A italiana Anna Berti Suman cresceu considerando florestas, campos e montanhas como espaços seguros que deveriam ser preservados. Durante a graduação em Direito, a forte ligação com a natureza a levou ao Chile, onde acompanhou de perto iniciativas da sociedade civil em conflitos ambientais relacionados ao uso da água. Logo depois, atuou em um caso de poluição por exploração de petróleo na floresta amazônica equatoriana. Fascinada com a descoberta do potencial do monitoramento cidadão para a preservação do meio ambiente, ela não parou mais. Trata-se, no caso, da prática na qual pessoas comuns acompanham com atenção e coletam evidências sobre atividades do setor público ou privado. São sentinelas.
Pesquisadora do principal ator europeu na investigação sobre ciência cidadã para monitoramento e política ambiental, o Centro Comum de Investigação da Comissão Europeia, Anna é responsável pelo Sensing for Justice (SensJus). O projeto objetiva fornecer os conhecimentos necessários para que o monitoramento cívico seja adotado como fonte de prova para litígios ambientais e como ferramenta de mediação nas questões relacionadas ao tema. A expectativa é que se torne mais comum situações como a ocorrida em 27 de junho de 2019, quando uma decisão judicial proferida no Texas (EUA) considerou uma petroquímica responsável por violar a Lei da Água Limpa dos Estados Unidos, em decorrência de descarte de plástico. A contaminação não pôde ser comprovada por meio dos dados em poder das autoridades competentes, mas foi verificada em evidèncias apresentadas no caso, parte delas coletadas por cidadãos comuns.
“O monitoramento ambiental cidadão pode ser uma forma de ‘cuidar’ de questões ambientais e de saúde pública compartilhadas”, observa Anna, mencionando um episódio de mobilização de comunidades locais durante o maior desastre ambiental ocorrido no litoral brasileiro, em julho de 2019, quando o derramamento de cerca de 6 mil toneladas de óleo afetou a economia, o turismo e o trabalho de milhares de pescadores. Na ocasião, fotos e dados enviados por pessoas atingidas pela poluição ajudaram pesquisadores a elaborar um mapa online participativo e a caracterizar as manchas de óleo. “Pessoas comuns se empenharam em relatar evidências ambientais em apoio a especialistas que tratam do assunto”, relembra a pesquisadora, atualmente em estágio pós-doutoral como research fellow Marie Skłodowska-Curie.
Anna vem ao Brasil para compartilhar sua experiência no 18º Congresso RedPOP, a ser realizado de 10 a 16 de julho no Museu da Vida Fiocruz, em Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro. Com o tema Vozes diversas: diálogo entre saberes e inclusão na popularização da ciência, o evento vai reunir, durante uma semana, no campus da Fiocruz, pessoas de diferentes áreas do conhecimento, como Ailton Krenak, liderança indígena, ambientalista e escritor; Katemari Rosa, professora do Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia (UFBA); e Ernesto Fernádez Polcuch, diretor do Escritório Regional da Unesco em Montevidéu e representante do órgão na Argentina, Paraguai e Uruguai. Na programação, palestras, apresentação de trabalhos, painéis temáticos, minicursos e visitas técnicas.
Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista.
Em que contexto surgiu o monitoramento cidadão na área ambiental?
O monitoramento cidadão é uma prática na qual pessoas comuns usam seus sensores ou dispositivos de detecção para coletar dados sobre o status do ambiente ao seu redor, às vezes para reivindicar justiça ambiental. Não é algo muito recente. Como mostra uma revisão histórica que publiquei recentemente com o coautor Edwin Alblas, nossa ‘tendência’ de ‘sentir’ a realidade ao nosso redor existe desde as origens da humanidade. O início oficial do movimento mais amplo da ciência cidadã – significando o envolvimento ativo de leigos na pesquisa científica (como Irwin o definiu em 1995) – é frequentemente datado da experiência do Cornell Lab of Ornithology, estabelecido na Cornell University em 1915, onde os cidadãos comuns estavam envolvidos no apoio a cientistas que atuavam na pesquisa da biodiversidade.
Em 2021, Anna apresentou a graphic novel sobre sentinela cidadã em escolas. Fonte: SensJus |
É uma prática que envolve tanto o setor público quanto o privado?
O monitoramento cidadão pode ter como objetivo supervisionar as atividades do setor público que impactam os direitos das pessoas a, por exemplo, um ambiente saudável, mas muitas vezes também podem visar irregularidades por parte de atores corporativos, como o notório caso de Formosa demonstra. Em nosso estudo sobre o caso, discutimos a decisão judicial histórica (San Antonio Bay Estuarine Waterkeeper, et al. v. Formosa Plastics Corporation, et al.) proferida no Texas, onde um juiz considerou uma empresa petroquímica responsável por violar a Lei da Água Limpa, nos Estados Unidos. O caso foi construído principalmente com base em evidências coletadas por cidadãos envolvendo observações voluntárias de descarte de plástico na água durante um período de tempo considerável. A contaminação não pôde ser comprovada através dos dados existentes em poder das autoridades competentes. O monitoramento e a coleta de dados para este caso foram conduzidos por residentes locais, como pescadores atingidos.
É realmente possível fazer ouvir a voz do cidadão comum e, mais ainda, tornar-se um elemento importante, que faz a diferença, numa questão jurídica ambiental? Você pode nos contar sobre alguns casos?
