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Especial O Ministério da Saúde e o PNI | O Ministério da Saúde e a pandemia de Covid-19: crises e reconstruções

04 set/2023

Luiz Alves Araújo Neto (COC/Fiocruz)*

 
 

A pandemia de Covid-19 representou, sem dúvidas, um dos maiores desafios do Ministério da Saúde (MS) em suas sete décadas de existência. Seja pela dimensão da emergência sanitária, com elevadíssimos índices de mortalidade e incidência e impactos variados no tecido social, seja pelo cenário político-cultural de ocorrência dessa crise, marcada por governos negacionistas e populistas com forte resistência a medidas de proteção e prevenção que tivessem impactos econômicos imediatos, a Covid-19 tornou ainda mais nítido certo estado de crise vivenciado pelo setor saúde. Nesse entremeio, a gestão do Ministério, ocupada por quatro pessoas entre 2020 e 2022 (Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich, Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga), teve um papel central na desastrosa resposta brasileira à pandemia, resultando em mais de 700 mil mortes, sem contar a imensa subnotificação.

Diversas avaliações dessa atuação têm sido realizadas desde o próprio curso da pandemia, principalmente com o intuito de denunciar omissões e ações potencialmente criminosas por parte de atores e entes públicos na gestão da crise sanitária. A própria Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o tema, a CPI da Covid, marcou bem um panorama acerca do que foi feito pelo Ministério em resposta à pandemia, com várias indicações de crimes e pedidos de indiciamentos não levados adiante pela Procuradoria Geral da República. A gestão federal da crise sanitária, entretanto e infelizmente, foi apenas parte de um processo mais amplo de desmonte e enfraquecimento de programas e políticas referenciais do Ministério da Saúde nos últimos anos, com encerramento de departamentos e conselhos e a reorganização administrativa, entre outros aspectos.

Desde o início do terceiro governo Lula, mobilizações em torno de uma reconstrução do aparato estatal e do próprio país têm dado relevância à saúde não só como pauta política, mas também valor intrínseco à vida democrática. Nesse sentido, um breve mapeamento de elementos componentes da crise na qual a pasta mergulhou durante o governo anterior parece interessante e necessário, não somente para indicar alguns percursos da reconstrução, mas para refletir sobre seus possíveis – talvez prováveis – limites. De saída, é necessário sublinhar que parte dos problemas enfrentados pelo Ministério e pelo Sistema Único de Saúde (SUS) durante a pandemia envolvem desafios estruturais e estruturantes do setor saúde no país, o que não exime ou diminui a responsabilidade da gestão Bolsonaro.

Um primeiro ponto a ser destacado diz respeito ao Programa Nacional de Imunizações, o PNI, que completa 50 anos de existência em 2023. Criado durante o regime militar, o programa teve papel central na resposta brasileira à pandemia de Covid-19, sobretudo a partir de 2021, quando a vacinação em massa se tornou uma realidade. Entretanto, o percurso da imunização foi bastante acidentado, desde a resistência do governo federal à compra de alguns imunizantes a questionamentos quanto à adequação do uso de vacinas em determinadas faixas populacionais – caso das crianças –, passando pelo subfinanciamento do PNI. Esse cenário levou ao pedido de demissão de Francieli Fantinato, coordenadora do programa entre outubro de 2019 e junho de 2021, e a uma desmobilização do programa, resultando em obstáculos logísticos e gerenciais para a vacinação em território nacional.

Embora o movimento pela imunização tenha obtido números satisfatórios em 2021 e 2022, período de aplicação das primeiras doses e reforços dos imunizantes, a cobertura vacinal tornou-se um problema e um desafio para a saúde pública brasileira, fenômeno notado pelos baixos índices de aplicação da vacina bivalente para a Covid-19, a despeito de forte campanha mobilizada pelo Ministério. Esse quadro é indicativo do efeito prejudicial de um governo que endossou movimentos de crítica às vacinas e que semeou dúvidas quanto à eficácia e adequação dessa estratégia de prevenção primária. Além disso, traz à mesa a importância de pensar a adesão vacinal além da comunicação e educação, mas também como pauta da disputa de valores políticos e morais no campo da saúde.

