Aumento da informalidade e do número de pessoas em situação de rua, filas intermináveis de distribuição de alimentos, e ainda um vale-tudo cotidiano para matar a fome, com pessoas revirando lixo, ossos e carcaças. Cenas assim marcaram o Brasil durante a pandemia de Covid-19, quando existia 33,1 milhões de pessoas em situação de fome no país, segundo inquérito da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), aplicado entre 2021 e 2022. Mas o empobrecimento em larga escala não se deu em razão da crise sanitária global, argumenta a historiadora Denise De Sordi.
A discussão sobre a pobreza está associada à fome, mas não se reduz a ela. A fome deriva de um quadro de empobrecimento, de limitação de acesso a políticas e direitos sociais. Alguma coisa deu muito errado antes de chegarmos em um quadro generalizado de fome tal como aconteceu nos últimos anos
Em estudo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, no qual analisa os programas sociais de transferência condicionada de renda no Brasil, no período de 2019 a 2022, De Sordi mostra que o cenário desolador, apesar de intensificado pela emergência do novo coronavírus, foi consequência de escolhas de governo que resultaram no desmanche da rede de proteção social do país, constituída por assistência social, saúde e previdência.
“O horizonte que se desenhava de acesso aos direitos sociais foi sofrendo alterações bastante bruscas. Houve uma remodelação, que começou a se acentuar de forma acelerada com o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), um contexto agravado com a crise sanitária”, observa a historiadora, que é pesquisadora da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fiocruz. No artigo, ela apresentou os resultados parciais das pesquisas de pós-doutoramento na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e Universidade de São Paulo (USP).
Conduzido ainda na conjuntura do governo Bolsonaro, o estudo revela como mecanismos de redução das desigualdades sociais construídos ao longo de três décadas foram “sistematicamente paralisados ou tornados inoperantes” desde o início da gestão dele, em 2019. Segundo a historiadora, decisões políticas que levaram a esse desmonte muitas vezes foram justificadas como necessárias ao controle da crise macroeconômica, “supostamente decorrente das medidas de proteção à vida e à saúde durante a pandemia”.
Bolsa Família: conciliação e vinculação de serviços sociais
De Sordi considerou em sua análise o Programa Bolsa Família, criado em outubro de 2003, durante o governo Lula, além do Auxílio Emergencial e do Programa Auxílio Brasil, ambos implementados pelo governo Bolsonaro, respectivamente em abril de 2020 e em outubro de 2021.
Principal instrumento para o combate ao aumento da pobreza e da fome no país, Bolsa Família surgiu a partir de um processo de conciliação de antagonismos: a escolha de uma política focalizada, em detrimento de um modelo universal, como é o Sistema Único de Saúde (SUS), atendeu parte da população empobrecida e também às expectativas de reformas macroeconômicas defendidas por uma agenda neoliberal. Antes de ser extinto em favor do Auxílio Brasil, o Bolsa Família era destinado aos que se encontravam em situação de pobreza e de extrema pobreza, com filhos de até 17 anos. A transferência do benefício tinha como condicionantes a permanência das crianças e adolescentes na escola, o acompanhamento pré-natal das e o carteira de vacinação em dia.
Reconhecido como um exemplo mundial de política de transferência condicionada de renda, que vinculava vários serviços sociais com o objetivo de reduzir as desigualdades sociais, “o Bolsa Família passou a ser criticado durante o governo de Michel Temer (2016-2018), a partir de um discurso que disseminava suspeitas de desvio na concessão de benefícios e a necessidade de reformulação do programa. O tom de desaprovação subiu ainda mais durante a campanha eleitoral para presidente da República, em 2018”.
Fim do Consea, esvaziamento do Suas e do CadÚnico: o desmonte da rede
Segundo a historiadora, o fim do Bolsa Família ocorreu na esteira de uma série de ações que desarticularam a rede de proteção social no país, entres os quais, a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), primeiro ato do governo Bolsonaro. Outro exemplo disso foi o processo de criação do Auxílio Emergencial, implementado sem discussão ampla com o Sistema Único de Assistência Social (Suas), porta de entrada na rede de políticas sociais articulada nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras). Além disso, a transferência de renda era realizada por meio de aplicativo de celular da Caixa Econômica Federal, sem passar pelo CadÚnico, que, ao reunir informações de programas destinados às pessoas de baixa renda, constituía um instrumento de controle social.
