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Especial O Ministério da Saúde e o PNI | Fontes para a história do SUS no acervo da Casa de Oswaldo Cruz

11 set/2023

Ana Luce Girão (COC/Fiocruz)*

 
 

O Sistema Único de Saúde foi criado pela Constituição Brasileira, promulgada em outubro de 1988, a partir do princípio de que a saúde é um direito de todo o cidadão e é dever do Estado promovê-la. A universalização, que se coloca no cerne das políticas de saúde implantadas a partir de então, já estava no horizonte de alguns gestores da saúde, mas representava um contraponto ao que havia sido praticado nas últimas décadas no Brasil.

No âmbito do Sistema Nacional de Saúde, instituído pelos governos militares que comandaram o país entre 1964 e 1985, a assistência médica era função, inicialmente, do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), que acumulava também a de seguridade social. Em 1977 essa função será atribuída ao Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), autarquia federal criada pela Lei nº 6.439. Ao Ministério Saúde cabiam algumas ações campanhistas e de prevenção de agravos à saúde, com destaque para as campanhas de vacinação e controle de endemias. A assistência médica se dava de forma muito pontual por meio de alguns hospitais psiquiátricos e de tratamento da tuberculose, ou então por instituições filantrópicas como as santas casas. Além disso, a Fundação Nacional de Saúde prestava assistência médica e de saneamento básico, mas apenas nas regiões Norte e Nordeste do país. Tais funções eram desempenhadas de maneira precária em razão dos baixos recursos destinados à pasta. Desta forma, apenas os trabalhadores formais e suas famílias tinham direito à assistência médica. Segundo Escorel, Nascimento e Edler (2005)

Na década de 1970 a assistência médica financiada pela Previdência Social conheceu seu período de maior expansão em número de leitos disponíveis, em cobertura e volume de recursos arrecadados, além de dispor do maior orçamento de sua história. Entretanto, prestados pelas empresas privadas aos previdenciários, os serviços médicos eram pagos por Unidade de Serviço (US) e essa forma de pagamento tornou-se uma fonte incontrolável de corrupção (p. 61).

Neste período, mesmo ainda sob forte repressão do Estado, começam a se articular diversos movimentos sociais e a pauta dos direitos à saúde vai pouco a pouco aglutinando diferentes setores tais como sindicatos e associações profissionais de cientistas, sanitaristas e intelectuais de várias áreas, constituindo o que se chamaria de Movimento Sanitário. Este movimento, que viria a se caracterizar como resistência ao regime militar e pela proposta de uma ampla reforma sanitária, começa a se fortalecer na medida em que o próprio regime iniciava uma fase de distensão.

A segunda metade dos anos 1980 é marcada por um processo gradual de redemocratização, quando algumas das lideranças do Movimento Sanitário atingem postos-chave nas principais instituições de saúde, pondo em prática uma das principais estratégias do movimento, que era a ocupação de cargos nas instituições públicas para, a partir daí, propor e executar as reformas necessárias. Em 1985 Hésio Cordeiro, que até então exercera a presidência da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), torna-se presidente do Inamps e Sergio Arouca, um dos principais líderes do Movimento pela Reforma Sanitária, chega à presidência da Fiocruz.

No Inamps Hésio Cordeiro implanta como política prioritária as Ações Integradas de Saúde que, além de ampliar a cobertura da assistência médica, promoviam a descentralização da administração das políticas de saúde, que se daria em nível regional, estadual e municipal, além de convocar sociedade civil organizada e as universidades a participarem dos processos decisórios em nível local.

O ano de 1986 é marcado pela realização da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), contando com intensa participação de Sergio Arouca e Hésio Cordeiro. Na ocasião se discutiu amplamente a universalização do acesso à saúde, o aumento do financiamento deste setor, bem como a criação de instâncias institucionais de participação social. Um dos principais desdobramentos desta conferência foi a instituição da Comissão Nacional da Reforma Sanitária com uma composição equânime entre sociedade civil e governo, e que teria a incumbência de elaborar o projeto do Sistema Único de Saúde da nova Constituição.

A IX Conferência Nacional de Saúde aconteceu em 1992 com a função de propor a consolidação do SUS (Sistema Único de Saúde) a partir da descentralização, da participação popular e do protagonismo municipal, apontando ainda para a extinção definitiva do Inamps e para a ampliação do financiamento público do setor saúde.

