Com o objetivo de contribuir para o campo da saúde da mulher, colaborando para o avanço das discussões sobre o cenário da assistência ao parto e os direitos reprodutivos, a Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) promoveu o Seminário Internacional Medicalização do Parto, fruto do Programa de Excelência em Pesquisa (Proep) Medicalização dos Nascimentos (CNPq/Fiocruz). Durante os dois dias de evento, realizado em 22 e 23 de outubro, especialistas brasileiros e estrangeiros apresentaram um panorama do campo da história do nascimento e do parto e debateram o excesso de intervenções obstétricas e o baixo uso de boas práticas na atenção ao parto.
Participaram da mesa de abertura, no dia 22/10, Luiz Antônio Teixeira, historiador da COC e um dos organizadores do seminário; Magali Romero Sá, vice-diretora de Pesquisa e Educação da COC; e Nísia Trindade Lima, presidente Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Este evento aproxima questões históricas a outras que são relevantes no processo de pensar o parto, a medicalização e todas as transformações e tensões que envolvem esse campo, uma vez que nos ajuda a refletir tanto as origens quanto as mudanças neste processo”, destacou Luiz Antônio. “A Casa de Oswaldo Cruz tem como finalidade incentivar projetos inovadores que são aplicados na sociedade e este seminário é fruto de um desses projetos. Que possamos alcançar resultados profícuos e novas parcerias promissoras”, disse Magali. “O Observatório de História e Saúde pensa a perspectiva histórica a partir de questões interdisciplinares e da atualidade, uma das temáticas que tem sido discutida na agenda de políticas públicas e de pesquisa, na Fiocruz, é o nascimento e o debate sobre a medicalização do parto, temas desse encontro”, finalizou Nísia Trindade Lima.
Locais e cenários do parto
A mesa ‘Locais e cenários do parto’ deu início aos debates do seminário. Antropóloga e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Eliane Muller apresentou a experiência do Grupo de Estudos e Pesquisa ‘Narrativas do Nascer’, realizado em parceria com o Grupo Curumim, Instituto Nômades e a Associações de Parteiras de Jaboatão dos Guararapes e de Caruaru, que realiza ações de valorização dos saberes das parteiras tradicionais e visa compreender como as parteiras entendem o seu papel. A partir do exemplo de Dona Prazeres, 80 anos, parteira do Jaboatão dos Guararapes com formação em enfermagem obstétrica, reconhecida como Patrimônio Vivo de Pernambuco, Muller destacou que, além da parteiria tradicional, essas mulheres possuem outras atuações que reforçam os seus papéis de referência e liderança na comunidade. “Além da parteiria tradicional, essas mulheres possuem uma relação integral com as parturientes que vai além do momento do parto, pois assumem outras funções, acompanhando todo o ciclo reprodutivo da mulher, sendo sabedoras sobre menstruação, problemas de fertilidade, além de atuar na mediação de conflitos e no auxílio à busca de direitos da população”, disse. “As parteiras tradicionais transitam entre dois campos dos saberes, o tradicional e o biomédico, uma vez que se relacionam, principalmente, com o Sistema Único de Saúde (SUS), encaminhando as mulheres e orientando para que façam pré-natal, e atuam com cuidados em saúde que não cobertos pelo SUS, realizando atendimento nas casas das parturientes, indicando banhos, realizando curativos. Estes saberes tradicionais são perpetuados a partir das relações das parteiras com suas comunidades”, completou. Para a especialista, é necessário discutir o que chamou de hierarquia de saberes e o local ocupado pelas parteiras nessa hierarquia. “É necessário refletir sobre o quanto a biomedicina poderia se beneficiar se abrindo para outros saberes, não seria esse o momento de abarcar o cuidado com uma categoria fundamental com a assistência ao parto, pois o que as parteiras trazem de relevante para pensarmos os cenários e locais do parto é esse paradigma do cuidado, do acolhimento, que ainda é algo que a sociedade carece”, defendeu Eliana Muller.
Em seguida, Rosamaria Carneiro, antropóloga e professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UNB), falou sobre cenários de parto na contemporaneidade e o que representam em termos de políticas, emoções e hierarquias sociais. A especialista explicou que, apesar da maioria dos nascimentos no Brasil acontecerem em instituições hospitalares, sendo 80% realizados na rede pública de saúde e 20% na rede privada, o país conta com outros cenários, menos frequentes, para o nascimento: os Centros de Parto Natural, as Casas de Parto e as casas das parturientes. “As Casas de Parto, que ainda são poucas e muito aquém do previsto pela legislação, funcionam de maneira independente de qualquer outro serviço de saúde, são geridas por equipes de enfermagem, sem a figura do médico e sem a possibilidade de cirurgia, e atuam como um ambiente de atenção ao parto de baixo risco, com protocolos particulares. Já os Centros de Parto Natural possuem serviços de saúde mais amplos e foram desenhados legal e politicamente para atenderem também partos de baixo risco. Havia a expectativa inicial da abertura de 65 propostas até o final de 2015, no entanto, até o final de 2016, somente 15 haviam sido habilitados junto ao Ministério da Saúde. Ambos atendem mulheres de camadas populares que buscam naqueles locais a dignidade de terem seus filhos sem serem agredidas verbal e emocionalmente”, explicou.
