A poliomielite começou a ser erradicada em Cuba com a campanha de vacinação realizada em 1962, ano em que o país imunizou toda a população com menos de 15 anos, depois de cinco epidemias ocorridas entre 1932 e 1958. Ao abordar o tema no seminário Pólio Nunca Mais: 21 anos de Erradicação da Poliomielite no Brasil, organizado pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e por Bio-Manguinhos, o epidemiologista Enrique Beldarráin Chaple, pesquisador titular de história da medicina na Universidade Médica de Havana, declarou que essa foi “uma vitória histórica”, alcançada graças ao atendimento integral e gratuito implantado na ilha.
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“Isso permitiu o desenvolvimento de uma variedade de programas no âmbito da saúde”, acrescentou. Marcada pelo êxito em sua primeira versão, a vacinação continuou anualmente “para garantir a consistência da alta taxa de proteção”, explicou Chaple. Para o médico, a prevenção e a promoção da saúde foram pontos de destaque na campanha oficial. Segundo ele, a repercussão social da doença, que atingia grande número de crianças, ajudou o sucesso da campanha.
A primeira notificação de pólio em Cuba foi feita pelo médico Francisco Cabrera Saavedra em 1898, quando pacientes apresentaram sintomas da doença na cidade de Caibarién, no fim da colonização espanhola, lembrou o pesquisador. Naquele ano, médicos norte-americanos também notificaram casos na ilha de Pinos. No entanto, apenas em 1906 houve registro de um pequeno surto da doença no povoado de Santa Fé.
Suspeita-se que a pólio tenha sido introduzida no país por colonos, que teriam levado a enfermidade durante o período de forte relação comercial entre Cuba e os Estados Unidos, na passagem do século 19 para o 20. A época foi marcada por intenso movimento de americanos em Pinos fundando povoados e importando mantimentos. Entre 1899 e 1909, os Estados Unidos promoveram duas intervenções militares no país caribenho, ocupando principalmente as cidades de Havana e Santiago de Cuba. Esse fluxo migratório pode ter facilitado a entrada da doença no país, frisou Enrique Chaple.
As epidemias de poliomielite em Cuba
Depois dos três casos confirmados em 1909 na região central, Cuba só voltaria a notificar infectados por pólio em 1932. A partir desse ano até 1958, houve cinco epidemias. Em 1934, foram 434 casos, um dos maiores surtos; em 1942, notificaram-se mais 494 e, um ano antes da grande campanha contra a pólio em 1962, o governo contabilizou 342 casos da doença.
De acordo com Enrique Chaple, de 1962, ano da primeira campanha nacional de vacinação, a 1994, quando houve a certificação internacional de eliminação da doença, foram aplicadas no país mais de 62,5 milhões de doses da vacina Sabin. Isso garantiu a imunização de toda a população menor de 49 anos, resultado correspondente a mais de 90 por cento da cobertura nacional no período. A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) considerou a estratégia cubana pioneira, pois conseguiu a “conjugação de ciência, vontade política e participação popular”, disse o pesquisador.
Argentina, Chile e Uruguai: o caráter transnacional da pólio
Em sua conferência Para uma visão global da poliomielite na Argentina, Chile e Uruguai, Adriana Alvarez, professora associada do programa de mestrado e doutorado em história da Universidade Nacional de Mar del Plata (Argentina), destacou o caráter transnacional da doença e as similaridades e diferenças em cada país. Nas décadas de 1930 e 1940, não havia preocupação quanto à pólio nesses países, ressaltou. Embora o governo chileno tenha mostrado avanço na prevenção à doença em relação aos vizinhos, as barreiras impostas não impediram a proliferação da pólio em seu território.
Para explicar as diferenças, Adriana Alvarez apresentou uma série de dados sobre a incidência da doença na Argentina, no Chile e no Uruguai entre 1945 e 1949, ano em que os argentinos registraram 6,6 notificações por grupo de 100 mil habitantes, seguidos pelos chilenos, com 5,3 notificações, e pelos uruguaios, com 0,9. No período, a taxa média argentina ficou em 3,93; a uruguaia, 3,5, e a chilena, 2,16. De 1950 a 1954, houve aumento nos registros. A taxa média na Argentina, no Chile e no Uruguai alcançou 6,12, 7,7 e 2,7, respectivamente, por grupo de 100 mil habitantes.
Adriana Alvarez disse que o governo chileno considerava a pólio controlada. Porém, em 1952, novos casos foram notificados gerando pânico entre os chilenos. Segundo ela, em 1957, a vacina Salk foi adotada, não como programa, mas como um conjunto de esforços isolados e esporádicos. A Sabin só viria a ser utilizada no Chile em 1961.
O combate à doença enfrentou dificuldades também em território argentino. “O clima político instável na Argentina prejudicou os esforços para controlar a pólio”, destacou Adriana. Em setembro de 1955, a imprensa local denunciou casos da enfermidade, que afetava 6,5 mil argentinos. No ano seguinte, eles usariam a vacina Salk. A imunização com a Sabin só seria feita em 1964.