O acervo arquivístico da Casa de Oswaldo Cruz, disponível na Base Arch, possui amplo conjunto de fontes para a história do SUS tanto nos arquivos e coleções institucionais da própria Fiocruz, como nos arquivos de eventos, como as Conferências Nacionais de Saúde, e nos arquivos e coleções pessoais de médicos, sanitaristas, gestores, cientistas da área biomédica e das ciências sociais. As fontes cobrem o período que vai da década de 1960 até 2020, espalhadas entre cartas, ofícios, telegramas, discursos, relatórios de atividades, informativos, atas e pautas de reuniões, portarias, decretos, recortes de jornais, filmes, artigos científicos, depoimentos orais, plantas e mapas, entre outros. Neste artigo optaremos por focalizar os arquivos pessoais e os conjuntos relativos às Conferências Nacionais de Saúde e a Comissão Nacional de Reforma Sanitária.

Entre os arquivos pessoais merecem destaque três conjuntos, referentes a Hésio Cordeiro, David Capistrano e Romualdo Dâmaso.

O Fundo Hésio Cordeiro, doado pelo próprio titular à Casa de Oswaldo Cruz em 2006, registra a trajetória deste médico sanitarista que foi também uma liderança importante no movimento sanitário. Após uma estadia nos Estados Unidos, onde entrou em contato com as ideias de Juan César Garcia e o campo da medicina social, em sua volta ao Brasil foi um dos fundadores, ao lado de Sergio Arouca, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), que ajudou a formar uma nova geração de sanitaristas e intelectuais no campo da saúde pública. Após doutorar-se em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP), assumiu a direção do IMS/Uerj e, em 1985 chegou à presidência do Inamps. Durante este período coordenou os trabalhos da VIII Conferência Nacional de Saúde. Na década de 1990 foi reitor da Uerj e atuou também como assessor técnico do Ministério da Saúde para o Programa Saúde da Família, entre outros cargos.

Suas atividades como docente e gestor estão amplamente documentadas nos seis dossiês que compõem o Grupo Gestão de Instituições de Ensino, Previdência e Assistência Social. No dossiê Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, que faz parte do grupo Relações Interinstitucionais e Intergrupos, podemos encontrar cartões, exposições de motivos, informativos, jornais, ofícios, propostas, tabelas, telegramas, relatórios, ofícios-circulares, folhetos e projetos que documentam sua atuação na implantação do SUS entre 1989 e 1990. Merece destaque ainda naquele grupo o dossiê Pólos de capacitação, formação e educação permanente para pessoal de Saúde da Família. Projeto Reforço à Organização do Sistema Único de Saúde (ReforSUS), com documentos produzidos ente 1995 e 1999 sobre este programa.

Os documentos do Fundo David Capistrano, doado pela família à Casa de Oswaldo Cruz em 2019, referem-se à atuação deste médico sanitarista como secretário de Saúde de Bauru, entre 1984 e 1986, ocasião em que pôde participar ativamente da VIII Conferência Nacional de Saúde. Foi ainda secretário de Higiene e Saúde de Santos, cargo que exerceu entre 1989 e 1992 e prefeito da mesma cidade, entre 1993 e 1996, quando se notabilizou pela implantação de políticas de controle e prevenção do HIV/Aids e pela luta antimanicomial. Tais eventos estão descritos no Grupo Gestão Institucional.

Sua formação como médico pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1972, suas especializações em Saúde Pública, Planejamento em Saúde e Epidemiologia Clínica estão registradas no Grupo Formação e Administração da Carreira.

O Subgrupo Manifestações Póstumas, que faz parte do Grupo Vida Pessoal, podemos encontrar documentos textuais, iconográficos e audiovisuais que retratam o reconhecimento de seus pares e dos cidadãos santistas por suas lutas pela implantação de políticas de saúde que atendessem à diversidade, à universalidade e à equidade social, bem como ao avanço da implantação do SUS.

