Em setembro de 1973, enquanto a ditadura civil-militar cruzava os braços diante do crescimento alarmante dos casos de meningite no Brasil, censurando a divulgação dos dados do que se tornaria a maior epidemia da doença no país, o então presidente Emílio Garrastazu Médici fez um pronunciamento nacional nos meios de comunicação para falar sobre o enfrentamento das neoplasias. Anunciou a criação de uma iniciativa que, ao ser lançada, recebeu o nome de Programa Nacional de Controle do Câncer (PNCC). Apesar de ser um plano para todos os tipos de tumores, o câncer do colo do útero ganhou destaque nas ações.
Em um estudo publicado recentemente, as historiadoras Keila Auxiliadora Carvalho e Vanessa Lana – que fizeram, respectivamente, estágio pós-doutoral e doutorado em História das Ciências e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) – analisam as políticas de controle do câncer do colo do útero, em especial, do PNCC, na década de 1970. Elas revelam que a iniciativa fortaleceu a perspectiva de uso de recursos públicos para o beneficiamento de instituições privadas, embora tenha ampliado a medicina diagnóstica e preventiva.
Decorrente da infecção persistente por alguns tipos do vírus do papiloma humano (HPV), sexualmente transmissível, o câncer do colo do útero, também chamado de câncer cervical, é evitável. Além da vacina contra HPV, disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2014, a lesão, de evolução lenta e facilmente detectável no exame preventivo, popularmente conhecimento como Papanicolau, é curável quando diagnosticada precocemente. Apesar disso, no Brasil, é a terceira causa de morte de mulheres por câncer e a quarta neoplasia mais incidente, segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca) de 2020.
Na época analisada no estudo, o Ministério da Previdência e Assistência Social atuava na saúde por meio do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), substituído em 1974 pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). Apenas os brasileiros inseridos no mercado formal de trabalho, ou seja, com carteira assinada, tinham acesso a consultas, exames e cirurgias pelo sistema previdenciário. Em tese… Como os serviços particulares contratados eram maioria, quem estava na base da pirâmide precisava enfrentar longas filas para ser atendimento, ao contrário dos que estavam logo acima e podiam pagar pelo serviço. Já o Ministério da Saúde, que recebia investimento muito inferior ao da Previdência, responsabilizava-se pelas ações preventivas.
Crescimento de leitos hospitalares privados se aproximou dos 500%
No texto, as autoras contam que, para a implantação do PNCC no país, foi criado um “módulo mínimo”, constituído por laboratórios de anatomia patológica e citologia e radioterapia. Para atrair capitais da iniciativa privada, estava previsto o reembolso pela saúde pública a todos os procedimentos relacionados ao câncer realizados pelos hospitais e laboratórios privados da saúde previdenciária. “Esse modelo de fomento às instituições de câncer, surgido na década de 1970, de fato fortaleceu a perspectiva de utilização de recursos públicos para o beneficiamento de instituições de saúde privadas, com a expansão da cobertura por meio da compra de serviços do setor privado”, destacam. Segundo o artigo, que atribuiu ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) o papel de principal crítico ao modelo curativista, no Brasil, no período de 1969 a 1984, por exemplo, o aumento do número de leitos privados hospitalares se aproximou dos 500%.
Esse padrão se ampliou a partir de 1974, quando o governo federal criou o Fundo de Assistência Social (FAS), cujos recursos, captados da loteria esportiva (Caixa Econômica Federal), eram aplicados na abertura de unidades hospitalares, ampliação e compra de equipamentos, e por meio do qual o INPS/Inamps pagava pela assistência médica. “Ocorria que em ambos os casos – construção de hospitais e assistência médica – a maior parte dos recursos públicos era repassada ao setor privado, que por sua vez, prestava serviço à Previdência”, dizem as historiadoras em capítulo que integra o livro História da Saúde – Diálogos para o século 21, da Hucitec Editora, organizado por Luiz Alves Araújo Neto, Carolina Arouca Gomes de Brito e Ricardo Cabral de Freitas, pesquisadores em estágio pós-doutoral na Casa de Oswaldo Cruz.
“Ao invés de investir na ampliação e manutenção de uma rede própria, Inamps/INPS optaram por realizar convênios com a rede privada. Essa lógica da saúde como um direito, do Estado como o principal promotor da saúde, só vai acontecer na Constituição de 1988 e depois vai se consolidar com a criação do SUS”, salienta Keila, que é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto e, entre outros temas, pesquisa sobre a construção social dos regimes autoritários.
