A abertura do ano letivo da Casa de Oswaldo Cruz realizada nesta terça-feira, 5 de abril, contou com a presença de Ulpiano Bezerra de Meneses, professor emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP, que ministrou a palestra “Os paradoxos da preservação cultural”. Este foi o primeiro ano em que a COC realizou uma abertura oficial de seu ano letivo, além das aulas inaugurais de seus cursos de pós-graduação e especialização.
A vinda do professor foi saudada por Nara Azevedo, diretora da COC, Paulo Elian dos Santos, vice-diretor de Pesquisa, Educação e Divulgação Científica da COC, e por Nísia Trindade, vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz e docente do programa de pós-graduação da COC, que juntos fizeram a abertura do evento.
Nísia Trindade e Paulo Elian observam palestra de Ulpiano Meneses. (Foto: Vinícius Pequeno/COC) |
Ulpiano alertou aos presentes que sua palestra que não trataria de diretrizes, considerações normativas, métodos ou técnicas em relação à preservação. Antes, seria orientada pelo sentido etimológico da palavra preservação – do latim praeservare – que, segundo ele, “traz a noção de cuidado, proteger (servare), e também a idéia de uma antecipação (prae). Assim, a preservação seria uma medida cautelar, um acautelamento”, disse.
Ainda em relação ao foco da palestra, Ulpiano disse que os paradoxos indicados no título da mesma seriam abordados a partir de casos que demonstram o comportamento da sociedade em relação à questão da preservação. O palestrante detalhou a origem da palavra paradoxo, que “trata de opiniões, juízo (doxum) paralelos (para), ou uma opinião que se desdobra em linhas paralelas”. Assim, prosseguiu, “esses paradoxos trazem uma complexidade que faz um convite ao espírito crítico, ao exercício de ampliar os horizontes da preservação cultural”.
O primeiro ponto tratado por Ulpiano foi em relação à variância e à invariância. Segundo ele, a experiência do envelhecimento e as perdas que esta acarreta bastam para perceber que “a mudança, e não a estabilidade, é o que rege a vida”. O palestrante falou sobre a ilusão da sociedade conservadora, que se vê como pronta, e não se considera em sua constante modificação, realizando inclusive investimentos para deter a mudança. Segundo o palestrante, tanto a variância como a permanência são necessárias, pois “sem a mudança viveríamos em uma uniformidade contínua, e sem a permanência teríamos a inteligibilidade comprometida”.
Platéia acompanha, atenta, palestra de Ulpiano. (Foto: Vinícius Pequeno/COC) |
A questão da autenticidade foi outro tópico abordado pelo palestrante. Segundo ele, o nó da questão não está na autenticidade, e sim na identidade, naquilo que permanece na mudança. Exemplificou com alguns casos, como o das meias de seda que, de tanto serem usadas, tiveram que ser constantemente remendadas, até o ponto de que não tivessem mais seda em sua composição. “Entretanto, as meias mantiveram sua identidade”, afirma. Outro exemplo foi o da memória celular, que faz com que as células de um indivíduo sejam paulatinamente substituídas ao longo da vida, permanecendo entretanto um traço, uma identidade, “um indefinível ar de continuidade”.
Ainda em relação à autenticidade, o convidado falou sobre as artes tribais, que repetem um padrão típico, nem sempre representativo da diversidade da tradição. Isso ocorre para que, no mercado, sejam imediatamente reconhecidas como autênticas. Ulpiano falou também sobre o “tambor de crioula”, uma dança típica do Maranhão considerada como patrimônio imaterial pelo IPHAN que, ao se deparar com a questão da necessidade de repetição de padrões, se dividiu em duas modalidades: uma, a ‘tambor de contrato’, é congelada, não varia, é “vacinada contra mudanças”; e a outra, ‘tambor nas casas’, se submete a transformações, com mudanças nas letras, trajes e instrumentos musicais usados.
Para apresentar uma nova questão – entre conceito e matéria – Ulpiano exemplifica contando a história do barco de Teseu que, após muito navegar, começa a trocar suas pranchas. Ao final de um tempo, todas são substituídas. “Depois destas mudanças, esse deixaria de ser o barco de Teseu? E em que momento isso teria acontecido?”, indaga o palestrante. “E se um novo barco fosse construído a partir dos restos do barco de Teseu, e depois pegasse fogo. Qual seria o barco autêntico? O que ficou, com as alterações, ou o que queimou?” Na história, a decisão em tribunal foi a de que o barco com as alterações, que manteve sua identidade, era o autêntico.
Ulpiano afirma que, hoje, a decisão seria diferente. “No ocidente moderno e contemporâneo, há uma preponderância da imanência do objeto material, dos sentidos e valores atribuídos as formas. Os objetos são sacralizados nos museus ocidentais”, diz. A partir daí, Ulpiano questiona qual seria o foco da preservação, se nos objetos ou nos sentidos e valores. Segundo o palestrante, é preciso pensar no sentido social dos objetos, e a preservação deve levar em conta não apenas critérios técnicos, mas também os sentidos e usos do patrimônio: “Não há preservação se não a social. É preciso reconhecer significados, valores e usos, que são interdependentes”. Além disso, é preciso desfetichizar os objetos, o que “já se insinua com a questão do patrimônio cultural, imaterial, mas está longe de se concretizar”, diz.
Ulpiano Meneses em palestra na Casa de Oswaldo Cruz. (Foto: Vinícius Pequeno/COC) |
Outra questão abordada pelo palestrante foi a do inverso da preservação, a destruição de um bem cultural como valor. Dando o exemplo da destruição dos budas de Bamiyan pelos talibãs, afirmou que esses atos não demonstram que o patrimônio não seja valorizado. “Ao contrário, é por conta do reconhecimento de seu grande valor é que se destrói, para a afirmação de uma superioridade”, diz. Outro caso apresentado foi a da instituição do valor apenas após a destruição do bem, dando exemplo das torres gêmeas e do muro de Berlim, onde a destruição foi um “instrumento de valoração cultural”.
A última questão abordada por Ulpiano foi a do tempo e das temporalidades, quando o convidado afirmou que é impossível resgatar o passado. Segundo ele, a história é uma mediação para se entender os mecanismos de transformação. A confusão entre tempo cronológico e temporalidades foi outra questão abordada por Ulpiano: “A temporalidade diz respeito à duração, efeito, é um conceito relacional. O presente é composto de temporalidades diversas. No patrimônio ambiental urbano, por exemplo, a presença dessas temporalidades diversas enriquece o presente”, diz.
Por fim, o palestrante considera que conservar e transformar não são conceitos necessariamente excludentes. “Conservar um bem, tirá-lo da arena da corrosão do tempo é resignificá-lo. É preciso examinar as três dimensões da preservação: a técnica, a política e a ética, a mais delicada, que diz respeito à relação com o outro. Outras duas questões essenciais são quem se beneficia com a preservação, e quem arca com ela”, finaliza.
No debate que se seguiu a apresentação de Ulpiano, a interpretação de objetos como fontes para a história foi um dos tópicos de discussão. Ulpiano afirmou que o acervo de um museu deve ser utilizado como um dicionário para um poema, “mobilizando as palavras, ou seja, os objetos, de acordo com o poema, com a história que se quer contar. É o poema que conduz o acervo, e não o contrário”, diz.