Cristina Fonseca e Wanda Hamilton (COC/Fiocruz)*
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Em julho de 2023 o Ministério da Saúde (MS) completa 70 anos de sua criação como uma pasta autônoma no interior do arcabouço institucional da República, tendo sido desmembrado do então Ministério da Educação e Saúde (MES) pela Lei nº 1920, de 25 de julho de 1953. Essa alteração representou um marco na história da politica de saúde no Brasil e consolidou uma antiga aspiração demandada por diferentes segmentos da sociedade brasileira. Demonstrou também a importância do ambiente político-partidário no processo de criação institucional. O contexto político e os grupos de interesses atuantes naquele momento foram fatores decisivos para essa conquista, tornando evidente a importância do campo político no processo de decisões institucionais.
Hoje, neste ano de 2023, depois de 70 anos ao longo dos quais o Ministério da Saúde passou por importantes reformas institucionais, transformando e expandindo seu campo de atuação, suas lideranças e suas equipes se deparam com novos e enormes desafios, sob o olhar atento da sociedade brasileira. A necessidade e a urgência de enfrentar os graves e diversos problemas de saúde observados no atual contexto, intensificados em particular pelas perdas e desafios impostos pela pandemia de Covid-19, acentuam uma vez mais a importância da dimensão pública e política no processo de gestão institucional da saúde. A realidade atual realça e traz novamente para o centro do debate as antigas discussões sobre a relação entre ciência, saúde e sociedade, entre conhecimento técnico e política. Polêmicas que podem ser observadas ao longo de toda a trajetória de institucionalização do campo da saúde pública, desde o início do século XX. Relembrar o contexto político que culminou com a criação do MS nos ajuda a refletir sobre os desafios que ainda são latentes nesta trajetória institucional. Apesar das grandes conquistas que alcançamos neste percurso – com destaque inquestionável para o Sistema Único de Saúde (SUS) – determinados conflitos, determinadas tensões permanecem vivas e muitas vezes incompreendidas nesse diálogo entre ciência e política.
Antes de 1953: um sonho longevo
As propostas para criação de um Ministério da Saúde atravessaram várias décadas ao longo de toda a primeira metade do século passado. Em 1910, a primeira delas aparece em um projeto de lei que passou por intensos debates no Congresso Nacional, sem no entanto obter os votos necessários para sua aprovação. A proposta foi alvo de forte oposição das oligarquias rurais, que temiam a interferência do governo federal e o enfraquecimento da autonomia dos estados. Como solução para acomodar tais interesses políticos divergentes foi aprovada uma importante reforma no setor da saúde, que levou à criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em 1920, em um primeiro movimento de fortalecer a institucionalização e centralização das ações de saúde pública (Hochman, 1998).
Logo após a Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas ao governo acompanhamos um processo de transição e transformação nas antigas estruturas de poder oligárquico nos estados, mediante um gradual fortalecimento do projeto de centralização política. Ganha força, nesta discussão, a proposta de uma reforma nas estruturas do Estado e, particularmente no campo da saúde, a ideia de intensificar a coordenação das ações de saúde em todo o território nacional. O primeiro resultado dessa diretriz seria a criação de uma pasta ministerial para a saúde pública, que, apesar de vinculada ao setor da educação, abriria caminho para a construção gradativa de um importante arcabouço institucional. O Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp) ainda passaria por uma importante reforma em 1937, sob a gestão de Gustavo Capanema, na qual seriam consolidados dois grandes departamentos dentro da estrutura administrativa: o Departamento Nacional de Saúde e o Departamento Nacional de Educação (Fonseca, 2007).
A partir de 1945 com a redemocratização do país, cresce o debate sobre a importância da criação dessa agência estatal entre médicos e sanitaristas em atividade no setor público. A dificuldade de identificar movimentos sociais relevantes que, nesse período, demandassem a intervenção do Estado na área da saúde e o aspecto eminentemente técnico que assumiriam os debates em torno das condições sanitárias nacionais, transformaram médicos e sanitaristas em formuladores privilegiados das políticas do setor, realçando as precárias condições de saúde observadas entre a maioria da população brasileira.