Citologia passa a ser adotada como principal ferramenta de diagnóstico
Ao elaborar o PNCC, o Brasil seguiu o exemplo de países como Estados Unidos e Inglaterra, que estruturaram campanhas de maior escala para detecção do câncer do colo do útero. Optou-se no país a usar como base o “Modelo Bahia”, instituído pelo Hospital Aristides Maltez (HAM), um dos pioneiros no desenvolvimento de campanhas de maior alcance populacional. Partia-se do pressuposto de que não bastava examinar apenas as mulheres que buscavam os postos de saúde para resolução de problemas de saúde em geral. Seria necessário realizar exames preventivos em todas as pacientes, pois a infecção por HPV pode seguir silenciosa até se tornar um câncer. Esta abordagem adotada na Bahia marcou uma transição: a citologia (Papanicolau) passou a ser usada como principal ferramenta de diagnóstico, lugar antes ocupado pela colposcopia.
“A doença passou cada vez mais a ser vista como um problema de saúde pública, e as ações começaram a ser pensadas e estruturadas com o objetivo de atender um número cada vez maior de mulheres”, observa Vanessa, destacando a mudança no tipo de tecnologia preferencial adotada para detecção do câncer do colo do útero. Embora a colposcopia, desenvolvida na Alemanha, tenha impulsionado a formação e a organização dos serviços de controle do câncer do colo do útero no Brasil, sendo o principal método até os anos 1960, o PNCC reforçou o protagonismo da citologia (Papanicolau), exame de menor custo e que poderia ser realizado de forma mais rápida.
Vanessa, que é professora adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa e desde 2007 pesquisa e produz trabalhos em perspectiva histórica sobre o câncer, diz que o PNCC articulou o enfrentamento da neoplasia cervical em âmbito federal, por meio de parcerias com secretarias estaduais e entidades filantrópicas, ampliando a normatização e a abrangência das ações efetuadas. Além disso, houve uma contribuição na formação de recursos humanos, principalmente de técnicos em citologia, profissonal responsável pelo exame das lâminas com material colhido durante o teste de Papanicolau. Ainda assim, faltavam profissionais no mercado, em decorrência de fatores como o tempo prolongado dos cursos de qualificação e a busca do mercado privado de saúde por mão de obra de baixo custo.
PNCC não chegou a amplos setores da sociedade
Embora a análise aponte os dois lados da moeda PNCC, Keila frisa os diferentes pesos de cada uma delas: “Mostramos que a opção pelo investimento no setor privado teve custos muito grandes para a trajetória da saúde no Brasil. De fato, houve um avanço do ponto de vista da tecnologia, da criação dos hospitais, mas deixou a desejar porque os amplos setores da sociedade, não tiveram acesso a esse sistema. Esse processo poderia ter acontecido de uma forma mais democrática em termos políticos e também em termos de investimento e do acesso. Isso, na verdade, vai ocorrer com a criação do SUS”.
Dados divulgados pelo Inca, relativos a 2020, revelam que a taxa de mortalidade por câncer do colo do útero no país foi de 4,6 óbitos por 100 mil milhares. “Para fazer frente a esse cenário, diversos fatores que devem caminhar em conjunto, dentre eles, o acesso a exames de rastreamento, ainda muito desigual quando analisados segundo níveis de escolaridade, faixas de rendimento, e ainda a própria qualidade do exame citopatológico. Esses pontos nos indicam um gargalo na atenção secundária à saúde no país, o que leva muitas mulheres a enfrentarem dificuldades para ter acesso à confirmação diagnóstica”, avalia Vanessa.
Em fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde do Brasil lançou a Estratégia Nacional de Eliminação do Câncer do Colo de Útero. Com investimento de inicial de 18 milhões, prevê a ampliação, para todo o país, de um projeto-piloto, resultado da cooperação entre a secretaria de Saúde de Pernambuco e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Tem como diretriz o aumento da cobertura da vacina contra o HPV e a qualificação do cuidado no SUS, por meio do uso do teste molecular para detecção do HPV e o tratamento de lesões pré-cancerosas. A nova tecnologia é nacional, fruto de uma parceria entre a OPAS, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Instituto de Pesquisas de Biologia Molecular do Paraná (IBMP), o Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (Lika) e o governo de Pernambuco.