Um fio parte da ilha da Goreia, no Senegal, o maior centro de tráfico de escravos nas costas africanas, e atravessa os campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia. Cruza também o Memorial da Paz de Hiroshima, no Japão; o Marco Zero do 11 de setembro, nos Estados Unidos; e o Museu de Las Memorias, no Paraguai. Segue perpassando outros locais, em um longo trajeto, que, em breve, vai chegar ao Memorial da Covid-19 Fiocruz, a ser construído no campus Manguinhos, no Rio de Janeiro. Associados ao sofrimento e morte decorrentes da escravidão, das guerras, dos regimes de exceção, todos são patrimônios que materializam memórias difíceis.
Por mais dolorosas que elas sejam, há uma boa razão para que sigam vivas, avalia a historiadora Cristina Meneguello, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), referindo-se ao Memorial Covid-19 Fiocruz: “Para nós, brasileiros, que experienciamos o desamparo e a incerteza em meio a um governo negacionista, persiste uma sensação generalizada de todos sermos vítimas e sobreviventes. Nesse caso, relembrar e marcar o que aconteceu se transforma em uma necessidade, inclusive para a superação”.
Especialista em estudos sobre memória e patrimônio, Meneguello explica que os patrimônios difíceis, também chamados de sombrios, dissonantes ou da dor, são locais com a finalidade de rememoração coletiva e de direitos e de reparação de períodos de violência e trauma. É um “passado que não passa” e tem uma função de educação pública e de revitalização urbana. Foi após a Segunda Guerra Mundial que o ato de registrar as memórias difíceis no patrimônio público ganhou fôlego:
“A compreensão do que se dera com o Holocausto, ao mesmo tempo em que propostas revisionistas ou negacionistas também ganharam forma naqueles anos, obrigou a sociedade ocidental a pensar um novo lugar para o patrimônio, para além da celebração da arte, da arquitetura ou de feitos heroicos”, diz, citando locais listados como patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), onde ocorreram batalhas, massacres e atentados, entre eles, a já referida Ilha de Goreia ou Gorée, no Senegal, em 1978.
No Brasil, além dos marcos associados à ditadura, Meneguello destaca os patrimônios dissonantes da saúde e da doença, em particular, os leprosários e as colônias-asilo, como Juquery, em São Paulo, e Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, todos espaços de exclusão que geraram isolamento, segregação e demandas por reparação.
Evidências de fatos passados como proteção para as contranarrativas
No ano passado, convidada a abordar o tema pelo Programa de Pós-Graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultura das Ciências e da Saúde (PPGPAT), da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), Meneguello enfatizou a importância dos memoriais, especialmente diante de ondas de negacionismo, e observou que o patrimônio imaterial, como os testemunhos e as memórias, precisam estar ancoradas em um lugar: “Eles funcionam, muitas vezes, como esses marcos urbanos para nos dizer: isso existiu, isso aconteceu, essas pessoas foram presas, torturadas, mortas. É a materialidade que funciona um pouco para nos proteger das contranarrativas, que vêm em quantidade e na velocidade das redes sociais e digitais”.
Para a professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a rememoração, a marcação dos lugares, dos memoriais, são essenciais para a tarefa democrática de reconstrução da sociedade que se coloca, por exemplo, para os países que viveram os regimes de exceção, como o Brasil. “Essas memórias, uma vez sufocadas, uma vez submersas, retornam, em movimentos sociais, em atos, entendidos como violentos, explosões, mas que são nada mais, nada menos daquilo que ficou escondido, obliterado, represado”.
Memoriais conectam passado e presente e oferecem uma compreensão tangível para futuras gerações
Arquitetos integrantes da equipe vencedora do Concurso Memorial Covid-19 Fiocruz – Ciência e Saúde, realização da Fiocruz com organização do Instituto dos Arquitetos do Brasil – Departamento do Rio de Janeiro (IAB-RJ), concordam com Meneguello sobre o papel dos memoriais na sociedade contemporânea. Além de estruturas físicas, diz Paulo Tripoloni, “são marcos que carregam significados profundos, representando momentos históricos, memórias coletivas e homenagens a indivíduos ou grupos, e têm o poder de conectar o passado ao presente, oferecendo às futuras gerações uma compreensão tangível dos eventos que moldaram o mundo”. Pablo Mora Paulo, por sua vez, deseja que o memorial “provoque a reflexão sobre a experiência da pandemia e represente a importância da ciência e das instituições comprometidas com a pesquisa e a saúde pública”.