No decorrer do ano seguinte outros atores vinculados ao campo político-partidário passaram a contribuir com esse debate, formulando e disputando projetos para o setor da saúde. Tanto na Assembléia Nacional Constituinte, instaurada em 1946, como na Comissão de Saúde Pública da Câmara Federal (CSP) observou-se forte mobilização em defesa da criação do Ministério da Saúde. Essa proposta contou com o apoio do então ministro da Educação e Saúde, Clemente Mariani, que encarregou quadros técnicos do Departamento Nacional de Saúde de elaborar um anteprojeto propondo a separação das duas pastas. Entretanto, Mariani deixaria o ministério em maio de 1950 sem ter conseguido que o projeto fosse enviado ao Congresso Nacional. Diante dessa situação, agravada pelo fato de que se aproximava o fim do mandato presidencial de Eurico Dutra, o deputado Rui Santos apresentou um projeto de sua autoria propondo a criação do Ministério da Saúde e Assistência. Votado na Câmara em regime de urgência, o projeto foi aprovado em janeiro de 1951, sendo posteriormente enviado ao Senado (Hamilton e Fonseca, 2003).
Grande parte dos médicos e sanitaristas concordava com o formato institucional da nova pasta proposto por Rui Santos, que previa a manutenção do modelo do Departamento Nacional de Saúde (DNS) e priorizava a atuação nas áreas rurais. O ponto de discordância entre deputados e sanitaristas se encontrava na definição dos critérios para a ocupação dos cargos – inclusive o perfil do ministro da pasta –, que, segundo os médicos, deveriam ser ocupados por técnicos com formação especializada e não por políticos vinculados a interesses partidários. O projeto seguia os trâmites para aprovação no Senado quando a eleição de Getúlio Vargas para a presidência da República alterou o cenário político.
O fim do consenso
Após sua posse em 1951, Getúlio Vargas procurou fortalecer a orientação “conciliadora” que havia contribuído para sua vitória eleitoral. Entretanto, no decorrer de seu mandato acentuaram-se os pontos de instabilidade demonstrando que sua força política individual não assegurava uma articulação partidária que desse sustentação ao governo, fragilizando a relação entre Executivo e Legislativo. Se, por um lado, a máquina herdada do período autoritário e a presença na arena política de antigos aliados e colaboradores eram indícios que favoreciam seu controle sobre a dinâmica política, por outro, as regras constitucionais definidas em 1946 fortaleciam o Legislativo. Diante deste cenário, Vargas conclamou todos os partidos a participar de um projeto de reestruturação da máquina administrativa federal, montando uma Comissão Interpartidária para a Reforma Administrativa (Cira). Seu objetivo era articular uma profunda reforma do sistema administrativo da União para fazer frente aos múltiplos e complexos problemas de interesse nacional e, ao mesmo tempo, incrementar a intervenção do Estado por meio de coordenação, controle e planejamento da economia brasileira (Hamilton e Fonseca, 2003).