Em outro espectro, a resposta brasileira à Covid-19 evidenciou grandes problemas no sistema de vigilância epidemiológica, principalmente quanto à notificação de casos e à divulgação dos dados de morbimortalidade pela doença. Ainda em 2020, o Ministério da Saúde, na gestão Pazuello, decidiu não divulgar os boletins epidemiológicos diários da doença, sob a argumentação de que seria necessário realizar uma recontagem dos casos e verificar possíveis erros de notificação. Em seguida, uma nova forma de apresentação das estatísticas foi adotada, privilegiando os números de pacientes recuperados em relação ao número de mortes. Em paralelo, consórcio de órgãos de imprensa e os conselhos de secretários municipais e estaduais de saúde (Conasems e Conass) se tornaram as referências para fornecimento de dados sobre a doença, um cenário bastante problemático para o Ministério, responsável pela gestão do sistema de vigilância epidemiológica no país.

De modo similar ao caso do PNI, a crise da vigilância epidemiológica vivida na resposta à pandemia possui elementos estruturais importantes e que precisam ser levados em consideração em movimentos de reconstrução do país. Notificar, registrar e quantificar doenças tem sido um problema recorrente em diferentes momentos da história do Brasil, envolvendo tensões sobre a capacidade de gerenciamento de dados pelo Estado, da autonomia da prática médica, da experiência do adoecimento e das representações sociais das doenças, do desenvolvimento de métodos de quantificação e análise, entre outros. Em termos da gestão da saúde pública, a experiência pandêmica mostrou como um sistema de vigilância com muitos gargalos compromete a resposta a emergências sanitárias, dificultando o mapeamento da transmissão, a testagem em massa, o seguimento de casos e o planejamento de estratégias.

Por fim, outro aspecto importante evidenciado durante a pandemia diz respeito à tensão entre o Ministério (como órgão principal da saúde pública) e a profissão médica, principalmente no âmbito de seus órgãos de representação e associação, caso do Conselho Federal de Medicina. O caso da cloroquina e do “tratamento precoce” não só foi emblemático quanto às limitações do caráter normativo do MS como tornou clara a longa divergência de perspectiva entre a gestão da saúde e a prática da medicina, um campo com características socioprofissionais de inspiração liberal e nobiliárquica (por contraditório que seja). A discussão sobre autonomia dos médicos envolve uma tensão acerca da resistência a mecanismos regulatórios no cotidiano da prática médica, bem como ao esforço de manutenção de uma primazia do especialista na tomada de decisões em saúde.

Ainda que o episódio vivenciado durante a pandemia represente uma hipérbole nessa relação entre profissão médica e saúde pública, talvez até uma distorção, esse conflito é ponto estrutural para uma agenda de reconstrução da pasta e fortalecimento do sistema de saúde. Uma ramificação clara desse problema está no debate em torno do Programa Mais Médicos e a oferta de serviços de saúde no interior do Brasil, especialmente em áreas de mais difícil acesso. Soma-se às pressões profissionais mobilizadas pelos médicos o seu papel na formação de posições e entendimentos sobre saúde e adoecimento entre usuários e pacientes, exatamente devido ao papel social atribuído a esse profissional ao longo da história brasileira. Nesse sentido, a pauta do ensino médico e da formação de recursos humanos em saúde é central para a reorganização do setor no país.

Existem diversos outros pontos que demandariam atenção para uma discussão sobre o papel do Ministério da Saúde na resposta à pandemia de Covid-19 e as expectativas quanto à sua reconstrução. Em uma história de sete décadas que se confunde com a própria trajetória da saúde pública no Brasil, é importante pensar o caráter estrutural dos desafios enfrentados pelo Ministério e pelo SUS para que respostas de maior alcance e profundidade possam ser traçadas. Talvez assim seja possível resistir melhor a conduções negacionistas e genocidas em eventuais futuras emergências sanitárias.

*Luiz Alves Araújo Neto é historiador, doutor em História das Ciências e da Saúde. Coordenador ajunto do Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz e bolsista de pós-doutorado da FAPERJ (PDR-10). Atua nas áreas de História da Medicina e da Saúde Pública, Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, e Saúde Coletiva.