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Intensidade, Fragmentação e Terror do Recife Velho em Gilberto Freyre

20 jun/2011

O historiador Ricardo Benzaquen de Araújo contou ao público do Encontro às Quintas, no dia 09/6, que se interessou pela análise do livro Assombrações do Recife Velho de Gilberto Freyre, após ter lido outro livro do autor com temática semelhante: Aventura e Rotina.  Ele considera essa obra de Freyre, publicada originalmente em 1955, um tanto singular em sua produção intelectual. O livro reúne uma série de histórias, supostamente correntes há décadas ou mesmo séculos entre várias gerações de moradores de Recife, que se referem ao aparecimento de um conjunto numeroso e variado de entidades sobrenaturais, tais como fantasmas, lobisomens, monstros em forma de gente ou de animal.

 

O palestrante destaca que no prefácio do livro  Freyre  explica que seu interesse pelo assunto foi despertado em 1929, quando era diretor do diário A Província, jornal publicado no Recife. Naquela época, Freyre foi procurado por um antigo assinante para que ele exercesse  sua influência junto à polícia local para o envio de forças policiais com o objetivo de expulsar assombrações que haviam ocupado a casa em que o leitor residia. Como Freyre não acreditava no poder sobrenatural da polícia, não atendeu ao pedido do leitor, mas percebeu que o assunto renderia uma matéria de interesse do público do jornal. Para a missão enviou um repórter policial.

 

Na opinião de Ricardo Benzaquen, “o mistério dá a impressão de ser o elo que conecta o mundo do crime com o universo sobrenatural, o que teria uma importância ainda maior em uma sociedade como a brasileira, na qual, como sugere o antropólogo Roberto DaMatta, as esferas da casa e da rua, do privado e do público são como mediadas – e sobredeterminadas – pelo que denominamos de ‘outro mundo’, capazes de intervir no nosso cotidiano”. Por isso, Freyre enviou um repórter policial, sugere Benzaquen.

 

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Ricardo Benzaquen ao microfone. Foto: Vinicius Pequeno

 

O primeiro padrão de comportamento das entidades, segundo Benzaquen, é que elas estão presentes no cotidiano da cidade, sendo associadas por Freyre aos fantasmas habitualmente encontráveis na Inglaterra, pelo fato do “fantasma inglês ser tão preso à sua casa ou ao seu castelo que quando alteram o piso, ele só se deixa ver pela metade”.

 

O outro tipo de conduta é que as aparições transmitem a sensação de estarem associadas a um motivo muito recorrente em Assombrações do Recife Velho: a existência de tesouros enterrados em casas aterrorizadas por fantasmas, ou seja, tratam-se de fantasmas assolados pelo pecado da avareza, que mesmo depois de mortos recusam-se a abandonar a riqueza que haviam acumulado e escondido. Esses, disse Benzaquen, são fantasmas domésticos, mesquinhos e nada hospitaleiros.

 

Ainda há no livro de Freyre a história de “uma senhora extremamente idosa, que ele conheceu quando criança, que amava excessivamente os santos, em particular o Menino Jesus, em detrimento das três sobrinhas que moravam com ela, às quais tudo negava, menos a casa e o gozo do sítio; e por isso as coitadas esgotavam-se de trabalhar, costurando para fora e fazendo doces para as negras venderem em tabuleiros na cidade. As jóias e medalhas da senhora só adornavam o adorado Menino Jesus. Um dia aparece à velha um misterioso bode escarlate, como que banhado de sangue. Foi como se o esquecimento de Deus se realizasse, para sacolejar o coração da velha sinhá e abrandá-lo”.

 

 

Para Benzaquen, o ponto mais definido conceitualmente por Freyre é que “todos os fantasmas transmitem a sensação de que são compostos a partir de uma articulação entre a aparição das entidades sobrenaturais e alguma ruptura das normas que dão sentido ao mundo da cultura, quer estejamos nos referindo ao assassinato de escravos, à avareza, ou à ausência de caridade”. Entende-se, portanto, que “essas narrativas destilam uma espécie de sabedoria prática, dando um conselho, recomendando uma linha de atuação baseada na experiência, para salvaguardar as crenças e instituições”. São “histórias morais, quase rotineiras, nas quais o sobrenatural parece ser convocado apenas para sancionar a virtude e prevenir as rupturas que podem decorrer do pecado”.

 

 

Benzaquen lembra também que “Freyre coloca em cena algumas histórias cujos personagens principais não são fantasmas, mas lobisomens, que deveriam se manter nos ‘ermos’, fora da cidade. Eles são contrastados com as ‘cabras cabriolas’, monstros urbanos que invadem as casas em busca de crianças desobedientes e aterrorizam qualquer um que viesse a cruzar o seu caminho”. “A forma de se defender dos ataques era invocar o nome de Nossa senhora do Socorro e utilizar a cor azul, sua favorita”.

 

 

O que mais chama a atenção na obra de Freyre é uma certa falta de articulação entre o comportamento das assombrações, de suas vítimas e de argumentos que poderiam oferecer relações éticas e sociais mais sólidas, disse Benzaquen. Trata-se, sobretudo, de histórias que exibem uma atmosfera marcada pela aventura, pela imprevisibilidade e pelo terror.

 

 

Outro argumento levantado por Freyre é que “o nordeste, em particular o Recife, é uma cidade aquática, limitada pelo mar, atravessada por dois rios, que dão a impressão de segmentá-la”, e o mar remete a paganismo, rivalidade com entidades cristãs, analisa BenzaqueN. Além disso, conforme Freyre, a cidade padece de uma espécie de mobilidade característica, aberta às mais diversas influências: portuguesas, africanas, judaicas e holandesas, também tendo se tornado vulnerável a incursões de piratas e corsários estrangeiros.

 

 

Uma das mais recorrentes observações de Freyre é comparar as assombrações com as revoluções que ocorreram em Pernambuco, apesar da “história íntima” com a qual se vinculam os fantasmas e lobisomens nada ter a ver com a “história oficial” das insurreições políticas. O Recife “íntimo” que Freyre apresenta não tem compromisso com a coerência nem com a totalidade cultivadas pela moderna narrativa historiográfica.

 

 

Já nos anos de 1930, informa o palestrante, Freyre denunciava com vigor a intenção de transformar o Recife em uma cidade excludentemente moderna, “endireitando” as ruas para que se tornassem mais retas, projetos esses que o autor é contra tanto pelo lado cultural quanto pelo político por estar “convencido que a principal consequência dessa modernização é uma brutal ampliação da distância que separava os brancos dos negros, os ricos dos pobres”.

 

 

Por fim, Benzaquen entende que Freyre em Assombrações do Recife Velho “aponta para uma cidade não muito hospitaleira, imprevisível e ameaçadora, onde a tradição, expulsa durante o dia pela porta, teima em retornar à noite pela janela, com o objetivo de espalhar o desassossego e o terror”.

 

Ricardo Benzaquen de Araújo é autor de Guerra e Paz: Casa-Grande e Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos anos 30 (1994), título pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Ensaio em 1995; e Totalitarismo e Revolução: o Integralismo de Plínio Salgado (1988). Concluiu o mestrado (1980) e o doutorado (1993) em antropologia social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professor titular e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor assistente do Departamento de História da PUC-RJ.