No arquivo pessoal do sociólogo e cientista político Romualdo Dâmaso, que foi professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, da Escola de Enfermagem da UFRJ e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, podemos encontrar, no Subgrupo Programação da Pesquisa, relatórios de atividades, questionários, entrevistas, ensaios, planos de trabalho, citações, programas de eventos sobre o Projeto Montes Claros, considerado a gênese do SUS no Brasil. Durante essa experiência, ocorrida na segunda metade dos anos 1970, foram implantadas novas práticas de gestão e de planejamento das instituições públicas de saúde, que incluíam a participação cidadã e dos trabalhadores nos processos decisivos, fortalecendo assim a municipalização e a autonomia local. Já no dossiê Coordenador do Projeto Produção do Conhecimento em Saúde Coletiva, que faz parte do Subgrupo Coordenação da Pesquisa, há artigos científicos, livros, dissertações e teses sobre vários temas ligados ao SUS.

Com o objetivo de propor critérios para a reformulação do Sistema Nacional de Saúde junto à Assembleia Nacional Constituinte, a VIII Conferência Nacional de Saúde se reuniu em Brasília entre 17 e 21 de março de 1986. O Fundo da VIII Conferência Nacional de Saúde foi doado pelo pesquisador da Fiocruz Arlindo Fábio Gomes dos Santos, possui cerca de 1,5 metro linear de documentos textuais, iconográficos e sonoros, situados entre 1982 e 1989. Os documentos foram produzidos pela Comissão Organizadora da VIII CNS e estão divididos nas séries Gestão de Eventos e Relações Interinstitucionais e Intergrupos que registram os eventos preparatórios para a reunião, a participação da sociedade civil organizada, de partidos políticos, de sindicatos e associações de profissionais de saúde, os debates ocorridos nas sessões sobre descentralização, municipalização, universalização, bem como as conferências setoriais como as de Saúde dos Trabalhadores, a de Saúde e Direitos da Mulher, a de Recursos Humanos para a Saúde e a de Proteção à Saúde Indígena.

Após o seu encerramento, uma das recomendações explicitadas em seu relatório final foi a criação da Comissão Nacional de Reforma Sanitária, formada pelos ministros da Educação, Saúde e Previdência Social, mas também por representantes de trabalhadores e da sociedade civil. Uma das suas principais funções seria a de propor à Assembleia Constituinte uma ampla reforma sanitária que resultasse na criação do Sistema Único de Saúde voltado para a universalização da saúde em todo o país. O Fundo Comissão Nacional de Reforma Sanitária, também doado por Arlindo Gomes dos Santos, que foi seu coordenador, é um amplo conjunto formado por documentos textuais, sonoros e audiovisuais que cobrem todo seu período de funcionamento, que foi de 1986 a 1987. Este fundo está dividido nas séries Gestão Administrativa e Relações Interinstitucionais e Intergrupos. Nesta última merecem destaque os dossiês Propostas para o Componente Saúde do Novo Texto Constitucional, com 468 páginas. Na Série Gestão Administrativa, o destaque vai para o Dossiê Filmes, que contêm quatro títulos: “Saúde Brasil: Questão constitucional”, de 19 minutos; “VII Reunião da Comissão da Reforma Sanitária”, de 46 minutos; “Saúde Constituinte”, de 28 minutos e “Rumo ao Sistema Único de Saúde”, de 17 minutos.

Sob o tema “Saúde: municipalização é o caminho”, foi convocada a IX Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu entre 9 e 14 de agosto de 1992, e foi presidida pelo ministro da Saúde Adib Jatene. A Conferência Nacional foi precedida por vários eventos preparatórios nos âmbitos estaduais e municipais, que estão documentados em diversos dossiês que compõem a Série Gestão de Eventos, entre os quais encontramos as conferências ocorridas em alguns municípios do estado de São Paulo, incluindo a capital e as conferências estaduais de Goiás, Ceará, Rio de Janeiro etc., além dos encontros regionais de secretários de Saúde. A participação de parlamentares é vista no relatório de atividades desse grupo, presente no Dossiê Etapa Nacional do Projeto Democracia e Saúde – Reunião de Parlamentares. O Fundo IX Conferência Nacional de Saúde foi doado por José Eri Osório de Medeiros, coordenador da Comissão Organizadora, em 1996. O conjunto é bem extenso, com mais de 13 metros lineares de documentos textuais, além de documentos iconográficos, cartográficos, sonoros, audiovisuais e eletrônicos.

