Virgínia.

Tuberculose, estigma e racismo

Em 1945, Oracy defende a dissertação sobre o estigma da tuberculose, uma pesquisa precursora sobre a doença como fato sociológico, que inclui pesquisa de campo em sanatório localizado em Campos do Jordão (SP). O estudo partiu de sua vivência como paciente em tratamento contra a tuberculose para discutir o tema da hospitalização, da exclusão e do preconceito. O trabalho foi publicado na revista Sociologia em 1949 e, no ano seguinte, em livro, com o título Vozes de Campos do Jordão: experiências sociais e psíquicas do tuberculoso pulmonar no estado de São Paulo. A obra ganhou reedição da Editora Fiocruz em 2009.Organizado por Maria Laura, a publicação se beneficiou já da documentação existente no Fundo Oracy Nogueira.

Em depoimento a Mariza Corrêa, concedido em 1984 e publicado, no ano seguinte, na Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Oracy comentou: “Os dois anos de isolamento por motivo de doença a que fui forçado e a impressão de estigma que me ficou como sequela contribuíram para aumentar minha empatia em relação às pessoas de cor que, embora por outra razão, eu percebia estarem também sujeitas a isolamento e estigmatização”.

Oracy ganhou bolsa para fazer doutorado na Universidade de Chicago, experiência que se revelou essencial para a escrita do artigo sobre preconceito racial no Brasil e nos Estados Unidos. Naquele período, 1945 a 1947, o aprendizado sobre relações raciais se dava dentro da universidade, com as disciplinas em antropologia e sociologia, e fora, com uma intensa participação na vida comunidade negra local e de associações civis antirracistas. Na época, os Estados Unidos ainda estavam sob o julgo da segregação racial legal.

De volta ao Brasil para concluir a pesquisa de campo, acabou impedido de retornar aos Estados Unidos para a sua defesa de tese, em 1952. Em plena Guerra Fria e Macartismo, não era de surpreender que o visto a um militante do então Partido Comunista do Brasil (PCB) tenha sido negado.

Extrema modéstia 

Se Oracy disse claramente que o Brasil não vivia sob uma democracia racial e detalhou, de forma pioneira, a dinâmica da discriminação racial, frisando que a desigualdade racial não pode ser explicada só por variáveis econômicas, por que o nome de Oracy Nogueira não aparece nas narrativas referentes à história das Ciências Sociais com realce, na companhia dos mais populares Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes e Roger Bastide?

Segundo Chor e Maria Laura, vários fatores teriam contribuído para que o pesquisador tenha ficado nos bastidores, entre eles, o declínio da Escola Livre de Sociologia e Política e a extrema modéstia e timidez do sociólogo, num cenário onde se destacavam intelectuais expansivos.

Cada sociedade tem uma história própria e uma dinâmica cultural muito diferenciada. O racismo não pode ser tratado da mesma maneira em todo lugar do mundo.

A instituição, fundamental na formação da sociologia e antropologia brasileira, entrou numa crise grave nos anos 60, período de grande clivagem política e intelectual, diz Maria Laura. A saída de Pierson, em 1954, deixou Oracy sem chão.

Além disso, acrescenta Chor, com o declínio da Escola Livre,  a Universidade de São Paulo (USP) seria a opção mais provável para Oracy. Mas lá já estavam Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, que realizavam suas pesquisas numa linha bem diversa da seguida pelo sociólogo nascido em Cunha.

E qual seria o ponto de divergência? Enquanto Oracy acreditava que modernidade e racismo não eram termos excludentes, para Florestan, por exemplo, a partir da emergência de uma sociedade aberta e democrática, a cor seria gradativamente desativada, observa Chor, no artigo Oracy Nogueira, Florestan Fernandes e o Projeto Unesco de Relações Raciais em São Paulo, publicada na Latin American Perspectives.



 

Em seu estudo sobre as relações sociais em Itapetininga, republicado pela Edusp em 1998 e organizado por Maria Laura, ele mostrou como, em 1940, em um mesmo período, imigrantes já haviam conseguido ascender social e economicamente, e os negros, não.

“Esse movimento dessa sociologia que se constrói ali no Departamento de Sociologia da USP, num certo momento, coincide com uma radicalização política do país.  Acho que essas pessoas foram na época profundamente autoritárias com relação a existência de uma maneira correta interpretar a sociedade brasileira. Havia um projeto nítido de hegemonia de uma maneira de pensar o Brasil que fez parte desse contexto e implicou uma estigmatização de muitas vertentes de pensamento”, disse Maria Laura no evento da Fiocruz.

Anos depois de deixar a Escola Livre de Sociologia e Política, Oracy é absorvido pelo Departamento de Sociologia da USP, mas como especialista em métodos e técnicas, conhecimento que certamente dominava. “Mas seu conhecimento e contribuição originalíssima às ciências sociais brasileira iam muito além disso. Ele não conseguiu muito reconhecimento dos pares em vida”, diz Maria Laura.

O melhor trabalho do Projeto Unesco

No artigo O Projeto Unesco: ciências sociais e o "credo racial brasileiro", publicado na Revista USP em 2000, Chor conta um episódio que revela como o sociólogo parecia fora do lugar. Convidado a participar das pesquisas patrocinadas pela agência internacional, viu seu estudo de comunidade sobre os padrões de relações raciais em Itapetininga, no interior de são Paulo, entrar como mero apêndice da pesquisa da Unesco em São Paulo. “Para mim, era o melhor trabalho do projeto”, diz o pesquisador da Casa, considerando que Oracy poderia ter tido mais visibilidade. 

Oracy tinha um modo próprio de entendimento das relações sociais em que o preconceito de raça não se reduz ao preconceito de classe

Apesar de não ter recebido o merecido reconhecimento em vida, Chor e Maria Laura avaliam que há um interesse crescente pela obra do sociólogo paulista, que em 1961 desligou-se formalmente da Escola Livre e atuou em diversas áreas de instituições até entrar, por concurso, como titular de sociologia, na Faculdade de Economia e Administração. Aposentou-se em 1983, mas seguiu trabalhando. Antes de morrer, em fevereiro de 1996, escreveu “Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais” (1985) e “Negro político, político negro (1992)”.

“Precisamos ter uma perspectiva comparativa porque o mundo está globalizado, mas cada país, cada sociedade, tem uma história própria e uma dinâmica cultural muito diferenciada. O racismo não pode ser tratado da mesma maneira em todo lugar do mundo. Isso precisa ser compreendido. Senão, é mais difícil combatê-lo. Era um argumento do Oracy: se compreendemos como o racismo atua, é mais fácil conscientizar as pessoas e encontrar as formas mais adequadas e eficazes para o seu combate”, diz Maria Laura. Alguém duvida?