Fiocruz
Webmail FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

Na geografia da ciência brasileira no exterior, por onde circulam os pesquisadores da área de história?

20 abr/2022

Artigo em HCS-Manguinhos aponta Paris e Lisboa como capitais internacionais da historiografia nacional e revela que os países de destino não se distinguem dos de outras áreas 

Arte: Silmara Mansur

Ilustração: Dois políticos, um de antigamente e outro de hoje, discursam em púlpitos em frente a um rio poluído

Por Karine Rodrigues

Por onde circularam, nas últimas duas décadas, os pesquisadores brasileiros da área de história no cenário internacional? Artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), apresenta os resultados de um levantamento baseado nos registros anuais de bolsas de doutorado sanduíche e de pós-doutorado concedidas entre 1998 e 2017 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Toda política estatal de 'brain circulation' pressupõe em alguma medida uma polícia e um controle das fronteiras epistêmicas

Para Marlon Salomon, da Universidade Federal de Goiás (UFG), que assina o texto com Marcelo de Souza Magalhães, da UniRio, o levantamento pode ajudar na compreensão de uma faceta negligenciada sobre os processos de circulação internacional de tradições e tendências teórico-metodológicas: 

Newsletter: inscreva-se e receba conteúdos como este quinzenalmente

“As investigações sobre internacionalização, na área de história, trazem, em geral, análises sobre a importação e a aclimatação de historiografias, de teorias, de conceitos, de autores, de tendências de pesquisa no Brasil. Queremos entender não como as teorias ou os conceitos vêm de fora e passam a ser usados internamente, mas como os nossos pesquisadores e estudantes são formados fora e em que países e instituições. Isso talvez permita pensar se é possível estabelecer relações entre a aclimação de certas teorias ou autores no país, e essa circulação no exterior”, detalha Salomon.


    Marlon Salomon, em frente a uma estante de livros
    Salomon, um dos autores do artigo. Foto: Arquivo pessoal.
 

O mapeamento revela que estudantes e pesquisadores da área se encaminharam, preferencialmente, para quatro destinos: Portugal, França, Estados Unidos e Espanha. Um em cada três historiadores brasileiros foram para Paris ou Lisboa, que podem, por essa razão, serem consideradas as capitais internacionais da historiografia brasileira. Além disso, quase metade dos estágios (45%) ficou concentrada em dez instituições. A École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), citada como uma espécie de espaço de legitimação da competência e da autoridade epistemológica da historiografia brasileira, recebeu 11,6% do total de bolsistas. “Se essa tradicional instituição fosse um país, teria sido o quarto destino mais importante”, diz o artigo.

Embora o levantamento, por dificuldades de acesso à informação, passe ao largo dos dados de outras agências de fomento à pesquisa, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e fundações estaduais, os autores avaliam que um recorte mais amplo muito provavelmente não alteraria de forma significativa as grandes tendências apontadas pela investigação realizada.

Dados sobre instituições aponta solidez dos vínculos entre países

O artigo também aponta que a geografia dessa mobilidade historiográfica em formação e formada são semelhantes em seus grandes traços, criando um circuito intelectual e profissional em torno dos quatro países já citados. Sete das dez instituições que mais receberam bolsistas coincidem nos gráficos de doutorado sanduíche e pós-doutorado: EHESS e as universidades de Lisboa, Nova de Lisboa, de Coimbra, do Porto, de Paris 1 e de Barcelona. Para os autores, essa informação explicita que há “alguma solidez dos vínculos e algum enraizamento dos circuitos construídos inicialmente pelos pesquisadores e que servem, em seguida, como vetor de inserção internacional dos jovens pesquisadores”. 

Sempre me vi um pouco como que uma espécie de diplomata científico, como alguém que estava ali também em busca de construir e fortalecer os laços que estão se consolidando em função dessas parcerias

A experiência vivenciada pelo historiador carioca José Roberto Silvestre Saiol, 28 anos, é exemplo disso. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), no ano passado, ele estagiou por sete meses na Université Paris 1 Panthéon Sorbonne, com bolsa de doutorado sanduíche da Capes. A instituição é a quinta na lista das dez que mais receberam historiadores brasileiros, de acordo com o artigo.  

A escolha por Paris está associada ao próprio percurso acadêmico e historiográfico de Saiol, profundamente influenciado pela produção dos intelectuais franceses desde a graduação, e à expectativa de acessar fontes e extensa bibliografia ainda indisponíveis na internet, mas também em decorrência da rede de contatos, tanto de sua orientadora, Lorelai Brilhante Kury, como do próprio Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes), da COC/Fiocruz. 

Além dos laços com pesquisadores da EHESS, onde fez seu doutorado, Kury também dialoga com a Paris 1. “Ela já mantinha contato com o pesquisador que me recebeu em função de já terem contribuído juntos para dossiês de revistas acadêmicas”, diz Saiol, contando ainda que muitos dos colegas da pós-graduação costumavam ir para a EHESS, mas houve uma mudança na movimentação, a partir da aposentadoria do principal contato de Kury na instituição. “Coincidentemente, naquele momento, estávamos estreitando laços com pesquisadores da Paris 1, cujos temas de pesquisa dialogam com o meu”, diz, sobre o estudo das relações científicas e culturais entre a França e o Brasil na primeira metade do século 19.

José Roberto está sentado à mesa à frente da turma em uma sala de aula. Ele fala enquanto é observado por homens e mulheres com máscaras sanitárias.
Saiol em atividade na Université Paris 1 Panthéon Sorbonne, na França. Foto: Arquivo pessoal.

