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O povo da Revolta da Vacina visto pelo debate parlamentar sobre o estado de sítio (1904-1905)

14 jul/2011

O último Encontro às Quintas do primeiro semestre de 2011, ocorrido em 30/6, trouxe um tema recorrente em teses e dissertações: a Revolta da Vacina, desencadeada pela campanha de vacinação obrigatória contra a varíola, em 1904. A visão do palestrante, cientista político Christian Edward Cyril Lynch, no entanto, aborda o movimento sob o ponto de vista do debate parlamentar sobre o que foi o quinto estado de sítio do regime republicano brasileiro.

 

Com o desaparecimento do Poder Moderador imperial, a política brasileira entrou, em sua fase republicana, “numa década de entropia que somente terminou com o triunfo do conservadorismo oligárquico, em torno de 1900”, afirmou Lynch. O estado de sítio e a intervenção federal passaram a constituir os institutos constitucionais que substituíram o poder moderador no ordenamento da política brasileira consolidado com a Política dos Governadores. O estado de sítio servia para suspender as garantias constitucionais e reprimir com energia as oposições inconformadas. Esta interpretação foi desenvolvida pelo cientista político ao longo da palestra.

 

Christian Lynch ao microfone
Christian Lynch. Foto: Vinícius Pequeno

 

Antes, vamos ao contexto político-social da época. Naquele início de século, a cidade do Rio de Janeiro, como capital da República, apesar de possuir palacetes e casarões, tinha graves problemas urbanos: rede insuficiente de água e esgoto, coleta de resíduos precária e cortiços super povoados. Nesse ambiente proliferavam muitas doenças, como a tuberculose, o sarampo, o tifo e a hanseníase. Alastravam-se, sobretudo, grandes epidemias de febre amarela, varíola e peste bubônica.

 

Decidido a sanear e modernizar a cidade, o então presidente da República Rodrigues Alves deu plenos poderes ao prefeito Pereira Passos e ao médico Oswaldo Cruz para executarem um grande projeto sanitário. O prefeito pôs em prática uma ampla reforma urbana, que ficou conhecida como bota abaixo, em razão das demolições dos velhos prédios e cortiços, que deram lugar a grandes avenidas, edifícios e jardins. Milhares de pessoas pobres foram desalojadas à força, sendo obrigadas a morar nos morros e na periferia.

 

Oswaldo Cruz, convidado a assumir a Direção Geral da Saúde Pública, criou as Brigadas Mata Mosquitos, grupos de funcionários do Serviço Sanitário que entravam nas casas para desinfecção e extermínio dos mosquitos transmissores da febre amarela. Iniciou também a campanha de extermínio de ratos considerados os principais transmissores da peste bubônica, espalhando raticidas pela cidade.

 

A resistência popular teve o apoio de positivistas e dos cadetes da Escola Militar. Os acontecimentos, que começaram com uma manifestação estudantil, cresceram consideravelmente, quando uma passeata dirigiu-se ao Palácio do Catete, sede do Governo Federal. Logo depois, o centro do Rio transformou-se em campo de batalha: era a rejeição popular à vacina contra a varíola que ficou conhecida como a Revolta da Vacina, devido à aprovação da Lei da Vacina.

 

A população exaltada depredou lojas, virou e incendiou bondes, fez barricadas, arrancou trilhos, quebrou postes e atacou as forças da polícia com pedras, paus e pedaços de ferro. Os cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha também se sublevaram contra as medidas baixadas pelo Governo Federal.

 

A reação popular levou o governo a suspender a obrigatoriedade da vacina e a declarar estado de sítio. A rebelião foi contida, deixando mortos e feridos. Centenas de pessoas foram presas e, muitas delas, deportadas para o Acre.

 

Ao ser reassumido o controle da situação, o processo de vacinação foi reiniciado, tendo a varíola, em pouco tempo, sido erradicada da capital.

 

O palestrante do Encontro às Quintas esclarece que “a Primeira República legitimou-se com a ideia de trazer democracia para o Brasil, e democracia para os políticos daquela época é descentralização política, é federalismo”.

 

No início do século 20, continua Lynch, o tema da democracia é interessante por desvelar os dois conceitos de povo: “as oligarquias entendiam a palavra povo como populus(educado politicamente), e a ralé, a gentalha como plebes (arruaceiros)”.

 

Lynch lembra que sempre existiu tensão entre ricos e pobres, nobreza e povo, possuídos e despossuídos, o que variou foi a forma de enfrentar a tensão. Mas na época que estamos abordando “o tratamento foi diferente porque o estado de sítio pela primeira vez foi mobilizado também para reprimir uma revolta popular, concomitante à rebelião militar”. Diferentemente dos militares, que apesar de revoltosos, eram “merecedores de respeito”, os populares eram pelos governistas identificados à canalha, à gentalha. De um lado estava a “gente qualificada”; de outro, a “malta”.

 

Para os políticos, disse Lynch, “a ideia de multidão é ameaçadora, negativa, porque a população começa a migrar do campo para a cidade, e são considerados ignorantes e sujeitos à manipulação pelos jacobinos (demagogos) que estariam conduzindo a Revolta”.

 

No momento da Revolta da Vacina, o conceito que aparece é o de demofobia, ou seja, “horror ao povo”. No repertório intelectual empregado pelos governistas para justificar a distinção, estava o pensamento do sociólogo francês Gustave Le Bon, para quem a multidão era louca e volúvel como uma mulher: “La foule est femme, la foule est fole”.

 

Nos debates parlamentares pesquisados pelo cientista político, alguns deles citados no Encontro às Quintas, aparece o tema da mudança de capital. “Os jornais, cujos proprietários eram senadores, veiculavam que o Rio tinha uma natureza agitada, um tanto revolucionária, por isso a capital precisava ser transferida para um lugar isolado, longe da vida social e da multidão, tal qual Washington (EUA)”. Paris, que passou pela Revolução Francesa, e Buenos Aires, em estado de transformações sociais, são vistos como exemplos negativos.

 

Na impossibilidade de levar a capital para outro lugar, usaram mecanismos como: estado de sítio; Política dos Governadores (baseava-se no apoio dos governadores estaduais e seus aliados ao governo, em troca de garantir a eleição para o congresso dos candidatos oficiais, o que representava a continuidade dos grandes fazendeiros – ricos e poderosos – no poder, o chamado coronelismo); reforma dos portos; e a já mencionada reforma urbana. Esta proposta de mudança de capital acabou sendo concretizada no Governo de Juscelino Kubitschek, nos anos de 1950.

 

Na sua conclusão, Lynch colocou que a “democracia naquele momento compreendia voto dos homens adultos e alfabetizados. Não havia igualdade perante à lei. Entendia-se que o povo era um bicho que tinha que ser tutelado”.

 

Lynch com a platéia à sua frentePúblico no Encontro às Quintas. Foto: Vinícius Pequeno

 

Com doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2007), Lynch atualmente é professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e professor assistente da Universidade Gama Filho (UGF). Tem experiência na área de Teoria Política, Teoria do Estado, Teoria do Direito, Teoria da Constituição e História do Direito Constitucional.

É um dos autores de As Constituições brasileiras – Notícia, História e Análise Crítica (2008), e autor de De La Monarchie à l Oligarchie : la construction de l’État, les institutions et la représentation politique au Brésil (1822-1930) – no prelo -(2011).