No Brasil, onde o aborto é considerado crime, excetuando-se nos casos de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia, um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados agrava a pena para a venda de medicamentos que interrompem a gravidez. A proposta também inclui a aplicação de multa 10 vezes maior que o mínimo legal para quem faz propaganda de remédios proibidos que provoquem aborto. Um desses medicamentos é o misoprostol, popularmente conhecido como Cytotec.
Análogo sintético da prostaglandina E1, o misoprostol foi originalmente destinado ao tratamento de úlceras gástricas, mas, por produzir contrações no útero, passou a ser usado como abortivo. Livremente comercializado no Brasil a partir de sua chegada ao mercado nacional, em 1986, o remédio foi incluído na Portaria 344/1998, da Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa), que discorre sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Com isso, a sua comercialização foi proibida no país, mas seu uso é permitido em ambiente hospitalar.
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A principal consequência dessa normatização foi tornar ainda mais inseguro o caminho das mulheres que decidem interromper uma gestação, pois a medicação segue sendo usada, mas de forma clandestina, resultando em mais vulnerabilidades, avalia a historiadora Thayane Lopes Oliveira, que investigou a trajetória do medicamento no país em tese defendida no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). No estudo, orientado por Luiz Antonio Teixeira, do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) da Casa, ela detalha as movimentações que resultaram no veto ao comércio do misoprostol no Brasil.
“Restou o mercado ilegal que coloca, mais uma vez, essas mulheres diante de novos obstáculos e preocupações, por exemplo: a falta de informação segura e eficaz; e a compra, muitas vezes, de medicamentos falsificados. Nesse sentido, longe de impedir a prática do aborto e do uso do misoprostol, tais regulamentações impactaram mais fortemente sobre as mulheres que recorrem a este método”, escreve Thayane, que analisou grande variedade de fontes, como artigos científicos, documentos jurídicos, jornais e revistas de circulação nacional e regulamentos técnicos de órgãos governamentais.
Dados divulgados ano passado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que, anualmente, 39 mil mulheres morrem e milhões são hospitalizadas em decorrência de complicações decorrentes de abortos inseguros, que é uma das cinco principais causas de morte materna no mundo, juntamente com hemorragias graves e infecções pós-parto, hipertensão arterial durante a gravidez e complicações no parto.
O Cytotec vive aqui uma situação antagônica, pois ao mesmo tempo em que é revolucionário para a área obstétrica, é banido comercialmente em razão da criminalização do aborto no país. Nos hospitais, é usado para induzir parto, auxiliar na contenção de hemorragias pós-parto ou tratar de aborto incompleto, ocorrido de forma espontânea ou induzida. A relevância do misoprostol é reconhecida pela OMS, que também o considera um método farmacológico para aborto seguro. Em países em que o aborto é legalizado, o medicamento é distribuído pelo serviço de saúde e pode ser adquirido em farmácias.
No estudo, Thayane mostra os primeiros momentos do medicamento no Brasil, com as grandes expectativas da indústria farmacêutica em relação às prostaglandinas, e segue até a sua transformação em vilão. As primeiras denúncias sobre a adoção do misoprostol como abortivo sugiram na mídia entre 1990 e 1991. Em seguida, ele passou a ser classificado como indevido e ilegal pelo campo científico e jurídico.
A historiadora analisou a atuação do Grupo de Prevenção ao Uso Indevido de Medicamentos (GPUIM), vinculado ao Departamento de Farmácia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Segundo ela, a escolha se deu em razão de realizações de seus integrantes, que, por meio de artigos científicos e participação em outros espaços, colaboraram para um rigoroso controle sobre a comercialização do misoprostol no país. O Ceará foi o primeiro estado a vetar o livre comércio do medicamento.
Embora os discursos médico-científicos analisados tenham destacado que o misoprostol configurava um risco à saúde pública e à sociedade, por ser usado como abortivo e pelo risco teratogênico (malformação no feto) em casos de utilização indevida e sem acompanhamento profissional, Thayane observa que a chegada do fármaco ao mercado nacional mudou o itinerário da mulher em busca por aborto no país. Por ser de fácil acesso, mais barato e menos invasivo, reduziu o uso de método mais arriscados, como a ingestão de ingredientes tóxicos, inserção de objetos pontiagudos no útero e submissão a procedimentos cirúrgicos em clínicas clandestinas, com desfechos que vão de infecção grave a traumas e perfurações cervicais e uterinas. Com isso, transformou também o cenário de morbimortalidade do aborto ilegal no país.
A análise histórica do processo de normatização do medicamento, frisa Thayane, sugere que os possíveis riscos e perigos associados ao uso do misoprostol como abortivo “foram privilegiados nas pesquisas”, em detrimento de ganhos para redução da mortalidade materna nos casos de aborto provocado. “Os conhecimentos científicos produzidos no campo farmacêutico e da medicina genética foram traduzidos para o âmbito jurídico como legitimação e respaldo do aparato legal construído sobre o Cytotec no Brasil”, escreve, considerando que vários atores trabalharam “na construção de um discurso condenatório sobre o misoprostol”, exigindo a retirada do produto do mercado.
“Escutamos falar que o Cytotec é usado como abortivo e é perigoso porque pode causar má formação congênita e que, por isso, é proibido. Isso é algo que está naturalizado. Mas, como historiadora, eu estranhei esse fato dado e fui atrás disso”, conta Thayane, ressaltando que o cientista, embora se pretenda neutro, não está apartado da sociedade, produzindo conhecimento separado do contexto social, econômico, religioso, moral. E se pergunta se a produção científica que embasou legalmente o processo de restrição do misoprostol no Brasil seria a mesma se falássemos de um país com uma legislação mais flexível e valores mais progressistas com relação ao aborto.