Arte: Silmara Mansur. |
Por Karine Rodrigues
Aos 23 anos, Henry Walter Bates, naturalista sem formação acadêmica, partiu para uma expedição na Amazônia. De família de classe média baixa, contava com poucos recursos financeiros para a missão, assim como seu companheiro de viagem, Alfred Russel Wallace, também um jovem desconhecido no meio científico britânico. Em 26 de abril de 1848, eles embarcaram no porto de Liverpool, na Inglaterra, rumo à maior reserva de biodiversidade do planeta. Eram os únicos passageiros a bordo do pequeno navio mercante Mischief.
A história das ciências foi por muito tempo uma história das teorias que venceram, dos autores das grandes teorias, das grandes equações, das grandes observações. Então, Darwin, nessa história do evolucionismo, vira o grande protagonista. O Bates vira um pouco coadjuvante
Após cerca de seis meses no Brasil, cada um seguiu um caminho. A temporada de Wallace durou quatro anos. Bates permaneceu por 11 anos, e, a julgar pelo livro de viagem de 774 páginas que lançou em 1863, The naturalist on the river Amazons, ele aproveitou cada minuto da longa estadia na região. A obra, aclamada, é reeditada até hoje.
Além de coletar espécimes de aproximadamente 14 mil espécies brasileiras, sendo cerca de oito mil inéditas na Europa, Bates propôs o que ficou conhecido como mimetismo batesiano, prova observável do funcionamento da seleção natural.
Ao investigar borboletas na natureza, durante uma de suas excursões à floresta amazônica, ele identificou uma analogia física entre espécies diferentes, fundamental para a teoria de Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace. Observou que para enganar predadores, as espécies mais palatáveis imitavam cores e padrões daquelas identificadas como perigosas, aumentando, assim, suas chances de sobrevivência. Essas características seriam repassadas aos descendentes. O mimetismo seria, portanto, uma das formas de adaptação responsáveis pela transformação das espécies ao longo do tempo.
Bates realizou também um trabalho fenomenal em Entomologia, válido até hoje, segundo os aspectos do conteúdo científico. Durante os 27 anos em que foi secretário da Royal Geographical Society, ele conseguiu equilibrar as rotinas burocráticas do cargo e as investigações na área, escrevendo sobre insetos do mundo inteiro.
As andanças de Bates na Amazônia atraíram a atenção do pesquisador Anderson Pereira Antunes. Além da longa duração da expedição científica empreendida pelo britânico, chamava atenção o reconhecimento aquém do merecido que a historiografia das ciências reservara ao naturalista de Leicester.
Na historiografia das ciências, novos olhares são necessários
Por que, apesar de suas valiosas contribuições, a historiografia das ciências reservou a Bates um papel secundário, enquanto os holofotes se voltavam para Darwin e Wallace?
Segundo Antunes, contribuiu o fato de o naturalista nascido em Leicester, na Inglaterra, ser uma espécie de outsider, considerando o perfil dos indivíduos que faziam parte dos círculos científicos na Inglaterra Oitocentista, dominados por origens aristocráticas. Também contou negativamente ele ter sido defensor de primeira hora da teoria evolucionista de Darwin e Wallace, tema de grandes embates à época. O British Museum, por exemplo, onde Bates sonhava trabalhar, tinha posição oposta em relação ao que defendia o autor de “A origem das espécies”, lançado em 1859.
Ilustrações estão no livro de viagem de Bates, intitulado 'The naturalist on the River Amazons'.
Há, porém, outra razão que ajuda a compreender o lugar ocupado por Bates, avalia Antunes: “A história das Ciências foi por muito tempo uma história das teorias que venceram, dos autores das grandes teorias, das grandes equações, das grandes observações. Então, Darwin, nessa história do evolucionismo, pelo menos na segunda metade do século 19, vira o grande protagonista. E o Wallace, por ter apresentado o artigo científico junto com o Darwin, também adquire um papel grande. O Bates vira um pouco coadjuvante”.
Segundo o pesquisador, é importante se investigar também a história do cotidiano científico, dando espaço não apenas para os resultados, mas para os caminhos percorridos para alcançá-los. “O apaixonante na História é que ela nunca acaba. Podemos voltar a um tema, a um período, uma fonte histórica com um novo olhar, novas perguntas, novos objetivos”, ressalta.
Aficionado por viajantes oitocentistas desde 2012, quando fez especialização em Divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e investigou a iconografia produzida por cientistas em expedições científicas no Brasil, no século 19, Antunes percebeu a presença de outros personagens nas ilustrações, além dos cientistas.
As cenas não estariam em desacordo com o imaginário sobre os naturalistas viajantes, em geral retratados como desbravadores solitários que enfrentam destemidamente os reveses das expedições por regiões remotas do planeta?
A resposta, Antunes encontrou no mestrado e no doutorado em História das Ciências e da Saúde, realizados na Casa de Oswaldo Cruz. Em ambas investigações, analisou a sociabilidade na atuação dos naturalistas viajantes, sob orientação de Luisa Massarani e coorientação de Ildeu de Castro Moreira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Colaboradores essenciais, mas invisíveis
Autor da dissertação A rede dos invisíveis: uma análise dos auxiliares na expedição de Louis Agassiz ao Brasil (1865-1866), no doutorado, concluído em 2019 após um período sanduíche no Departamento de História do King’s College London, no Reino Unido, Antunes enfocou as relações de Bates com diferentes grupos durante a permanência dele no Brasil, especialmente, com habitantes locais. Queria descobrir de que forma eles colaboraram para o êxito da jornada exploratória do naturalista.
