Fiocruz
Webmail FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

Fiocruz preserva acervo de José Rodrigues Coura, referência no estudo da doença de Chagas

Premiado pesquisador emérito da Fiocruz também se destacou na formação de gerações de infectologistas e parasitologistas

Karine Rodrigues

14 abr/2023

Em um pequeno caderno brochura, as letras que descrevem o dia 22 de julho de 1995 pedem certo esforço de decifração: “Saímos às 13 hs para o Igarapé piaçabal do Bigorna. Travessias e lagos muito lindos. Depois de termos nos perdido (prático Bernardino, piaçabeiro do Bigorna) por uns 15 minutos, reencontramos o caminho e chegamos às 17hs. Às 18 hs, fomos para o piaçabal que fica a mais ou menos 1500/2000 metros do acampamento. Trajeto difícil; o igarapé tinha enchido e as “pontes” estavam inundadas com grande dificuldade na travessia. Depois de pegar alguns barbeiros, voltamos às 23h30 para o acampamento”, registrou José Rodrigues Coura (1927-2021), pesquisador emérito da Fiocruz, durante sua 5ª Expedição Científica ao Amazonas, iniciada havia pouco mais de duas semanas.

 “A descoberta da doença de Chagas não foi obra do acaso como alguns imaginam. Foi o resultado da observação arguta e da aplicação do método científico por quem estava profundamente capacitado a fazê-lo: um cientista, profundo conhecedor da medicina em geral, da patologia e da protozoologia em particular.

As pesquisas realizadas na região pelo infectologista, uma das principais referência em medicina tropical no país, lançaram uma nova luz sobre a doença de Chagas no Brasil. Foi lá que, em 1991, no município de Barcelos, Coura verificou a contaminação em alto grau dos piaçabeiros, assim chamadas as pessoas que trabalham na colheita da fibra da palmeira pia’sawa, que, em tupi-guarani significa planta fibrosa. Além da investigação, que constatou a presença do inseto popularmente conhecido como barbeiro, hospedeiro do Trypanosoma cruzi, protozoário transmissor da doença, nas fibras colhidas pelos trabalhadores, o médico e pesquisador também ajudou a tratar os infectados.

O arquivo de Coura, doado pela família à Casa de Oswaldo Cruz, traz inúmeros outros documentos textuais e iconográficos de relevância para os estudos sobre o agravo, que, em 2019, foi incluído no calendário mundial da Saúde. Naquele ano, após grande mobilização, especialmente do Brasil, foi aprovada resolução durante assembleia da Organização Mundial da Saúde (OMS) para instituir o 14 de abril como Dia Mundial da Doença de Chagas. Criada para ampliar a conscientização sobre a enfermidade, a data remete ao dia em que, em 1909, Carlos Chagas (1879-1934), pesquisador do então Instituto Oswaldo Cruz (IOC), atual Fiocruz, descreveu o primeiro caso clínico da doença, em Lassance, Minas Gerais.

Em artigo na Nature, alerta sobre a expansão da doença para outras Américas 

Segundo dados da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), a doença de Chagas é endêmica em 21 países das Américas, onde, anualmente, surgem 30 mil novos casos e ocorrem em torno de 10 mil mortes. Embora seja curável se o paciente tomar as drogas adequadas no início da infecção na fase aguda, a taxa de detecção da enfermidade é inferior a 10%. Estima-se que maioria dos infectados, mais de 6 milhões, estejam na América Latina. Considerada uma doença negligenciada, a enfermidade permanece uma ameaça à saúde pública, em razão da existência de casos agudos em mais de 50% das microrregiões brasileiras, segundo estudo da Fiocruz Bahia, publicado em 2020, no periódico PLOS Neglected Tropical Diseases.

Em maio de 2019, após o anúncio da OMS, Coura falou sobre a importância do feito em entrevista ao IOC. “Estabelecer o Dia Mundial da Doença de Chagas é bom porque chama atenção para o agravo. A OMS tem dias para muitas doenças, e Chagas era esquecida por ser uma infecção limitada à América Latina. Foi um escândalo quando publiquei um artigo com Pedro Albajar chamando atenção para a presença da doença em países de primeiro mundo e a necessidade de medidas para conter o risco de transmissão por transfusões de sangue e doações de órgãos”, declarou à época, referindo-se ao estudo Chagas disease: a new worldwide challenge, publicado na revista Nature, em 23 de junho de 2010. 

Sobre o infectologista, Magali Romero Sá, Vice-diretora de Pesquisa e Educação da Casa de Oswaldo Cruz, disse que ele se destacou como um dos mais importantes cientistas da medicina tropical: “O professor Coura, além de suas inúmeras atividades de pesquisa e ensino e em diferentes instituições, foi editor de duas importantes revistas da área: a Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Ele também atuou na área de gestão, como Vice-presidente de Pesquisa da Fiocruz e foi duas vezes diretor do IOC. Ele era muito humano e muito querido por todos. Formou muita gente”.