Rosamaria Carneiro lembrou que os bebês passaram e seguem nascendo nascendo em casa, seguem porque em alguns lugares do Brasil não existe outra opção, pois falta barco, gasolina, hospital próximo, médicos, enfermeiras ou tempo. Para além desses casos, segundo Carneiro, um número cada vez maior de bebês tem nascido em casa, nas metrópoles, por opção de suas mães e de seus pais. “Esse é o grupo que se diferencia e que concentra as mulheres de camadas médias, que portam poder aquisitivo e custeiam o profissional especializado que se desloca até as suas casas. De modo geral, são mulheres diferentes entre si, em termos de profissão, espiritualidade e estilo de vida, mas muito próximas em termos de letramento, acesso à internet, postura crítica diante da medicina moderna, raça branca e empoderadas sobre a humanização do nascimento”, descreveu. “Esses seriam, em linhas gerais, os locais e os cenários de parto no Brasil contemporâneo. Alguns mais expressivos outros considerados dissidentes, alguns desejados e outros possíveis. Todos atravessados pelas questões de classe social e com significados diversos. Parir em casa é um privilégio para poucas mulheres no Brasil, para as que podem custear, ou, então, um perigo e o abandono para aquelas que precisariam ter acesso ao sistema de saúde, mas não tem, pois, as mãos do estado não chegam até elas”, finalizou.
As atividades do dia 22 de outubro contaram ainda com as mesas “Práticas e intervenções no parto”, que recebeu as especialistas Maria do Carmo Leal (ENSP/ Fiocruz), Carla Polido (UFSCAR) e Marina Nucci (COC/ Fiocruz); e “Saberes sobre o parto”, com Ariana Santos (Sankofa), Fadynha (Instituto Aurora), Gabriela Hugues (USP), Heloísa Lessa (Parto Ecológico), Luanda Lima (“Mães e crias na luta” e IFF/ Fiocruz) e Marcos Dias (IFF/ Fiocruz).
Medicalização do parto
A conferência internacional “Medicalização do Parto” abriu as atividades do segundo dia de Seminário, 23 de outubro, com a pesquisadora Sheila Cosminsky, da University Of New Jersey, dos Estados Unidos. A especialista falou sobre a mudança no conhecimento e na prática obstétrica, na Guatemala, a partir da comparação das atividades de uma mãe e uma filha, ambas parteiras, e mostrou como elas se adaptaram às pressões da medicalização e da modernização da obstetrícia. “A filha, submetida às crescentes regulamentações governamentais, possui mais facilidade para negociar com os profissionais da área biomédica. Já a mãe prioriza o conhecimento tradicional das parteiras e os critérios e as escolhas pessoais das mulheres para a realização das práticas de parto”, disse. “Mesmo assim, a aceitação da filha ao modelo biomédico não é integral, pois ela reconhece as limitações sob as quais ela e seus clientes vivem, e também insiste na superioridade de outras práticas tradicionais, como a massagem”, completou. De acordo com a especialista, biomedicalização é contrariada por um processo de sacralização. “Neste povoado local, a atividade das parteiras é vista como um chamado divino, o dom que precisa ser exercido, o que possibilita às parteiras contestar a autoridade biomédica e prestar cuidados significativos às mulheres”, finalizou.
Já durante a mesa “Violência obstétrica”, Janaina Aguiar, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), discutiu o conceito de violência obstétrica e a banalização da violência disfarçada de cuidado. De acordo com Aguiar, o que acontece nos serviços de saúde é reflexo do que acontece em nossa sociedade e do quanto banalizamos a injustiça social e o sofrimento do outro. “Quando um profissional é violento com a sua paciente, ele não só reproduz a sociedade, mas produz um novo tipo de violência, uma vez que ele usa a violência como um mal necessário, a violência como instrumento do seu trabalho, a violência travestida em cuidado, em boa prática”, ressaltou. Ainda segundo a especialista, há uma banalização da violência institucional através de jargões de cunho moralista e discriminatório, usados como brincadeiras pelos profissionais, e no uso de ameaças como forma de persuadir a paciente e na naturalização da dor do parto como preço a ser pago para se tornar mãe. “A violência institucional em maternidades é, fundamentalmente, uma violência de gênero que, pautada por significados culturais estereotipados de desvalorização e submissão da mulher, a discrimina por sua condição de gênero e a toma como objeto das ações de outrem” disse Janaina, completando que “Coação, ameaça, o uso da força, humilhação, entre outros maus tratos, são vistos como prática educativa para obter o controle sobre a paciente, porque é para o bem dela. Desta forma, o mal perde o seu status de mau, assume o aspecto de cuidado, e a violência é invisibilizada”. O debate sobre o tema contou também com as especialistas Carmen Simone Diniz (USP) e Cassia Roth (University of Georgia, EUA).
O encerramento do evento ficou por conta do debate sobre “Nascimento e risco” com as especialistas Andreza Nakano (UFRJ), Maria Openshaw (Partners in Health, EUA) e Isabel Cordova (Nazareth College, EUA).