Por César Guerra Chevrand
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Gabriel Lopes. Foto: Jeferson Mendonça. |
Tópico da última edição especial da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, a história dos animais é definida por Gabriel Lopes como uma “constelação de temas e abordagens históricas que consideram os processos e relações entre os seres humanos e demais espécies zoológicas de maneira abrangente, seja do ponto de vista ambiental, político, cultural, social e econômico com grande permeabilidade transdisciplinar”.
Pesquisador em estágio pós-doutoral na Casa de Oswaldo Cruz e especialista nos campos da história das doenças, história ambiental, história da saúde global e estudos sociais das ciências, Lopes também afirma, em tempos de Covid-19, que a história dos animais “pode ajudar a pensar a perspectiva de emergência de novas epidemias de origem zoonótica e determinados aspectos de ecologias que também são microscópicas”.
Confira a entrevista.
A revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos publicou recentemente um dossiê com o título Reciprocidade em desequilíbrio: história das relações entre animais. Afinal, o que é a história dos animais?
De forma geral, pode ser definida como uma constelação de temas e abordagens históricas que consideram os processos e relações entre os seres humanos e demais espécies zoológicas de maneira abrangente, seja do ponto de vista ambiental, político, cultural, social e econômico com grande permeabilidade transdisciplinar. No fio condutor dessas narrativas possíveis, estão espécies zoológicas que coparticipam dos processos históricos de forma ativa.
Qual a configuração deste campo de estudos hoje no Brasil e na América Latina?
Na apresentação do número especial, apontamos que os animais estão presentes na história de diversas formas, a diferença de abordagem da história dos animais é tomá-los como fio condutor de processos históricos nas suas permanências e impermanências. A história dos animais no Brasil e na América Latina está indiscutivelmente ligada à biodiversidade da região e ao desenvolvimento da história ambiental e história das ciências, ganhando bastante impulso desde o final do século 20.
O número especial aponta para a heterogeneidade e potencial da história dos animais no Brasil e América Latina, contando com pesquisas que atravessam diversas escalas espaço-temporais, como o entrelaçamento cotidiano da lhama com os povos e paisagens andinas desde os tempos pré-colombianos, a movimentação de grandes felinos entre a Argentina e o Brasil que desafiaram delimitações espaciais a partir do seus próprios sentidos de territorialidade, até a influência da paisagem sonora urbana no canto dos pássaros, para citar alguns exemplos.
Além disso, está presente no número especial o artigo Bestiario latinoamericano, um excelente balanço historiográfico sobre o tema, escrito por Germán Vergara.
Quais os principais desafios dos pesquisadores nestes estudos?
Primeiro, ampliar a compreensão do papel histórico de diversas espécies, não pressupondo de antemão qualquer noção de reciprocidade simétrica nas relações, mas sim, buscando a singularidade dos processos históricos a partir do rigor na pesquisa com as fontes.
Segundo, é necessário um esforço especulativo e abraçar outras disciplinas e saberes, desde a literatura e outras artes, perseguindo as possíveis metáforas que diversas espécies mobilizam em diversas culturas, bem como observar aspectos fundamentais das ciências biológicas, na medida em que dão um novo sentido histórico à ideia de coexistência, pois fornecem perspectivas mais alargadas de tempo e a compreensão de importantes aspectos evolutivos e ecológicos.
De forma particular, acredito que esses dois desafios devem ser enfrentados para que os animais deixem de ser observados como meros repositórios passivos para as representações humanas ou como mero recurso, e sejam vistos como elementos que desafiam a nossa compreensão de mundo, tanto no tempo cotidiano, quanto em uma escala temporal alargada, enriquecendo as histórias possíveis.
O que a história dos animais tem a dizer sobre ecologia e sustentabilidade?
Muitas histórias das relações entre espécies colocam em evidência questões éticas e políticas do nosso tempo que são inescapáveis, como ideias relacionadas às ideias de sustentabilidade e de conservação. A história dos animais ajuda a compreender os condicionantes históricos e os modos de vida humanos que redefinem os animais considerados desejáveis e indesejáveis, os animais para o abate e animais de companhia, animais como símbolos nacionais ou como pragas a serem eliminadas, animais considerados dignos de conservação ou úteis pois se enquadram bem em determinados experimentos científicos, para citar alguns exemplos.
Muitos trabalhos importantes da história ambiental ajudam a adentrar nas questões éticas caras à história dos animais e a observar como a ideia de sustentabilidade é historicamente constituída, em grande medida redefinindo aspectos da nossa própria concepção. A história dos animais pode ajudar a investigar o desenvolvimento dessas relações, o que também leva à pergunta: sustentabilidade para quem?
Qual a importância da história dos animais para a área da história das ciências e da saúde?
A história das ciências e da saúde é povoada por animais em laboratórios, vilões epidêmicos e elementos fundamentais nas cadeias de transmissão de doenças. A história dos animais possibilita um entendimento ecológico das doenças a partir do momento em que se prioriza a observação do deslocamento dos patógenos entre diferentes espécies e não apenas a ocorrência dos sintomas no corpo humano ou o efeito de uma epidemia em uma população.
Uma história dos animais entrelaçada à história da saúde, pode observar, por exemplo, a zika, dengue e febre amarela a partir do vetor comum a essas três arboviroses, o Aedes aegypti. Deste modo, pode-se entender como esse mosquito se adaptou com sucesso à precariedade sanitária do crescimento urbano desordenado, tornando-se um eficiente transmissor dessas doenças.
A história dos animais na história das ciências e da saúde pode ajudar a pensar a perspectiva de emergência de novas epidemias de origem zoonótica, e determinados aspectos de ecologias que também são microscópicas, e como elas estão entrelaçadas a aspectos ambientais de grande escala. Além disso, há um enorme caminho de pesquisa em aberto sobre o estudo das doenças em animais para além dos seres humanos, sobre possíveis entrelaçamentos entre veterinária e medicina, e também sobre a circulação de espécies e limites do controle biológico, como aponta o artigo sobre a praga de coelhos na Austrália.