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Literatura infantil na América Latina é destaque no Encontro às Quintas

23 ago/2018

A produção e a circulação da literatura infantil na virada do século XIX para o XX na América Latina e a sua relação com a construção das identidades nacionais locais foram a base da apresentação das pesquisadoras Patricia Tavares Raffaini, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), e Gabriela Pellegrino Soares, da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), no último Encontro às Quintas, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Especialista em história da literatura infanto-juvenil brasileira de 1860 a 1920, Patricia Tavares Raffaini debateu o lugar do negro, do indígena e da mestiçagem nos contos populares que circularam de forma impressa no Brasil, na virada do século XX. Ao lembrar que as primeiras histórias para crianças eram adaptações de narrativas populares tradicionais e não contos escritos originalmente para o público infantil, a pesquisadora chamou a atenção para as formas de transmissão e os valores e saberes contidos nos enredos. “Mesmo tendo se modificado nessa passagem de um grupo para o outro, essas narrativas podem relevar inúmeros aspectos que pulsavam na cultura popular”, disse.

Para identificar as histórias de matriz indígena e africana, Patricia Tavares Raffaini recorreu às obras de alguns dos autores mais famosos e populares do período, como Figueiredo Pimentel, Viriato Correia, João do Rio, Carmen Dolores (pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo) e Madame Chrysanthème (pseudônimo de Cecília Moncorvo Bandeira de Melo Rebelo de Vasconcelos, filha de Emília).

“Muitos são os intelectuais e literatos brasileiros que relatam ter escutado contos populares de suas mães e pais, amas de leite, madrinhas e pajens. Todos eles contavam histórias maravilhosas que descendiam de variantes que mais tarde foram escolhidas pelos folcloristas. Dessa forma, histórias indo-europeias fundiam-se com tradições africanas e ameríndias”, explicou Patrícia.

Ainda de acordo com a professora da USP, o trabalho desses escritores mostra a construção de um repertório de contos que se julgava serem brasileiros. Neste contexto, a mestiçagem da população brasileira surgia como uma incógnita e ao mesmo tempo era vista como uma singularidade. “Os contos publicados para crianças incorporaram as narrativas provenientes das culturas ameríndias e africanas e refletiam essas ambiguidades e arestas presentes na sociedade do período. Sentimos, ao ler essas histórias, o travo amargo da desigualdade e da exclusão social”, pontuou.

Cenário na América Latina

Coordenadora do Laboratório de Estudos de História das Américas da USP, Gabriela Pellegrino Soares discutiu, em sua apresentação, a relação entre literatura infantil e educação escolar nas primeiras décadas do século XX na América Latina, tema que trabalhou em seu doutoramento, entre 1998 e 2002. Segundo a professora da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, problematizar a literatura infantil leva à reflexão sobre as dinâmicas de poder e a construção das hierarquias sociais com muita precisão.  “Na época em que eu fiz essa tese, o campo da literatura infantil para os historiadores era considerado um campo menor. Causava até um certo constrangimento. Mas essa pesquisa confirmou pra mim que essas histórias revelam questões profundas no que diz respeito à sociedade, à cultura, à política e às dinâmicas sociais de maneira geral”, comentou Gabriela.

No que diz respeito às interfaces entre literatura infantil e educação, a professora da USP destacou os esforços dos escritores do início do século XX para caminhar de forma mais autônoma e mais independente em relação às prescrições do campo da educação. “A literatura infantil é marcada pelo diálogo com a educação e a escola. Muitos escritores querem se emancipar, escrever o que uma criança gostaria de ler e não aquilo que os pais e educadores queriam que a criança lesse. Mas qual será o mercado?”, questiona Gabriela, descrevendo um problema que chega até o século XXI. “Para circular mais amplamente, o escritor precisa encontrar pontos de contato, negociar com as vozes normativas. A aprovação da obra por autoridades governamentais é importante. São os órgãos de governo que fazem as maiores compras até hoje”, afirmou.

Gabriela Pellegrino Soares também acrescentou ao debate um problema comum na História das Américas. “Para todo americanista, uma questão que se sempre se coloca é o da circulação cultural, de pessoas, ideias e objetos, com todos os seus respectivos problemas e possibilidades”, apontou Gabriela. De acordo com a pesquisadora, em países como Argentina, Uruguai e México era muito comum a circulação de livros infantis provenientes da Espanha, diferentemente do Brasil, onde os livros infantis portugueses não tinha muito penetração no mercado nacional. “Pensar como esse repertório é reelaborado é um problema que permeia em todos os níveis a História das Américas, a história do chamado Novo Mundo”, explicou.

Na Argentina e no Uruguai, a estruturação de uma rede de escolas primárias e de bibliotecas populares e o investimento na formação de professores, ainda no século XIX, contribuíram para o rápido desenvolvimento de um mercado editorial. “A leitura foi algo que começou a atravessar a sociedade argentina de uma forma mais ampla do que no Brasil, onde projetos educacionais entraram em cena a partir da Proclamação da República e, mesmo assim, em determinados estados”, disse. Gabriela complementou o quadro com o exemplo do México, onde políticas para a universalização da escola primária aconteceram somente depois da Revolução Mexicana (1910-1920).