Kury destaca a importância das parcerias. “Quando as relações com o grupo de pesquisa estrangeiro já existem, o aproveitamento é muito maior. Saiol foi muito bem acolhido e pôde divulgar seu trabalho, fortalecendo, ao mesmo tempo, os laços entre os pesquisadores brasileiros e franceses”, avalia a historiadora, observando que a relação especial com a França diz respeito à centralidade da produção intelectual francesa para o Brasil do século 19. 

O período em Paris foi muito rico do ponto de vista das interlocuções acadêmicas, confirma Saiol, que diz ter se sentido parte de um projeto maior, de fortalecimento das redes entre Brasil e França. “Acho que por estudar as dinâmicas da ‘ciência em ação’, ou seja, da ciência enquanto ela se faz, eu sempre me vi um pouco como que uma espécie de diplomata científico, cuja missão não se resumia apenas a levantar fontes e bibliografia para a minha própria pesquisa, mas como alguém que estava ali também em busca de construir e fortalecer os laços que estão se consolidando em função dessas parcerias”. 

Circulação de historiadores acompanha movimento da ciência brasileira

Salomon também fez doutorado sanduíche na França, assim como o pós-doutorado. Passou a se interessar pelo tema da circulação de pesquisadores ao assumir a coordenação do Programa de Pós-Graduação em História da UFG. Durante as discussões em Fóruns da área sobre a internacionalização das pesquisas realizadas por brasileiros, começou a reunir dados a respeito do assunto, na tentativa de melhor compreender a área de história.

Queremos entender como nossos pesquisadores e estudantes são formados fora e em que países e instituições. Isso talvez permita pensar se é possível estabelecer relações entre a aclimação de certas teorias ou autores no país, e essa circulação no exterior

No levantamento, os autores observaram que a movimentação dos pesquisadores em história no exterior não destoa do movimento mais geral de circulação internacional da ciência brasileira. Há apenas alternâncias nas posições ocupadas pelos mesmos quatro países: Estados Unidos, França, Portugal e Espanha. Enquanto o país norte-americano sempre figurou como principal destino de bolsistas de pós-doutorado financiados pela Capes, considerando todas as áreas de conhecimento, no caso da história quem dividia a liderança eram França e Portugal.

Segundo Salomon, os programas estatais e de agências não estatais mantidos pelos Estados Unidos e França, como Fundação Ford, Fulbright e Capes-Cofecub (Comité Français d’Evaluation de la Coopération Universitaire et Scientifique avec le Brésil) podem ajudar a explicar a liderança desses dois países na lista do mais valorizados pela ciência brasileira. No artigo, destaca-se que “mesmo um país como Portugal, cuja importância para seu conhecimento os historiadores costumam justificar por razões empíricas e arquivísticas, possui um peso importante no horizonte geral da ciência brasileira, ainda que esse país não seja considerado uma referência como produtor de ciência em nenhuma área de conhecimento e seja muitas vezes classificado como periférico no próprio sistema científico-tecnológico europeu”.

Geografia da mobilidade científica não é espontânea

Sobre as razões por trás da predileção por Portugal, um dos principais portos de desembarque da ciência brasileira, e dos demais países e instituições em destaque, Salomon observa ser necessário realizar outros estudos para encontrar as respostas. Mas deixa claro que a geografia da mobilidade científica internacional não é espontânea. Para além dos esforços individuais, ela se inscreve em políticas e ações estatais e de agências que buscam dirigir os fluxos e a circulação internacional de estudantes e de pesquisadores. “Toda política estatal de brain circulation pressupõe em alguma medida uma polícia e um controle das fronteiras epistêmicas”, enfatiza. 


    Lorelai Kury fala ao microfone.
    Professora Lorelai Kury. Foto: Divulgação.
 

Além disso, questões históricas e linguísticas podem ajudar na compreensão dos caminhos seguidos por pesquisadores na área de história no exterior. Sabe-se da importância da historiografia francesa no Brasil e das razões arquivísticas relacionadas à Portugal. 

Embora, em números absolutos, a concentração permaneça em poucos países, o levantamento indica uma ampliação dessa geografia, revelando outra tendência ao longo dessas quase duas décadas: uma diversificação dos destinos no exterior. Em 1998, bolsistas de doutorado sanduíche da área de história financiados pela Capes estavam espalhados por cinco países. Em 2013, o número saltou para 17.

Esse quadro, importa observar, coincide com o aumento da oferta de cursos de doutorado no país e a ampliação do financiamento. De todo modo, frisa Salomon, será necessário observar a evolução, nos próximos anos, da mobilidade internacional docente e discente na área de história para verificar se as tendências registradas nos últimos anos se confirmam ou não. 

O artigo também situa historicamente a pós-graduação brasileira, onde se desenvolve, desde a década de 1970, grande parte da pesquisa no país. Mostra que esse movimento de qualificação no exterior surgiu por volta dos anos 1950, quando inexistiam aqui instituições capazes de formar quadros para o ensino superior e técnicos para o Estado.

A partir da década de 1990, as bolsas de doutorado pleno, concedidas durante o período de quatro anos, foram, aos poucos, perdendo terreno para a bolsa sanduíche, alternativa de financiamento de curto prazo que havia sido criada na década de 1970, todavia, sob estatuto diferente do atual. Além disso, o país passou a ter programas de pós-graduação qualificados, tornando desnecessária a formação completa no exterior. Com isso, as bolsas de doutorado sanduíche acabaram se tornado o principal vetor de inserção dos pesquisadores em formação em outros países.