No Uruguai, a poliomielite teve incidência importante em 1955 e 1956. Dois anos depois 935 mil uruguaios seriam vacinados em Montevidéu. Mas a campanha foi fragmentada. Problemas como a mudança na política e as reformas do Estado interventor dificultaram o controle da pólio, afirmou a pesquisadora. Com a adoção pelo país da vacina Salk, o problema foi a fragmentação, acrescentou Adriana. Em 1962, o governo promoveu a primeira campanha aplicando as doses da vacina Sabin. Nos dois anos seguintes, a imunização atingiria 80 por cento da população uruguaia com menos de 18 anos.
As Campanhas de controle e erradicação da poliomielite no Brasil
Organizadora do seminário, a historiadora Dilene Raimundo do Nascimento destacou a precariedade dos registros sobre epidemias de pólio no Brasil na primeira metade do século 20. O tema não era discutido, segundo a pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz. Desta forma, a doença não era uma questão de saúde pública.
A partir da década de 1950, ocorreu uma mudança de comportamento em relação à pólio no Brasil, principalmente com a descoberta das vacinas Salk e Sabin nos Estados Unidos. Também foi um período marcado pela adoção de técnicas laboratoriais para diagnóstico da doença e políticas de vigilância epidemiológica, com estratégia de vacinação, ressaltou Dilene. Em 1953, o Rio de Janeiro sofreu a maior epidemia – até este período – já registrada no país: a notificação de 450 casos de pólio com 27 mortes causadas pela doença, segundo a Secretaria de Saúde e Assistência da Prefeitura. Até então, havia a negação de uma epidemia na cidade, envolvendo as autoridades sanitárias e divulgada pela imprensa.
A vacina Salk foi adotada no Brasil em 1955 por alguns pediatras e em vacinações de amplitude reduzida, feitas por secretarias estaduais e municipais de Saúde, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Apenas em 1960, a Sabin chegou ao país, trazendo também o debate em torno da questão. Discutia-se qual das vacinas deveria ser adotada em uma campanha. Isso também era motivado pelo sucesso da Sabin na União Soviética.
Em 1957, os soviéticos promoveram a vacinação de cerca de 15 milhões de pessoas em um ano, sem registrar qualquer evento contrário e com efetividade. Três anos depois, eles vacinaram com a Sabin 100 milhões de pessoas no país e em outras nações do Leste europeu.
A discussão no Brasil prosseguiu ocupando fóruns médicos, principalmente a Sociedade Brasileira de Pediatria e a Sociedade Brasileira de Higiene. Na época, a comissão nomeada pelo então ministro Edward Catete Pinheiro se posicionou favoravelmente pela vacina Sabin, em substituição à Salk. A Associação Médica Americana (AMA) também aconselhava o uso da vacina Sabin, argumentando que a outra não seria capaz de erradicar a pólio.
O Ministério da Saúde, finalmente, decidiu adotar oficialmente a vacina Sabin. Em 16 de julho de 1961 houve a primeira experiência de vacinação em massa na cidade de Santo André, em São Paulo, com a expectativa de vacinação de 25 mil crianças dos municípios de Santo André, São Bernardo e São Caetano. Segundo Dilene, não há informação se a campanha alcançou a meta.
Em 1971, os repetidos surtos da doença em pontos diferentes do território nacional levaram o Ministério da Saúde a instituir o Plano Nacional de Controle da Poliomielite, inédita tentativa organizada de conter a doença no país. “A estratégia de campanha foi abandonada em 1974”, afirmou a historiadora, acrescentando que isso aconteceu porque se priorizou a vacinação de rotina pela rede básica de saúde.
Ao assumir o ministério, Paulo de Almeida Machado cercou-se de técnicos com influência da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, que defendiam a atuação do centro de saúde, as ações de rotina e a educação sanitária.
Sete anos depois de 53 mil casos de pólio terem sido notificados no país, o Brasil adotou, em 1980, o Dia Nacional de Vacinação. A estratégia básica era a vacinação maciça de crianças de zero a cinco anos, duas vezes por ano. Mesmo encontrando muita resistência, a proposta obteve êxito, afirmou Dilene, que citou declaração do então secretário-geral do Ministério da Saúde, Mozart Lima: “O Dia de Vacinação foi um movimento de massa no país, porque nós vacinamos vinte milhões de crianças. As demandas, as filas enormes, a população acorreu em massa, foi uma festa da sociedade”.
O processo de erradicação da doença começou a ser traçado em 1985. Os países membros do Conselho Diretivo da Organização Pan-Americana de Saúde se comprometeram a alcançar a meta estabelecida pela entidade de interromper a transmissão do vírus selvagem da pólio ns América até 1990. Além de contar com os governos dos países do continente, o plano teve a participação de várias instituições internacionais: Opas, Unicef, Bid (Banco Interamericano de Desenvolvimento), Usaid (Agência Americana de Desenvolvimento) e o Rotary Internacional.
“As campanhas contra a pólio estabeleceram uma cultura de vacinação nas populações das Américas”, ressaltou Dilene. Para a historiadora, o êxito da erradicação da doença, assim como ocorreu com a varíola, ratificou a credibilidade do uso da vacina. “A estratégia do Dia Nacional de Vacinação foi uma política efetiva de enfrentamento da poliomielite no Brasil”, concluiu a pesquisadora da COC.