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O geneticista que botou a ciência na boca do trombone

Fundo Darcy Fontoura de Almeida, sob a guarda da COC/Fiocruz, reúne mais de 2 mil documentos, que jogam luz sobre trajetória de um dos fundadores da revista Ciência Hoje

Karine Rodrigues

29 ago/2025

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Três meses após o então presidente do Brasil, general Ernesto Geisel (1907-1996), ter determinado o fechamento do Congresso Nacional, em 1º de abril de 1977, seis mil pessoas sacudiram o campus da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), na 29ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira do Progresso da Ciência (SBPC). Realizado a contragosto do governo federal, que cortara a verba para a sua concretização, o evento foi viabilizado após uma ampla campanha de arrecadação de fundos. Acabou se tornando um marco na aproximação da entidade com a sociedade civil e acentuou o posicionamento crítico ao governo, em meio à ditadura instaurada com o golpe militar de 1964.  

Desde 1961 associado à SBPC que acolhia todas as áreas de pesquisa e pessoas interessadas em ciência e foi um espaço fundamental no processo de abertura democrática no país , o geneticista Darcy Fontoura de Almeida (1930-2014) fazia parte de um núcleo atuante de cientistas vinculados à Secretaria Regional da entidade do Rio. Eles defendiam uma gestão mais participativa e a promoção de um debate amplo sobre a ciência, atento às questões políticas, econômicas e sociais. Foi do chamado “Grupo do Rio” que partiu a ideia de se criar a revista Ciência Hoje, “um canal de comunicação entre a comunidade científica brasileira e o público”. De acordo com o projeto do que viria a se tonar uma das mais longevas e destacadas iniciativas de divulgação científica do país, a ciência escrita em letra maiúscula deveria “aparecer sempre ao leitor como algo mutável, e em construção, cuja realização dá lugar a resultados bem-sucedidos, mas também a erros e falhas”. 

Composto por três páginas impressas, manchadas pelo tempo e repletas de palavras grifadas e anotações à caneta, o projeto de 14 de dezembro de 1978, que traça os rumos da publicação, integra o Fundo Darcy Fontoura de Almeida, sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), que está aberto para consulta através da Base Arch.  Formado por 2.149 documentos, dos gêneros textual, iconográfico, sonoro, digital e tridimensional, o acervo expressa a múltipla trajetória do cientista, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos fundadores das revistas Ciência Hoje e Ciência Hoje para Crianças.  

Instituto de Biofísica da UFRJ: de estagiário a professor emérito 

A turma de Darcy que se graduou em Medicina, em 1954, na então Universidade do Brasil, atual UFRJ, está em peso no acervo, com nome e sobrenome. São vários os documentos que registram os caminhos do geneticista na instituição, a maioria, relacionados ao Instituto de Biofísica atualmente acrescido do nome Carlos Chagas Filho (1910-2000), seu fundador —, onde Darcy ingressou como estagiário de iniciação científica, em 1950, e construiu a sua carreira acadêmica: foi pesquisador associado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), livre docente, professor adjunto, professor titular e professor emérito. 

Instituto_Biofisica

Foi no Instituto de Biofísica que Darcy estreitou laços com o cientista Carlos Chagas Filho, de quem se tornaria grande colaborador e amigo. O caçula de Carlos Chagas (1878-1934), pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) — atual Fiocruz —, herdou do pai o amor pela ciência. Em 1945, criou o Instituto de Biofísica, que dirigiu até 1964, cargo ocupado mais adiante por Darcy. Fotografias, artigos, uma apostila sobre a reorganização da unidade e o material sobre o concurso para professor titular de biofísica celular, em 1983, entre vários outros itens, documentam esse período. 

Darcy foi também um dos pioneiros no país na área de genética de microorganismos. Em 2000, ele integrou o grupo que realizou o primeiro projeto genoma de abrangência nacional. O sequenciamento do genoma da bactéria Chromobacterium violaceum abriu caminho para a consolidação da genômica e da bioinformática no Brasil, com a criação do LabInfo, que faz parte do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A Unidade de Genômica Computacional do LabInfo recebeu o nome de “Darcy Fontoura de Almeida”, onde se produz sequenciamento genético de última geração e pesquisas relacionadas a genomas de vírus. 

O fundo reúne registros de quando o geneticista ocupou cargos em instituições científicas. Além de membro da Sociedade Brasileira de Genética (SBG) e da Diretoria e do Conselho da SBPC (1979-1983), integrou o CNPq— onde foi coordenador do Comitê Assessor de Genética (1986-1988) e membro do Conselho Deliberativo do CNPq (1988-1990) — e os conselhos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) (1987-1993) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (2000-2002). Foi ainda consultor científico da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). 

Igualmente importantes são os cadernos de apontamentos, com folhas quadriculadas, por ele intitulados “Umas e outras”, onde detalhava a sua participação em defesas de teses, aulas e reuniões e eventos diversos, e colava recortes de jornais sobre assuntos relacionados à ciência, cultura e política, entre outros temas. 