Paulo Tripoloni, ao microfone, durante a cerimônia de premiação do Memorial Covid-19
Durante a criação do projeto arquitetônico e paisagístico, momentos difíceis da pandemia foram rememorados pela equipe. Tripoloni ganhou uma filha, em meio ao clima de “angústia e preocupação” que seguiu até a chegada da vacina. Já Gabriel Costa Dantas precisou interromper o curso universitário e perdeu um tio em decorrência de complicações da Covid-19. Fernanda de Macedo Haddad viveu um pesadelo logo no início da crise sanitária, marcado por muitas incertezas, quando o filho, o companheiro e a mãe foram contaminados: “Tentei internar meu marido duas vezes, mas, naquele momento, os hospitais estavam priorizando idosos e funcionários da saúde. Nem testes suficientes havia”.
Pablo, por sua vez, recorda a preocupação em proteger os pais e as perdas. “No momento mais crítico, pessoas próximas foram entubadas, e a mãe de um amigo muito próximo faleceu sem ele poder ir ao enterro. Fui abraçá-lo, pois não queria deixar de vê-lo. Para esse memorial pensei muito neles (Neide e Carlos Eduardo Rondon)”, disse o arquiteto, que também foi contaminado pelo vírus. O memorial, acrescenta Tripoloni, é um “lembrete permanente da fragilidade da vida e da resiliência humana diante de adversidades”.
Cristina Meneguello: “Essas memórias, uma vez sufocadas, submersas, retornam”
Para Meneguello, da Unicamp, a inauguração do Memorial Covid-19 Fiocruz, em homenagem às 700 mil vítimas do novo coronavírus, “será mais um capítulo no processo de resistência” encabeçado por instituições brasileiras, como a Fiocruz, o Butantã, a Universidade Pública, o SUS”. Mais adiante, está nos planos da instituição a criação de um memorial à democracia, em homenagem aos dez cientistas da Fiocruz que foram cassados pela ditadura, vítimas de expurgo político em 1970, no episódio que ficou conhecido como o “Massacre de Manguinhos”.
Sociedades que não esquecem estão mais bem preparadas para defender a democracia
“A pandemia pode estar sendo suprimida da memória, ou num esforço de autopreservação, ou num gesto politicamente mal-intencionado, de diluir as responsabilidades e os erros dos agentes públicos que deveriam ter zelado pela população (governantes, Conselho Federal de Medicina, OAB, mídia – em especial as redes sociais)”. Embora muitos memoriais on-line tenham sido criados, a historiadora observa que um marco físico, arquitetônico, “fica como um ‘memento’ palpável, incômodo, um convite a pensar, a se questionar. Uma sociedade que se questiona e que não esquece está mais bem preparada para defender a democracia, a ciência e a educação”, avalia, frisando o caráter educativo dos memoriais”.
É um desafio, porém, garantir empatia durante a visitação aos patrimônios difíceis, pontua a historiadora. Embora não seja necessário ter perdido um ente no 11 de setembro ou na pandemia de Covid-19 para sentirmos o impacto desses acontecimentos, aqui e ali nos deparamos com registros de pessoas que demonstram falta de respeito quando visitam os lugares onde ocorreram esses episódios, como selfies de turistas sorridentes em campos de concentração.
Meneguello diz que essas situações são frequentes, citando um caso ocorrido em Mariana (MG), quando testemunhou turistas diante do pelourinho em praça pública que fingiam estar acorrentados ou sendo açoitados. “É um gesto de flagrante desrespeito ou indiferença em relação à dor dos escravizados. E aí nós nos perguntamos: podemos ensinar a empatia? Podemos fazer com que a memória daquilo que a pessoa não viveu a deixe pensativa e constrangida?”
Para concluir, a historiadora cria uma cena hipotética sobre a Covid-19 e se pergunta como será quando todos que vivenciaram a pandemia e sobrevivido não estiverem mais vivas para atestar que ela existiu e como ela ocorreu:
“Será que os visitantes vão fazer como fazem jovens que visitam os locais que se referem à ditadura civil-militar no Brasil e chegam dizendo ‘ah, mas meu pai/avô disse que nada disso aconteceu de verdade?’ Será que vão dizer frases como ‘ah mas meu avô disse que não morreram 700 mil brasileiros e aqueles que morreram foi porque não tomaram cloroquina/ozônio/invermectina?’ É angustiante pensar nisso”, desabafa Meneguello, frisando que, em História, tudo que estudamos é um caminho para compreender o que não vivemos ou aquilo que conhecemos apenas por vestígios ou relatos. “Por isso, mais premente ainda se tornam todos os esforços de narrar o ocorrido a quem está aqui hoje e às futuras gerações”.