Com desempregados, trabalhadores autônomos e informais como público-alvo, o Auxílio Emergencial permitia ao beneficiário solicitar um empréstimo consignado até 40% do valor da renda recebida pelo governo, bastava, para isso, fazer “um curso de educação financeira”. Por meio dessa modalidade de empréstimo, as prestações são descontadas diretamente do benefício. Segundo De Sordi, que descreve o mecanismo como a “dimensão de financeirização dos direitos sociais”, o crédito foi concedido de forma indiscriminada, com oferta, inclusive, para as pessoas que estavam em situação de rua, em condições muito precárias para pagar o empréstimo contraído: “O problema não é individual, é social, estruturante do país. A condição de pobreza não é passível de ser resolvida com o crédito consignado”.
Mais adiante, com o fim do Auxílio Emergencial, o governo Bolsonaro jogou uma pá de cal no Bolsa Família, substituído pelo Programa Auxílio Brasil. Mas como foi possível realizar esse desmanche da rede de proteção? Segundo a historiadora, ele se tornou viável por meio de um processo de ressignificação política da condição de pobreza, durante a fase mais crítica da crise sanitária global, com o retorno do país ao Mapa da Fome. “A pobreza passou a ser relacionada aos efeitos da gestão da pandemia, descolada de questões estruturais e da responsabilidade do Estado como regulador das condições de reprodução social. O agravamento dessa condição, com a generalização da fome pelo país, por sua vez, é um processo que relê a pobreza”, escreve a historiadora.
Componente moral está presente na perspectiva técnica
O Auxílio Brasil, analisa De Sordi, traz novos sentidos, ancorados na questão material e moral da pobreza. Institucionalmente, ser pobre “volta a ser sinônimo de fome”, e decorrência de uma “ausência de esforço individual, ignorância ou displicência no manejo de parcos recursos domésticos”, num processo de responsabilização do pobre pela própria pobreza e de redução do Estado. “A discussão sobre a pobreza está associada à fome, mas não se reduz a ela. A fome deriva de um quadro de empobrecimento, de limitação de acesso a políticas e direitos sociais. Alguma coisa deu muito errado antes de chegarmos em um quadro generalizado de fome tal como aconteceu nos últimos anos”.
Em sua análise sobre os programas e políticas sociais, ela percebeu que o componente moral, às vezes, tem um peso até maior do que aqueles “que se mostram técnicos, que querem parecer neutros. “A perspectiva técnica tem um componente moral, pois ela é feita por pessoas, que tem preconcepções, que disputam o formato desses programas e políticas e programas, que estão organizadas a partir de determinados interesses e formas de ver o mundo. Então, o componente moral nunca deixa de estar presente”.
Para ilustrar o que diz, cita dois caminhos “que são comumente utilizados para se explicar a pobreza de forma generalizante e que representam diferentes visões de mundo”: ela pode ser atribuída tanto ao fato de o indivíduo ter muitos filhos; não ter educação; não saber procurar emprego; ou associada às condições do tempo no qual ele está inserido, pressionadas por relações políticas, econômicas e sociais.
Na opinião da pesquisadora da Fiocruz, que se dedica à História do Tempo Presente, embora os estudos históricos sobre programas e políticas sociais não sejam muito frequentes no Brasil, ela considera que o campo tem muito a contribuir para a compreensão do tema, pois analisam os processos não de forma descolada, mas dentro de um quadro ampliado. “Quando vou pensar a questão da fome ou o retorno do país ao Mapa da Fome, por exemplo, estou preocupada em tentar indicar que esse cenário não existiu sempre, que ele já foi diferente, que ele está assim agora e que ele pode mudar”, diz, acrescentando que a problematização realizada por historiadores nem sempre dá respostas imediatas, mas oferece “uma análise que demanda o diálogo com outras áreas”.
Segundo a historiadora, a História do Tempo Presente está passando por muitas modificações, especialmente no Brasil, incorporado diferentes temáticas, principalmente a partir de mudanças ocorridas na sociedade, que renovam os interesses de pesquisa. “O grande desafio dos historiadores, principalmente quando estão lidando com a História do Tempo Presente ou História Contemporânea, é explicar por que as coisas estão mudando, por que elas mudaram, o que permanece e como lidamos com essas mudanças, ou seja, que tipo de perspectiva elas colocam numa determinada sociedade e numa determinada conjuntura”.
Na Vice-presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, De Sordi segue construindo um diálogo sobre o que está acontecendo atualmente na sociedade, como pesquisadora principal do projeto Cozinha solidária: dos alimentos aos direitos da cidadania, uma parceria com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Em sua pesquisa, trabalha com a hipótese de que as cozinhas solidárias ampliam a cidadania e formam e fortalecem as redes entre campo e cidade.