Entre 300 e 500 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo têm malária, provocada por protozoários do gênero Plasmodium, parasitas transmitidos pela picada do mosquito Anopheles. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), essa é a doença infecciosa que afeta o maior número de pessoas, provocando algo em torno de um milhão de mortes por ano, duas vezes mais do que a Aids.
Essas informações constam da carta de Jaime Benchimol aos leitores do número 18(2) de História, Ciências Saúde – Manguinhos, que inclui um dossiê sobre a história da malária, cujos artigos originais “enfocam principalmente o Brasil numa perspectiva internacional, e isso constitui o traço mais original dos trabalhos”, ressalta o editor. A revista já seguiu para os assinantes e os textos completos estão disponíveis gratuitamente em sua versão online no portal SciELO.
Alguns trabalhos publicados agora na revista foram apresentados na Fundação Oswaldo Cruz, em abril de 2007, durante o seminário “Henrique Aragão e a pesquisa sobre a malária: 100 anos da descoberta do ciclo exoeritrocítico da malária”. Após um século, profissionais discutiram a evolução dos estudos sobre essa doença infecciosa que representava “um dos principais desafios à medicina tropical na época em que ela se instituía como campo científico, em fins do século XIX”, como Benchimol destaca no editorial da revista.
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Dossiê contém artigos e depoimentos inéditos, além de documentos históricos
Autora de um dos artigos, a organizadora do seminário Magali Romero Sá analisa as origens e os desdobramentos da descoberta de Henrique Aragão, um dos pesquisadores do Instituto de Manguinhos no início do século 20.
Pesquisadora da Casa, Magali conta que o resultado da pesquisa de Henrique Aragão foi recebido com entusiasmo pelos participantes do Congresso de Berlim “como
contribuição importantíssima aos estudos sobre a evolução do parasito da malária em seus hospedeiros vertebrados”. Foi publicado nas revistas científicas Brazil-Médico, em 1907, e depois no Archive für Protistenkunde.
Neste artigo, Magali retoma vários aspectos do cotidiano institucional no início do século 20, como por exemplo o fato de o nome do centro de pesquisa mudar em 1908. O Instituto Soroterápico Federal passou a se chamar Instituto Oswaldo Cruz, no momento em que se inauguravam alguns dos prédios do centro histórico e se construía o castelo mourisco do campus de Manguinhos, ao mesmo tempo em que a agenda institucional foi se ampliando e diversificando.
Naqueles primeiros anos de atividades, os profissionais já faziam pesquisas em microbiologia e zoologia, dedicavam-se à produção de soros, vacinas e produtos biológicos para a medicina humana e veterinária, e ainda davam aulas nos cursos de especialização em bacteriologia e medicina tropical. Os alunos eram médicos e trabalhavam em laboratórios e na saúde pública, visando combater doenças.
Magali também explica que a ampliação de atividades e mudanças ocorridas no centro de pesquisa em saúde pública, medicina experimental, produção de imunobiológicos e ensino médico foram desdobramentos resultantes das campanhas de saneamento, da luta contra a febre amarela, peste bubônica e varíola, coordenadas por Oswaldo Cruz na capital brasileira.
A participação dos pesquisadores do Instituto no 14º Congresso Internacional de Higiene e Demografia e na Exposição de Higiene, em Berlim, em 1907, trouxe ainda mais prestígio às atividades desenvolvidas no campus de Manguinhos. Tudo isso ajudou a convencer a opinião pública internacional de que não seria mais necessário fugir do Rio de Janeiro, uma cidade conhecida por provocar tantas doenças.
Outro artigo do dossiê é “Malaria epidemics in Europe after the First World War: the early stages of an international approach to the control of the disease”, em que Gabriel Gachelin e Annick Opinel, pesquisadores do Instituto Pasteur de Paris, discutem os relatórios e as diretrizes da Comissão de Malária. Formada em 1923 pela Comissão de Higiene da Liga das Nações, o objetivo era evitar que a doença se espalhasse pela Europa durante e depois da 1ª Guerra Mundial.
Vários dos artigos incluídos no dossiê foram submetidos à publicação, entre eles o de Juliana Manzoni Cavalcanti, doutoranda do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da COC, em co-autoria com Marcos Chor Maio. Eles comparam estudos sobre a anemia falciforme, publicados no Brasil nas décadas de 1930 e 1940, com a literatura internacional.