É definitivamente possível, ainda mais em instâncias complexas onde as vozes das pessoas têm que enfrentar poderosos atores governamentais ou corporativos. Um de nossos estudos de caso é em Basilicata, região localizada no sul da Itália, que é um polo europeu de extração de petróleo. A presença de indústrias extrativas tem gerado ao longo do tempo impactos adversos no meio ambiente e na saúde das pessoas. Em um artigo científico sobre o caso, ilustramos como se desenvolveu o monitoramento cidadão na Basilicata. As comunidades locais são recursos de crowdsourcing e têm habilidades para produzir e compartilhar informações ambientais com cidadãos, autoridades e mídia. Essas atividades são instrumentos de “resistência”, são uma forma de moldar novos imaginários compartilhados e se tornar uma forma de reivindicar violações dos direitos humanos ambientais.
Há contextos mais favoráveis para o monitoramento cidadão? No Brasil, por exemplo, são muitos os municípios onde a população enfrenta problemas de saúde por falta ou ineficiência nos serviços de saneamento básico. Também tivemos grandes desastres ambientais, como o rompimento de uma barragem da Vale que matou 270 pessoas em janeiro de 2019. Sem contar o que vem acontecendo na Amazônia, com a contaminação dos rios em decorrência da mineração. Você conhece algum projeto de monitoramento cidadão em andamento no Brasil?
Afirmei no passado que o monitoramento ambiental cidadão pode ser uma forma de ‘cuidar’ de questões ambientais e de saúde pública compartilhadas, como as que você menciona em relação ao Brasil. Um caso específico do Brasil que descobri recentemente e que acho que pode motivar vários outros casos está relacionado ao derramamento de óleo na costa brasileira em 2019, onde pessoas comuns se empenharam em relatar evidências ambientais em apoio a especialistas que tratam do assunto, como mostrou uma matéria para o qual fui consultada.
Coleta de evidência de contaminação feita por residentes locais. Fonte: SensJus |
O que você mais observou sobre problemas de saúde decorrentes de questões ambientais? Eu sei que essa resposta muda dependendo do lugar sobre o qual estamos falando, mas é possível falar sobre questões mais frequentes?
Os problemas podem, de fato, variar substancialmente. Eles podem variar de problemas relacionados à poluição do ar que aumentam as condições asmáticas e outras doenças respiratórias à poluição sonora relacionada a problemas de infraestrutura, que pode causar distúrbios do sono. A contaminação química na água pode, por outro lado, pode causar doenças de pele e estômago e, com o tempo, também cânceres. O monitoramento ambiental cívico tem frequentemente lidado com esses tipos de doenças com casos que assumem diferentes formas em todo o mundo.
Você vem ao Brasil como palestrante convidada da RedPop. Como sua área de atuação e divulgação científica se encontram?
Uma das minhas maiores paixões é tornar meus argumentos científicos acessíveis às pessoas comuns por meio de abordagens de disseminação criativas e envolventes, como métodos visuais, performáticos e de contar histórias. Unir a dimensão jurídica aos estudos ambientais e pesquisar o assunto por meio de técnicas baseadas na arte tornam nosso trabalho inovador e diferente de outros projetos na área. Essa abordagem não convencional nos permitiu atingir diversos públicos, como comunidades de baixa alfabetização e migrantes. Como reconhecimento aos nossos esforços nesse sentido, recebi no ano passado o prêmio Science Engagement Breakthrough of the Year, da Falling Walls Foundation.
Apresentar temas de discussão por meio da arte atrai mais e facilita o entendimento de diferentes públicos? Você desenha?
Também gosto de ilustrar, e a graphic novel SensJus nasce do encontro entre meus esboços feitos durante a pesquisa de campo e a tradução do ilustrador em uma graphic novel completa. O uso de desenhos é para o projeto SensJus uma forma de envolver diversos públicos, provocando reações, mas também uma forma de divulgar nossos resultados de forma inclusiva e compreensível.
Ilustrações que integram a graphic novel sobre sentinela cidadã. Fonte: SensJus |
Qual a importância do diálogo entre as diversas áreas do conhecimento?
A inclusão de evidências e conhecimentos cívicos “de baixo”, juntamente com evidências oficiais para a aplicação da lei ambiental, pode trazer vários benefícios. Elas vão desde uma maior aproximação dos atingidos ao litígio, passando por uma maior disponibilidade de provas sobre assuntos críticos, até a possibilidade de até mesmo mitigar o conflito. No entanto, a legislação atualmente não regula explicitamente este tipo de provas e as práticas relacionadas, nem as instituições estão totalmente preparadas para abraçar estas formas de conhecimento, como abordo numa recente entrevista à revista Nature.
O que contribuiu para a sua decisão de atuar na área de direito ambiental e também para a escolha do seu tema de doutorado, sobre iniciativas de monitoramento e como elas podem influenciar a governança do risco ambiental à saúde?
Sempre senti uma forte ligação com o meio ambiente e a natureza que me rodeia. As florestas, os bosques, os campos, as montanhas sempre foram um local a preservar e um espaço seguro. Fiquei fascinada ao pesquisar como cada pessoa pode contribuir para preservar essa riqueza atuando como sentinelas cívicas, principalmente quando se depara com riscos como relata a experiência de minha tese de doutorado. Uma figura inspiradora para mim foi Pablo Fajardo, principal advogado do Sindicato dos Afetados pela Chevron-Texaco, com quem tive o prazer de trabalhar na floresta amazônica equatoriana em um caso famoso de contaminação por óleo. Com Pablo, aprendi a importância de ser um especialista e, ao mesmo tempo, permanecer acessível e próximo das pessoas.
É sua primeira visita ao Brasil? Você conhece o trabalho da Fiocruz, onde será realizada a RedPop? O que os participantes podem esperar da sua apresentação?
Esta é a minha primeira vez no Brasil. Conheci recentemente o trabalho da Fiocruz e estou ansiosa para conhecer mais! Os participantes da minha apresentação experimentarão uma mistura de emoções sensoriais, arte e envolvimento visual, bem como uma exploração dos destaques da minha pesquisa.