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Saúde Internacional e as origens da OMS

09 nov/2011

O Encontro às Quintas do dia seis de outubro contou com a presença do historiador peruano Marcos Cueto, pesquisador visitante da Casa de Oswaldo Cruz. Sua palestra tratou da formação da mais importante agência multilateral de saúde, a Organização Mundial de Saúde (OMS), analisando o seu processo de legitimação.

 

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Marcos Cueto e suas publicações expostas na mesa do Encontro às Quintas. Foto: Roberto Jesus

 

Formalmente fundada em 1948 e vinculada à recém-criada Organização das Nações Unidas, explicou Marcos Cueto, o processo de formação da agência começou ao fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, ainda quando os EUA e a União Soviética lutavam juntos para derrotar os nazistas, e alcançou seu objetivo já na Guerra Fria, rivalidade que começou em 1947. Cueto destacou que a “OMS foi capaz de legitimar-se neste ambiente de mudança e deixar um legado até hoje importante para a saúde pública e a medicina”.

 

Ao expor os antecedentes da OMS, Cueto disse que “os vencedores da Segunda Guerra, chamados de aliados, decidiram criar, em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU), para garantir a sua hegemonia e evitar novos conflitos internacionais, bem como uma rede composta por agências especializadas e multilaterais, diferenciando-se das instituições bilaterais ou filantrópicos”.

 

Anteriormente, havia uma seção de Higiene da Liga das Nações (LNHO – sigla em Inglês), que a partir de Genebra trabalhou em várias partes do mundo. Além disso, nas Américas existia, desde 1902, a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). Segundo Cueto, houve tensões entre elas pela duplicação inevitável de trabalho.

 

O historiador afirmou que “a origem da OMS está ligada ao trabalho dos aliados para prestar socorro às populações civis encontradas nos territórios europeus recuperados às potências do Eixo (Alemanha, Japão e Itália)”. Este trabalho era realizado por meio da Administração das Nações Unidas para Auxílio e Reabilitação (UNRRA, na sigla em inglês), agência criada em 1943. Logo após a derrota dos nazistas em Berlim, em maio 1945, o trabalho da UNRRA cresceu, pois mais de seis milhões de europeus estavam desterrados, o que significava um enorme contingente de pessoas sem comida, abrigo ou proteção contra a ameaça de epidemias.

 

Entre os membros da UNRRA, Cueto salientou o chinês Sze e o brasileiro Paula Souza, que participaram da Conferência de São Francisco, realizada em 1945 e que reuniu 50 países aliados para criar as Nações Unidas. Conseguiu-se a inclusão da “saúde” na Constituição das Nações Unidas e a aprovação da proposta para formar uma nova agência especializada multilateral. Houve apoio dos países mais poderosos do pós-guerra: Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética.

 

De acordo com o relato do historiador, em fevereiro de 1946 foram convocados 16 médicos reconhecidos internacionalmente para formar o chamado Comitê Técnico de Preparação (TPC por sua sigla em Inglês), com o papel de dar início à implementação de uma agência de saúde “internacional”, “global” ou “das Nações Unidas” (o termo a ser utilizado ainda não estava definido). Esses médicos eram conhecidos por sua experiência e não como representantes de seus países, apesar de haver algum equilíbrio regional: oito eram da Europa, cinco das Américas e três da Ásia.

 

Cueto disse que a primeira reunião do TPC foi realizada em março de 1946 em Paris para estabelecer seus princípios básicos, entre eles estava a criação de uma instituição independente de decisões políticas e autônomas de outros órgãos, para fortalecer os laços entre as descobertas médicas e as necessidades de saúde, e para incluir o maior número possível de países, independentemente da sua orientação política. “No entanto, aqueles que queriam uma organização separada da ONU apelaram para a experiência ruim da LNHO por ser muito identificada com uma agência internacional, sem autoridade e questionada por razões políticas”.

 

A medicina social atual nasceu na Europa como uma reação ao reducionismo que tinha gerado a ênfase exagerada na bacteriologia e na descoberta dos micróbios que levaram alguns a pensar que os fatores de saúde e doença eram apenas biológica, conforme disse Cueto. “O fundador da Associação de Medicina Socialda Bélgica, Rene Areia, enfatizou a importância do social, político e cultural na origem e persistência de doenças epidêmicas”. A medicina social propunha uma visão holística da saúde pública e da prática médica que lutava contra as causas reais de muitas doenças: pobreza, falta de educação, indiferença política e preconceito, afirmou o palestrante do Encontro às Quintas.