Renato da Silva, da Universidade Unigranrio, e Gilberto Hochman, da Casa de Oswaldo Cruz, escrevem sobre a ascensão e queda de um método de combate à malária concebido no Brasil, na década de 1950, por Mario Pinotti: o sal de cozinha misturado à cloroquina foi aplicado em áreas bem amplas durante a campanha de erradicação da malária coordenada pela OMS.
Pesquisadora do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Ivone Manzali de Sá analisa a resistência do plasmódio aos quimioterápicos, e dos mosquitos transmissores da malária ao DDT. Formada em farmacologia e botânica, ela verifica pesquisas científicas voltadas para a obtenção de novos anti-malariais entre as décadas de 1960 e 1980 nos EUA e na China.
Manzali de Sá lembra que o modelo de medicamento norte-americano foi suplantado pelo da China, que adotou linha de pesquisa que agregava o conhecimento tradicional, baseado em plantas medicinais, partindo para o desenvolvimento da nova referência de droga antimalarial, no final dos anos 1980.
Outro trabalho escrito a quatro mãos, “O medo do sertão: a malária e a Comissão Rondon (1907-1915)”, de Arthur Torres Caser, mestre em história das ciências e da saúde pela COC, em parceria com a pesquisadora Dominichi Miranda de Sá, é uma análise do impacto da malária sobre a saúde de quem trabalhava visando instalar as linhas telegráficas nos estados de Mato Grosso, Rondônia e Amazonas, onde a doença era endêmica.
Mestrando da Casa de Oswaldo Cruz, André Vasques Vital tece comentários na seção “Fontes”, a um artigo do médico Joaquim Tanajura, chefe do serviço de saúde da Comissão Rondon, que foi publicado em junho de 1911 no Jornal do Commercio de Manáos. Tanajura falava do abandono dos sertões brasileiros, recém desbravados por pesquisadores de Manguinhos em expedições científicas.
Um depoimento e uma entrevista fecham o dossiê: a médica Ruth Sontag Nussenzweig, que desenvolve pesquisas na New York University School of Medicine visando desenvolver uma vacina contra a malária fala sobre seu trabalho iniciado na década de 1960. Professor de história da medicina na Johns Hopkins University, Randal M. Packard traça sua trajetória profissional, de pesquisador e editor científico, em entrevista a Magali Romero Sá, Gilberto Hochman e Jaime Benchimol.
A capa da revista é uma foto do arquivo Fundação Rockefeller, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, que mostra um guarda do Serviço de Malária do Nordeste espalhando veneno nas areias do município de Aracati, no Ceará, que ficou famoso pela praia de Canoa Quebrada.
Além do dossiê temático, este número da revista inclui ainda cinco artigos originais sobre vários assuntos. O de Beatriz Teixeira Weber analisa as estratégias da Liga Homeopática do Rio Grande do Sul em 1940-50, que atendia a população de Porto Alegre e publicou um boletim até 1970. Dois professores universitários da Colômbia, M. Fernanda Vasquez, de Antioquia, e Hilderman Cardona, de Medelin, escrevem artigo em que mostram como os médicos do final do século 19, início do século 20, associavam as doenças deformantes às influências do clima.
Uma análise do controle médico-esportivo no Departamento de Educação Física do estado de São Paulo entre as décadas de 1930 e 1940s é feita pela professora da UFMG Ana Carolina V. Gomes e André Dalben, doutorando em educação da Unicamp.
Em “Fabricando o soldado, forjando o cidadão”, o doutorando da Casa de Oswaldo Cruz Carlos Leonardo Bahiense da Silva e o professor da pós-graduação em história do Ifics/UFRJ, Victor Andrade de Melo, analisam o trabalho do médico Eduardo Augusto Pereira que, em 1867, foi dos primeiros a defender a importância da educação física no preparo do soldado e do cidadão.
Marta de Almeida analisa a proposta de criação da disciplina voltada ao ensino da medicina tropical na Faculdade de Medicina da América Latina, em Lima, Peru, em 1913. A pesquisadora do Mast estuda o desempenho dos médicos Julian Arce, peruano e do brasileiro Carlos Chagas, os dois dedicados à medicina tropical. Na revista há ainda resenhas de alguns livros publicados recentemente, cujos assuntos relacionam-se com abordagens variadas da história das ciências.