São inúmeros os registros sobre a doença de Chaga no material sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz. Além de estudos sorológicos, projetos de pesquisa, artigos, livros, fotografias, há relatos que revelam como o infectologista passou a se interessar pelo assunto. No texto Carlos Chagas – uma visão científico-afetiva, escrito por ocasião da comemoração do centenário do cientista, Coura volta à época quando, aluno do 6º ano de medicina e interno do Serviço Luiz Feijó, no Hospital Moncorvo Filho, fez uma revisão manuscrita sobre a enfermidade, na qual resume 58 casos que vira no laboratório entre os anos de 1956 e 1957. “De tudo o que eu havia encontrado naqueles 58 casos de doença de Chagas estava descrito nos clássicos trabalhos de Carlos e Evandro Chagas. Foi também naquele momento que decidi continuar estudando a doença de Chagas, mesmo antes de entrar para a Cadeira de Doenças Tropicais como Instrutor de Ensino”, escreve Coura, no texto que integra o livro de memórias Momentos de ontem e de sempre. 

Mais adiante, descreve a importância do trabalho de Carlos Chagas: “A descoberta da doença de Chagas não foi obra do acaso como alguns imaginam. Foi o resultado da observação arguta e da aplicação do método científico por quem estava profundamente capacitado a fazê-lo: um cientista, profundo conhecedor da medicina em geral, da patologia e da protozoologia em particular. Muitos poderiam ter visto o mesmo quadro e não o souberam interpretar e estou certo de quem muitos o vira antes, mas dele não se aperceberam por não terem os conhecimentos básicos para fazê-lo. As descobertas não se fazem por acaso; o acaso é que encontra pessoas capacitadas a interpretar os fenômenos corretamente”.

Além da pesquisa de campo, referência para gerações de médicos 

Ao falar sobre a sua trajetória, Coura enfatizava a sua atuação na formação de quadros. O infectologista organizou e coordenou o primeiro curso de pós-graduação da área médica no Brasil, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1970, sobre Doenças Infecciosas e Parasitárias. Na década seguinte, fez o mesmo no Instituto Oswaldo Cruz, com um curso sobre Medicina Tropical. Formou mais de 200 mestres e doutores. “O que eu fiz de melhor foi formar gente competente. Espalhei profissionais em doenças infectocontagiosas do Rio Grande do Sul ao Amazonas”, disse ele, então chefe do Laboratório de Doenças Parasitárias do IOC, em entrevista concedida à revista Pesquisa Fapesp, publicada em janeiro 2013. Na ocasião, fora reconhecido, na categoria Medicina, com o Prêmio Conrado Wessel, concedido a profissionais por sua excelência científica aliada à eficácia social. No ano seguinte, também em reconhecimento às suas contribuições, recebeu a Ordem Nacional do Mérito Científico, concedida pela Presidência da República. 

Coura foi igualmente destaque na produção científica. Também professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), seu nome está na lista de pesquisadores com maior impacto de citações ao longo da carreira, no período de 1960 a 2019, e também exclusivamente em 2019, revela artigo publicado na revista científica internacional Plos Biology sobre o impacto da produção científica a partir das citações – número de vezes em que os estudos são referenciados em outras publicações. De 1961 a 2020, o infectologista publicou 279 trabalhos no Brasil e do exterior, além de nove livros e 57 capítulos em obras de sua especialidade. Em 2006, ganhou o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, com a publicação Dinâmica das doenças infecciosas e parasitárias.  

O arquivo pessoal do infectologista, que ainda não está disponível para consulta pública, reúne também uma série de objetos que expressam o reconhecimento pela destacada trajetória do infectologista, além de documentos sobre a primeira infância em Taperoá, no sertão da Paraíba, imortalizada por Ariano Suassuna na obra O auto da compadecida. Coura e o autor, aliás, são contemporâneos. Nasceram com apenas um dia de diferença, em junho de 1927. Suassuna foi morar com a família em Taperoá em 1933, onde permaneceu por quatro anos e depois foi para Recife. Durante esse período, os dois teriam convivido, segundo Coura, que registrou, em uma caderneta, suas impressões durante viagem à cidade, em setembro de 2014. 

“Que decepção. A ponte velha abandonada, o Rio Taperoá seco, embora estivesse chovendo. Visitei rapidamente a cidade e tirei fotografias da Câmara dos Vereadores, que tinha sido a mercearia do meu avô, José Rodrigues Coura’, escreveu, em oito de setembro, o paraibano, que, aos 19 anos, com parcos recursos, veio sozinho para o Rio para dar continuidade aos estudos.

O nome estampado na cópia do boletim no Ginásio Diocesano de Patos aparece incontáveis vezes no arquivo: na carteira de trabalho de 1967, ao lado da fotografia de jovem imberbe; no artigo de jornal sobre bioterrorismo, no livro de ata da Assembleia de Fundação da Sociedade Brasileira de Medicinas Tropical, realizada em 17 de novembro de 1962, no edifício da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em São Paulo. Na ocasião, também foi eleita a primeira diretoria da entidade. Coura se tornou secretário, numa gestão presidida por José Rodrigues da Silva (1911-1968), referência nos estudos sobre doenças infecciosas, e seu orientador no doutorado. Em um pedaço de papel encontrado dentro de uma caderneta onde esboçou parte de suas memórias, está escrito: “Anos, dias, minutos, segundos. Viva a sua vida. Ela é curta!”. Coura viveu até os 93 anos e deixou um legado ímpar.