 

Outra importante personalidade do TPC foi Thomas Parran, cirurgião geral dos Estados Unidos e chefe dos Serviços de Saúde Pública do país. Segundo Cueto, o norte-americano foi influenciado pela medicina social e desenvolveu o argumento do que, depois da guerra, muitos dos sistemas de saúde pública no mundo haviam sido destruídos, assim como nações ocupadas tinham experimentado epidemias que representavam uma ameaça à segurança global, incluindo os vencedores da guerra que poderiam ser infectados pelas epidemias. Por estas razões, disse Cueto, ele defendia uma reunião humanitária, democrática e geopolítica com a partilha de novas descobertas médicas, e a busca de uma ordem internacional que garantisse uma paz duradoura. O relatório da Comissão chefiada por Parran foi aprovado pelo Congresso.

 

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Cueto e Gilberto Hochman, à mesa, assistidos pelo público do Encontro. Foto: Roberto Jesus


O documento é mantido por um preâmbulo conhecido por profissionais de saúde pública de muitas partes do mundo: “A saúde é um estado de completo o físico, mental e social, não apenas ausência de doença ou enfermidade “, lembrou o historiador.

 

“É importante notar que a definição do preâmbulo sugere uma motivação idealista em favor da igualdade universal, que era novo, especialmente em muitos governos europeus, mesmo após a Segunda Guerra, e, além disso, o preâmbulo ligava saúde com termos como paz. Inspirados pelo postulados da medicina social, saúde pública não devia ser um produto isolado do resto da vida social, mas um processo intrínseco de desenvolvimento social”, afirmou Marcos Cueto.

 

O principal resultado do TPC foi a realização da Conferência Sanitária Internacional que institui a Organização Internacional de Saúde (futura OMS), realizada em Nova Iorque, em julho de 1946. Parran, chefe da delegação dos EUA, foi eleito presidente do evento. Participaram delegados de 51 Estados, e uma série de observadores sem direito a voto, os representantes dos territórios ocupados pelos aliados (Alemanha, Japão e Coréia) e algumas agências de saúde.

 

Sobre o nome da futura organização, Cueto relatou que entre as possibilidades estavam Organização Internacional de Saúde, ou Organização de Saúde das Nações Unidas. “O termo mundo foi entendido por alguns, especialmente os soviéticos, como uma advertência aos países europeus que suas colônias também eram áreas para a agência de intervenção futura”. De acordo com um dos fundadores da OMS, contou Cueto, o termo mundo serviria para enfatizar a noção de que o mundo não poderia funcionar por ter metade da população mundial doente, e a outra metade saudável, e que muitos problemas de saúde só poderiam ser resolvido em uma escala global.

 

Outros resultados importantes foram a adoção da Constituição da OMS e a criação de uma Comissão Provisória (IC – sigla em Inglês) que vai trabalhar para a Assembléia Mundial de Saúde, a ser realizada depois de atingir o número necessário de ratificações da Constituição exigidos pela ONU (ou seja, 26 governos que assinaram e se comprometeram a financiá-la).

 

Em setembro de 1947, um surto de cólera no Egito produziu uma reação rápida do IC. “O medo da doença foi vinculada à memória de epidemias que atingiram as cidades da Europa e grande parte do mundo durante o século XIX”, lembrou Cueto.

 

O pico da epidemia chegou no fim de outubro, com 500 mortes e 900 novos casos acumulados em um dia. A dimensão da epidemia, aliado ao fato de que há vários anos, quando a cólera apareceu no Egito ou na Europa, a cólera era uma questão de primordial importância para o IC, disse Cueto. “A preocupação das potências européias e dos Estados Unidos também se deu porque se considerou que o governo egípcio não seria capaz de controlar a epidemia sozinho”.

 

“O senso de urgência e pavor que causou fez com que o IC combinasse as tarefas de organizar a OMS como instituição ao mesmo tempo em que esta instituição precisava responder rapidamente a emergências, o que acabou influenciando e acelerando o processo de construção da OMS”, concluiu o historiador.

 

Marcos Cueto é professor da Universidad Peruana Cayetano Heredia e, atualmente, é Pesquisador Visitante da Casa Oswaldo Cruz. Em 1994, Marcos organizou Missionaries of Science: The Rockefeller Foundation and Latin America, publicado pela Indiana University Press. Autor de diversos artigos publicados em periódicos como Isis, The Bulletin of the History of Medicine, The Hispanic American Historical Review, sua obra se constitui em uma referência em História da Saúde na América Latina. Atualmente, prepara um livro sobre a História da Saúde Pública na América Latina, percebida em um quadro mais amplo da saúde global.