“Declaramos guerra ao ministro”, diz Darcy, sobre crise no CNPq 

Em um telegrama datado de 30 de novembro de 1988, Darcy, o parasitologista Erney P. de Camargo (1935-2023), o físico Igor G. Pacca, o matemático Jacob Palis (1940-2025) e a antropóloga Maria Manuela Carneiro da Cunha, à época representantes da comunidade científica no Conselho Deliberativo do CNPq, declinam o convite para uma reunião extraordinária com o engenheiro Ralph Biasi (1947-2017), então ministro da Ciência e da Tecnologia. Justificam a ausência afirmando que o conselho precisaria antes “recuperar de direito suas atribuições deliberativas”.  

As atividades de um pesquisador, sobretudo em um país em desenvolvimento, não devem se restringir a trabalhos experimentais no laboratório e à comunicação de resultados a seus pares

Darcy Fontoura de Almeida

Cientista

Carta_Jose_Reis

A saída dos cientistas do Conselho Deliberativo do CNPq fora decidida em assembleia, no fim de outubro daquele ano, em resposta ao decreto assinado pelo então presidente José Sarney na véspera da promulgação da nova Constituição brasileira. A resolução reforçava o poder do ministro e retirava atribuições do órgão colegiado, como participar de decisões relacionadas à distribuição de verbas, nomeação de diretores e a transferência ou criação de institutos de pesquisa, vetando a participação dos cientistas em etapas relevantes na formação da política científica nacional. “Declaramos guerra ao ministro”, diz Darcy, em uma das diversas reportagens publicadas sobre o caso, presentes no fundo.  

Entre os recortes de jornais e revistas que o geneticista guardou, estão entrevistas com o cientista Luiz Hildebrando Pereira da Silva (1928-2014), um dos maiores especialistas do mundo em malária, cassado pela ditadura, pesquisador do Instituto Pasteur, em Paris, e pesquisador honorário da Fiocruz; Carlos Chagas Filho e Roberto Freire (1927-2008), psiquiatra e escritor. Um vistoso livro de capa dura verde, com o título Shanghai Second Medical University em letras douradas se destaca entre os documentos. Juntamente com uma brochura sobre decisões do Comitê Central do Partido Comunista da China a respeito da reforma do sistema de ciência e tecnologia, marca a passagem de Darcy pela República Popular da China, como integrante de uma missão científica, detalhada em relatório relativo ao período de 23 de novembro a 4 de dezembro de 1986. 

Durante a ditadura, Darcy foi preso por ter acolhido Fernando Gabeira 

Em 1972, o cientista, que não tinha filiação partidária, chegou a ser preso e levado para depor, em razão de ter acolhido um militante perseguido pela ditadura em seu apartamento na Urca, em 1969. Em entrevista à Ciência Hoje, em edição publicada em 2009, contou que costumava dar guarida a quem, como ele, se opunha ao regime militar. E detalhou a prisão: 

“Certa vez, uma amiga pediu para eu receber em casa uma pessoa que estava em situação muito difícil e que, segundo ela, era mais ‘barra-pesada’. Morava sozinho nessa época e disse que poderia hospedá-la, mas, como sempre, só por alguns dias. Era [o jornalista] Fernando Gabeira [militante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8]. Isso foi depois do famoso sequestro do embaixador norte-americano [Charles Burke Elbrick]. Sua foto já tinha aparecido várias vezes nos jornais. Ele ficou uma semana em minha casa e sequer saía à janela. Vinha para a sala fazer as refeições comigo e voltava para o quarto. Dias depois a moça voltou e o levou embora”. 

Darcy_Fontoura

A divulgação científica surge em dezenas de documentos do Fundo Darcy Fontoura de Almeida, entre eles, o Guia prático para ‘camelôs’ e ‘bailarinas’ – Debate sobre jornalismo científico, fruto do primeiro curso de Especialização em Divulgação Cientifica do país, ministrado pela Universidade de Brasília (UnB), em 1988, com apoio do CNPq. Boa parte do material remete à Ciência Hoje, criada por Darcy e três outros integrantes do combativo Grupo do Rio: o neurocientista Roberto Lent, também do Instituto de Biofísica da UFRJ; e os físicos Alberto Passos Guimarães (1908-1993), do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), e Ennio Candotti (1942-2023), da UFRJ.  

Há uma vasta documentação sobre o processo de desenvolvimento da revista: definição de seções, prováveis temas e autores para edições; tiragens, gastos e as dificuldades para editá-la — embora o projeto seja de 1978, Ciência Hoje foi lançada em 1982, após um aporte financeiro do CNPq. A iniciativa foi adiante e deu “crias”: em 1985, o Informe Ciência, depois intitulado Jornal da Ciência; no ano seguinte, Ciência Hoje para Crianças. Jornalistas também participaram das iniciativas, entre eles, José Monserrat Filho (1939-2024), e Luísa Massarani, professora do Programa de Pós-Graduação em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde (COC/Fiocruz) e coordenadora do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT). 

Em 2009, Darcy resumiu o que o norteava: “As atividades de um pesquisador, sobretudo em um país em desenvolvimento, não devem se restringir a trabalhos experimentais no laboratório e à comunicação de resultados a seus pares. Compete-lhe também divulgar esses dados por meio do ensino e de todos os meios de comunicação disponíveis. Só assim sua contribuição poderá alcançar eficiência máxima, influenciando a trajetória da ciência no país”.