A exemplo da VIII CNS, esta também contou com ampla participação popular através das organizações da sociedade civil de profissionais da saúde, além de autoridades governamentais de estados e municípios. As reuniões e sessões plenárias podem ser consultadas nos dossiês de relatório da Série Gestão de Eventos, que contém ainda projetos, cartas, programas de eventos, instruções normativas e prospectos relativos ao Projeto do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde – Conasems, órgão criado em 1988 para promover a descentralização e a democratização dos processos decisórios do setor da Saúde, e os Sistemas Locais de Saúde (Silos), responsáveis pela implantação das ações integradas de saúde em nível local. No Dossiê Concurso de marca, reportagens, fotografias e redações, além de documentos textuais e iconográficos, podemos encontrar três filmes, “Estação Ciência. Programa: Brasil, um país doente?”, “Estação Ciência. Programa: Malária, o mal da humanidade” e “Municipalização da Saúde: Saneamento Básico no Município de Salto Veloso/SC”, produtos de reportagens realizadas por jornalistas que foram enviados para participar de um concurso promovido pela Conferência.

Entre os conjuntos documentais de outras instituições encontra-se o Fundo Fundação Serviços de Saúde Pública, que registra as atividades desta instituição entre 1940 e 1990, ano em que foi absorvida pela Fundação Nacional de Saúde. Criada inicialmente com a denominação de Serviço Especial de Saúde Pública para promover ações de saneamento e combate às endemias rurais na Amazônia, expandiu suas ações para todo o território nacional a partir dos anos 1950, e em 1960 passa a se chamar Fundação Serviço Especial de Saúde Pública (FSESP), subordinada ao Ministério da Saúde. A transferência dos cerca de 23 metros lineares de documentos textuais, além de documentos iconográficos, cartográficos, audiovisuais e tridimensionais para a Casa de Oswaldo Cruz aconteceu em dois momentos distintos, em 1990 e em 2001. Em ambos os momentos os documentos vieram com uma organização prévia, que foi mantida pelos profissionais do Departamento de Arquivo e Documentação. O conjunto está divido nas Seções Administração e Assistência Médico-Sanitária.

No Dossiê Sobre o Sistema Único de Saúde, que faz parte da Série Organização e Funcionamento da Seção Administração, encontra-se um documento que registra a ação desta instituição no processo de implantação do SUS. No Dossiê sobre as principais atividades de saúde e saneamento da FSESP no período de 1985 a 1989 e as propostas institucionais para o Sistema Único de Saúde estão previstas as atividades de saneamento propostas pelas FSESP no período.

Na Série Saúde e Saneamento da Seção Assistência Médico-Sanitária encontramos o Dossiê Implantação do Sistema Único de Saúde, com as resoluções institucionais para esta atividade no ano de 1987.

No Fundo Casa de Oswaldo Cruz há ainda diversos documentos produzidos pelos projetos de pesquisa da unidade que originaram um belíssimo acervo de depoimentos orais, já digitalizados. Pela sua importância, diversidade e proporção merecem um novo artigo, a ser enviado proximamente.

"Ana Luce Girão é professora e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Referências:

BASE ARCH. Departamento de Arquivo e Documentação. Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Disponível em: https://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/. Acesso em: 9 set. 2023.

BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. As Conferências Nacionais de Saúde: evolução e perspectivas. Brasília: Conass, 2009.

ESCOREL, Sarah. História das políticas de saúde no Brasil de 1964 a 1990: do golpe militar à reforma sanitária. In: GIOVANELLA, Lígia et al. (ed.) Políticas e sistemas de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. p. 323-363.

ESCOREL, Sara, NASCIMENTO, Dilene R. e EDLER, Flávio C.  As origens da Reforma Sanitária e do SUS. In: LIMA, Nísia Trindade; GERSHMAN, Silvia; EDLER, Flávio (org.) Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.

PAIVA, Carlos Henrique Assunção; REIS, José Roberto Franco; ARAÚJO NETO, Luiz Alves (org.). Hésio Cordeiro e a história da saúde no Brasil. Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: https://ohs.coc.fiocruz.br/wpcontent/uploads/2022/12/LivroHesioCordeiro.pdf. Acesso em: 3 set. 2023.