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Saint-Hilaire: o caminho percorrido pelo viajante-naturalista até o Brasil

09 maio/2017

 

“A botânica é mais que uma ciência de palavras”. A defesa dessa área de conhecimento como campo filosófico e a inserção social e cultural de August Saint-Hilaire, foi o tema abordado pela pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, Lorelai Brilhante Kury, no Encontro às Quintas do dia 27/4. A pesquisadora teceu reflexões sobre o caminho trilhado pelo botânico, partindo da província francesa de Orleans, onde nasceu, até chegar a ser um viajante-naturalista em terras brasileiras. A palestra marcou os 20 anos da primeira edição do Encontro às Quintas, que a partir de 2017, ganha uma versão no formato de entrevistas produzidas em parceria como o Canal Saúde, e passa a estar disponível na íntegra no repositório institucional Arca.

O francês Auguste Saint-Hilaire nasceu em 1779, auge das transformações trazidas pelo iluminismo, quando as ciências se tornaram indispensáveis à administração e legitimação dos Estados europeus. De família nobre, teve uma educação adequada a sua posição social. Passou também parte da juventude na Alemanha, onde adquiriu o domínio do idioma germânico. De volta à França, dedicou-se à história natural, publicando diversas memórias científicas. “Saint-Hilaire circulava nessa ambiência fluida de então na qual cientistas refaziam as fronteiras entre magia e técnica, utopia e projeto racional e mais que isso, especialistas construíam para si um espaço de atuação legitimado pela sua expertise relativamente imune às oscilações da opinião pública”, explicou Lorelai.

No século 19, a história natural e sua vertente botânica, que se estabeleciam pelo uso prático, característica do iluminismo, também começaram a ser percebidas como ciência filosófica, tornando-se um campo de estudo autolegitimado. “Os amadores passaram a ser excluídos das práticas da ciência, agora mais profissionais, como a publicação de artigos em periódicos científicos”, destacou Lorelai. Em seu artigo “Resposta às críticas que as pessoas da sociedade fazem ao estudo da botânica”, Saint-Hilaire defendeu a botânica como prática filosófica e se opôs à popularização: “Ele critica a moda e a vaidade de se estudar a ciência como hobby. Chega a dizer que as pessoas citam os nomes científicos das plantas, mas na verdade não conhecem nem os vegetais que comem”, disse a pesquisadora.

Dupla inserção

O grupo de homens de ciência do qual Saint-Hilaire fazia parte eram indivíduos cujo nascimento e formação permitia que tivessem acesso a coleções, periódicos, livros e que a partir do material coletado, escrever comparar e classificar plantas ou escrever sobre morfologia e fisiologia botânica. Mesmo sem um aprendizado formal de história natural, a educação e lugar social do naturalista permitiram que ele aprendesse nos livros, e contasse com seu círculo de amigos ou familiares, com sua rede de homens de ciência e que sua formação fosse reconhecida como suficiente para qualificá-lo como naturalista pleno.

Nesse contexto, quando o Duque de Luxemburgo, amigo de sua família, foi encarregado de uma missão diplomática junto à corte portuguesa no Rio de Janeiro, o pesquisador interessou-se pela empreitada. Saint-Hilaire conhecia os trabalhos de Alexander Von Humboldt, que viajou para a América Central, escreveu sobre a flora do Novo México, e que se tornou referência do modelo de viagem científica. Com o trabalho de campo, o botânico almejava formar um herbário tropical, que seria sua fonte de trabalho, além de, segundo Lorelai Brilhante, “ter o glamour dos viajantes e ser reconhecido academicamente como naturalista”.

No entanto, para que isso ocorresse, algumas condições teriam que ser satisfeitas. A literatura científica de época distinguia o naturalista viajante do coletor, visto como pessoa amadora e sem conhecimento cientifico, mas que “conseguia reconhecer plantas exóticas”. O botânico procurou demarcar essa diferenciação, sublinhando na correspondência trocada com o Ministério do Interior a utilidade do seu trabalho para a França, seus conhecimentos em história natural e as publicações especializadas que já tinha feito. Antes de favorecê-lo, o ministro se remeteu ao Museu de História Natural, que reforçou a importância da realização de pesquisas específicas nessa parte da América do Sul. O episódio marcou uma dupla inserção de Saint-Hilaire: boas relações familiares, dos seus pares, garantindo apoio político e financiamento público para sua atividade científica.

Lorelai ressaltou também que o fim da guerra e do império napoleônico inaugurou uma nova etapa para os franceses no Brasil: “O episódio revolucionário, o período representado pela filosofia das luzes, pelo jacobinismo e os ideais republicanos iam esmaecendo no imaginário brasileiro, saindo do foco da ciência. Havia esse espaço para que homens como Saint-Hilaire, francês sim, mas religioso e idealista, conquistasse a simpatia das autoridades estabelecidas nessa imensa américa portuguesa”, concluiu.