Os projetos elaborados pelo Poder Legislativo e Executivo relativos à Saúde eram similares, prevendo basicamente a transferência de órgãos e serviços referentes à saúde pública pertencentes ao então MES para o novo MS, evidenciando uma afinidade entre as propostas dos deputados que compunham a Comissão de Saúde Pública da Câmara Federal e técnicos do DNS que participaram da elaboração do anteprojeto de reorganização do ministério. No entanto, ao ser inserido na recém-criada Comissão Interpartidária o debate se ampliou, passou a envolver novos atores políticos e a agenda se tornou mais abrangente, incorporando temas relativos ao funcionamento do sistema administrativo federal, marcado por interesses político-partidários. As discussões afastaram-se das posições institucionais defendidas por médicos e sanitaristas, e o consenso inicial em favor da criação do Ministério da Saúde foi se desfazendo à medida que surgiam várias propostas em disputa, defendidas pelas diversas lideranças políticas que compunham a comissão. O impasse que impedia o encerramento das atividades da Cira, gerado pela existência de uma multiplicidade de proposições para os setores de saúde e assistência médica veiculadas pelos partidos políticos, foi superado quando seus membros aprovaram por unanimidade de votos a proposta de Gustavo Capanema, que previa a criação do Ministério dos Serviços Sociais, reunindo as atribuições do Ministério da Saúde e do Ministério da Previdência Social, contemplados pelo anteprojeto do governo federal (Hamilton e Fonseca, 2003).
Entretanto o quadro de instabilidade política viria a se agravar ao longo de 1953. Alterações na política econômica internacional, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do jornal Última Hora, a vitória de Jânio Quadros para o governo de São Paulo e a eclosão de uma greve de trabalhadores nesse mesmo estado, fragilizaram ainda mais o Executivo. Esse cenário teria repercussões também sobre o processo de aprovação do projeto de criação do MS.
A criação do Ministério da Saúde
Diante das evidentes dificuldades que o governo federal enfrentava na esfera político-partidária, Getúlio Vargas optou por uma reforma nos cargos ministeriais, substituindo os ministros civis em junho de 1953. Tal decisão dialogava com o fato de a Comissão Interpartidária não ter finalizado ainda sua proposta de reforma administrativa, atrasando a criação dos novos ministérios necessários ao governo naquela conjuntura de negociação com os partidos.
Paralelamente a esses eventos – e apesar do consenso duramente alcançado no interior da Cira em torno da criação do Ministério dos Serviços Sociais – surgiu uma terceira via de proposição e negociação. Em julho do mesmo ano, um requerimento assinado por uma frente multipartidária de senadores pedia urgência para a discussão e votação do antigo Projeto n° 85 de 1950, da autoria de Rui Santos, que estava parado no Senado há anos e propunha a criação do Ministério da Saúde. Aprovado por 28 senadores e com apenas cinco votos contrários, sem nenhuma discussão substantiva relativa às questões de saúde, o projeto de lei seria sancionado em seguida por Vargas. O primeiro titular da pasta seria Miguel Couto Filho. A imprensa à época noticiava que sua indicação teria sido fruto de um acordo entre Getúlio Vargas e Ernani do Amaral Peixoto, que pretendia ver o novo ministro, seu afilhado político, no posto de próximo governador do estado do Rio de Janeiro.
Esse acontecimento, que culminou com a criação efetiva de uma pasta autônoma para a saúde depois de várias décadas, iria finalmente atender ao antigo anseio dos sanitaristas. O novo órgão surgiria assim a partir de uma negociação política envolvendo o interesse de deputados, senadores e do próprio governo federal, num contexto de crise marcado pela mudança dos cargos ministeriais.
A proposta de criação do MS ao longo de todo esse período nos apresenta, portanto, um pequeno exemplo da complexidade que envolve os mecanismos de criação e gestão institucional, e dos desafios que permeiam a relação entre a atuação profissional no campo da saúde pública e a configuração de interesses políticos característicos de cada contexto da história nacional.
*Cristina Fonseca é professora aposentada da Fiocruz. Wanda Hamilton foi pesquisadora do Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz e do Museu da Vida Fiocruz e atualmente se dedica a desenvolver investigações sobre ciência-teatro no contexto da divulgação científica.
Referências:
FONSECA, Cristina M.O. Saúde no Governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
HAMILTON,Wanda; FONSECA, Cristina. Política, atores e interesses no processo de mudança institucional: a criação do Ministério da Saúde em 1953. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 791-825, 2003.
HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo: Hucitec; Anpocs, 1998.