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Instituto Soroterápico Federal reconfigurou soro antipestoso francês no início do século 20

19 set/2017

“Passamos de uma esperança na China, um fracasso na Índia, à fronteira entre os conhecimentos feitos aqui [no Instituto Soroterápico Federal] e em Paris”, resumiu Matheus Duarte (foto: Jeferson Mendonça) na apresentação feita no workshop Mundos da natureza e da medicina: novas perspectivas históricas, que reuniu pesquisadores de diferentes países no Campus da Fiocruz, no Rio de Janeiro. Na avaliação de Matheus, “a circulação do soro [antipestoso] não é a mera transferência de um conhecimento, simples, estabilizado, de Paris para o Brasil. Há uma série de reconfigurações, não apenas da parte técnica (como o soro será produzido), mas na própria relação das sociedades para com esse objeto”, afirmou.

Bolsista de doutorado pleno da Capes na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, onde é orientado pelos professores Kapil Raj e Dominique Pestre, Matheus defende que o soro contra a peste bubônica, desenvolvido no Instituto de Manguinhos no início do século 20, foi o resultado de aperfeiçoamentos feitos pelos cientistas liderados por Oswaldo Cruz. No evento, Matheus proferiu a palestra “ From Bombay to Rio de Janeiro: another transnational history of the Instituto Soroterápico Federal (1894-1906) ”.

O workshop, promovido pela rede LAGLOBAL, reuniu historiadores para apresentar as novas pesquisas sobre a emergência e o desenvolvimento de ideias e práticas relacionadas à história natural e a questões médicas no Novo Mundo, em julho. O enfoque foram as conexões entre processos globais e locais em ciência e medicina.

Os pesquisadores também discutiram a importância do conhecimento produzido no continente americano, especialmente o da América ibérica, abordando a construção da natureza e da medicina desde o século 16. O evento procurou jogar luz à circulação transnacional de conhecimento e pessoas em torno do tema, quebrando a lógica predominante de enfatizar "descobertas" europeias e norte-americanas.

Na palestra, Matheus Duarte disse que o soro antipestoso era produzido não apenas pelos franceses, mas pelos russos, italianos e japoneses, utilizando-se cada um de técnicas diferentes. Segundo ele, o Instituto Butantan, em São Paulo, também mandou sua versão do soro para a Índia, principal foco da doença, a fim de ser testado.

O historiador contou sobre a missão francesa a Bombaim, na Índia, em 1897, revelando correspondências entre cientistas da época, como Emile Roux (então subdiretor do Instituto

Pasteur) e Paul-Louis Simond, que trabalhou no país asiático com Alexandre Yersin. “A peste vai durar ainda muito tempo na Índia. Nós temos que aproveitar, não para fazer um

tratamento em grande escala, uma vez que não temos soro suficiente, mas para fazer testes sucessivos com vários soros", destacou Matheus Duarte sobre carta de Roux a Simond. O pesquisador disse que, entre os cientistas do instituto francês, não era consenso a existência de um único soro; havia uma diversidade de soros antipestosos em razão da própria maneira de fabricá-los. Bombaim serviu aos franceses como laboratório para testar a grande variedade de soros, acrescentou o historiador.

Em dois anos, os cientistas do Instituto Pasteur fracassariam em sua busca por um produto eficaz contra a peste bubônica na cidade indiana. O índice de letalidade atingia 73 por cento dos infectados. Ao sair do país, onde a doença matara cerca de 1 milhão de pessoas, Simond escreve a Roux: “Parece-me que, para voltarmos à Índia, ou o governo inglês deve nos pedir soro [ao Instituto Pasteur] ou o senhor [Roux] deve ter a certeza de que um grande progresso foi alcançado na eficácia do soro".

Matheus Duarte lembrou que o Instituto Soroterápico Federal levaria dois anos para criar e estabilizar o seu próprio soro antipestoso, superando dificuldades técnicas para a fabricação do produto. Amostras seriam enviadas à Alemanha, onde sua eficácia foi considerada superior à do soro produzido no Instituto Pasteur, conforme relato de Antônio Cardoso Fontes (presidente da instituição entre as décadas de 1930 e 40) em sua tese de doutorado.

No Rio de Janeiro, pacientes eram tratados no hospital Paula Candido desde 1900, quando a peste apareceu. Naquele ano, houve 138 mortes em consequência da doença, de 410 tratados, de acordo com as pesquisas feitas por Duarte. Três anos depois, 124 pessoas morreram vítimas da peste bubônica, que matou 83 pacientes em 1905. Em cinco anos, os casos fatais caíram de 33,6 para 16,5 por cento. Essas estatísticas seriam, por fim, utilizadas pelo Instituto Pasteur para justificar a eficácia do soro antipestoso francês, embora no Rio fosse empregado um produto diferente do fabricado em Paris.

Bolsista da Capes estudou no CapUerj e fez Provoc na COC

Nascido no Rio de Janeiro há 27 anos, Matheus Alves Duarte da Silva foi bolsista Provoc (Programa de Vocação Científica) na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) entre 2006 e 2009. Ele fez sua graduação na UFRJ e mestrado em História Social na USP, onde obteve bolsa FAPESP. Em 2014, foi para Paris, como parte da bolsa sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde desenvolve o seguinte projeto:  Ratos, pulgas e bacilos: interações culturais e construção do conhecimento sobre a peste bubônica (1894-1914).

Segundo o pesquisador, seu estudo em Paris foi possibilitado por contatos anteriores com os professores Dominique Pestre e Kapil Raj durante o período em que fez um mestrado sanduíche na EHESS. Além de receber orientação de dois dos mais importantes nomes da instituição de ensino francesa, Matheus destacou o contato com outros autores de renome da história e da história da ciência. Tem sido uma “oportunidade excepcional para pesquisar em arquivos de Paris e Londres, e para ter contato com parte dos principais autores em história e história da ciência da atualidade, como Sanjay Subrahmanyam e Bruno Latour”, afirmou.