O naturalista nunca esteve sozinho. O interessante é tentar ver como se davam as relações e como o conhecimento se forma a partir delas. A ciência é produzida por meio dessas relações. Ela não existe num vazio. Faz parte de um conjunto complexo de elementos
“Observar como se davam estas interações é uma forma de compreender melhor a sociabilidade inerente ao trabalho naturalista de campo e de chamar atenção para uma complexa rede de indivíduos geralmente tornados invisíveis nas narrativas sobre as grandes viagens científicas do século 19, mas frequentemente mencionados pelos próprios naturalistas em seus relatos de viagem por suas constantes colaborações”, escreve na tese Um naturalista e seus colaboradores na Amazônia: a expedição de Henry Walter Bates ao Brasil (1848-1859).
Em uma minuciosa análise em fontes primárias, em especial a primeira edição do livro de viagem do naturalista, além de cadernos de campo, correspondências pessoais e periódicos da época, Antunes identificou 221 indivíduos mencionados por Bates. Com isso, conseguiu formar a rede constituída pelos principais indivíduos com quem o naturalista britânico esteve em contato durante a expedição ao Brasil.
Além dos destinatários de suas cartas, entre os quais o próprio Darwin, e o agente Samuel Stevens (1817-1899), que vendia os espécimes enviados pelos viajantes para a Inglaterra, Bates travou contato com personagens de destaque na hierarquia brasileira e populações locais, formadas por indígenas, escravos e libertos e ribeirinhos. Segundo ele, a participação dos habitantes locais está presente na descrição das atividades diárias de exploração, das incursões pelas florestas, da caça e captura dos espécimes.
Nos escritos de Bates, as contribuições das culturas nativas
“O naturalista nunca esteve sozinho. E nem também os indígenas, os escravos, as populações ribeirinhas viviam ali sem contato com os estrangeiros que, de repente, apareciam na região. O interessante é tentar ver como se davam essas relações e como o conhecimento se forma a partir delas. A ciência é produzida por meio dessas relações. Ela não existe num vazio. Faz parte de um conjunto complexo de elementos”, enfatiza Antunes.
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O naturalista britânico Henry Bates. |
Em sua investigação, o pesquisador percebeu que o britânico estreitou os laços com os habitantes locais com o passar do tempo e, especialmente, a partir do aprendizado de idiomas. Além do português, aprendeu a língua geral, usada na época entre os índios catequisados. Assim sentia-se mais à vontade para dispensar mediadores externos e interagir diretamente com as camadas populares locais.
O fato de contar com poucos recursos financeiros para a empreitada no Brasil, ao contrário do que ocorreu com naturalistas como Agassiz, que veio ao país já com o reconhecimento internacional como professor da Universidade Harvard e bancado por um mecenas, também ajuda na compreensão das relações mantidas por Bates. Ele precisava criar laços para preparar a estrutura necessária a expedição.
No caso dos indígenas, por exemplo, o conhecimento que possuíam sobre a natureza local e os hábitos das espécies da região foram essenciais a Bates. Eles surgem em vários momentos da expedição, em atividades como caça e coleta de espécimes, navegação dos rios e deslocamentos pela floresta.
Ainda assim, é possível encontrar relatos contraditórios de Bates sobre os indígenas. Há momentos em que são tidos como desinteressados; em outros, elogiados pelo conhecimento que demostravam sobre a região.
Análise de redes favorece observação dos vínculos
Após a investigação dos textos, que comprovam a importância dos colaboradores locais de Bates no Brasil, Antunes usou a análise de redes sociais, método que favorece a observação dos vínculos estabelecidos entre os indivíduos em um determinado grupo. Com o uso do Gephi, platatorma livre de visualização gráfica, ele produziu gráficos que detalham a rede de colaboradores do naturalista britânico. Com a análise da rede social, explica Antunes, o centro da pesquisa se desloca do nível biográfico individual para as interações dentro do grupo.
Por meio dos relatos dos viajantes, podemos aprender muito sobre os povos indígenas que habitavam a Amazônia, sabendo entender o relato do viajante dentro do contexto em que ele produzido
“O foco no plural, ao invés do singular, permite considerar as características específicas dos momentos de interação que conectam os participantes de uma rede e analisar o momento não naquilo que significou para apenas um indivíduo, mas para toda uma comunidade”, destaca na tese, apontando para a importância de o historiador dominar algumas ferramentas digitais, que auxiliam também na divulgação da pesquisa.
Perguntado se é possível contar a história das expedições científicas a partir do olhar dos habitantes locais, Antunes frisa as dificuldades de tamanha empreitada, em decorrência da metodologia de trabalho dos historiadores.
“Conseguimos, por meio das fontes escritas pelos naturalistas, aprender sobre indígenas, escravos, populações locais, mas, de certa forma, estamos sempre presos à narrativa do naturalista. Então, a falta de fontes escritas pelos indígenas, por exemplo, é um desafio de pesquisa muito grande. Por meio dos relatos dos viajantes, podemos aprender muito sobre os povos indígenas que habitavam a Amazônia, sabendo entender o relato do viajante dentro do contexto em que ele produzido, entender dentro da biografia do viajante, o que é aquele relato, o que ele representa, em que momento da carreira ele foi escrito”, avalia.
Atualmente bolsista do Programa de Capacitação Institucional no Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), no Rio de Janeiro, Antunes segue com os viajantes naturalistas e seus colaboradores na cabeça. E já vislumbra até um novo tema de investigação.
“Tenho vontade de juntar os relatos de alguns viajantes sobre os indígenas que estiveram na região Amazônica – só o Bates fala de 22 povos indígenas diferentes – e, a partir disso, produzir um mapa da ocupação indígena naquela época e, depois, comparar com a ocupação atual. Pode ser interessante, né?”, pergunta. Alguém duvida?